Marília de Dirceu/II/XI
Se acaso não estou no fundo Averno,
Padece, ó minha Bela, sim, padece
O peito amante e terno
As aflições tiranas que aos precitos
Arbitra Radamanto em justa pena
Dos bárbaros delitos.
As Fúrias infernais, rangendo os dentes,
Com a mão escarnada não me aplicam
As raivosas serpentes,
Mas cercam-me outros monstros mais irados:
Mordem-se sem cessar as bravas serpes
De mil e mil cuidados.
Eu não gasto, Marília, a vida toda
Em lançar o penedo da montanha
Ou em mover a roda,
Mas tenho ainda mais cruel tormento:
Por coisas que me afligem, roda e gira
Cansado pensamento.
Com retorcidas unhas agarrado
Às tépidas entranhas não me come
Um abutre esfaimado,
Mas sinto de outro monstro a crueldade:
Devora o coração, que mal palpita,
O abutre da saudade.
Não vejo os pomos, nem as águas vejo,
Que de mim se retiram quando busco
Fartar o meu desejo;
Mas quer, Marília, o meu destino ingrato
Que lograr-se não possa, estando vendo
Nesta alma o teu retrato.
Estou no Inferno, estou, Marília bela;
E numa coisa só é mais humana
A minha dura estrela:
Uns não podem mover do Inferno os passos;
Eu pretendo voar, e voar cedo,
À glória dos teus braços.