Marília de Dirceu/II/VII
Meu prezado Glauceste,
Se fazes o conceito
Que, bem que réu, abrigo
A cândida virtude no meu peito;
Se julgas, digo, que mereço ainda
Da tua mão socorro,
Ah! vem dar-mo agora,
Agora sim que morro.
Não quero que, montado
No Pégaso fogoso,
Venhas com dura lança
Ao monstro infame traspassar raivoso.
Deixa que viva a pérfida calúnia
E forje o meu tormento:
Com menos, meu Glauceste,
Com menos me contento.
Toma a lira dourada
E toca um pouco nela:
Levanta a voz celeste
Em parte que te escute a minha Bela;
Enche todo o contorno de alegria;
Não sofras, que o desgosto
Afogue em pranto amargo
O seu divino rosto.
Eu sei, eu sei, Glauceste,
Que um bom cantor havia,
Que os brutos amansava;
Que os troncos e os penedos atraía.
De outro destro Cantor também afirma
A sábia antiguidade,
Que as muralhas erguera
De uma grande Cidade.
Orfeu as cordas fere;
O som delgado e terno
Ao Rei Plutão abranda,
E o deixa que penetre o fundo Averno.
Ah! tu a nenhum cedes, meu Glauceste,
Na lira, e mais no canto;
Podes fazer prodígios,
Obrar ou mais, ou tanto.
Levanta pois as vozes:
Que mais, que mais esperas?
Consola um peito aflito,
Que é menos ainda que domar as feras.
Com isto me darás no meu tormento
Um doce lenitivo;
Que enquanto a Bela vive,
Também, Glauceste, vivo.