Marília de Dirceu/II/XXVI

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Aquele, a quem fez cego a natureza,
C'o bordão palpa, e aos que vêm pergunta;
Ainda se despenha muitas vezes,
E dois remédios junta!

De ser cega a Fortuna eu não me queixo;
Sim me queixo de que má cega seja:
Cega, que nem pergunta, nem apalpa,
É porque errar deseja.

A quem não tem virtudes, nem talentos,
Ela, Marília, faz de um Cetro dono:
Cria num pobre berço uma alma digna
De se sentar num Trono.

A quem gastar não sabe, nem se anima,
Entrega as grossas chaves de um tesouro;
E lança na miséria a quem conhece
Para que serve o ouro.

A quem fere, a quem rouba, a infame deixa
Que atrás do vício em liberdade corra;
Eu amo as leis do Império, ela me oprime
Nesta vil masmorra.

Mas ah! minha Marília, que esta queixa
Co'a sólida razão se não coaduna;
Como me queixo da Fortuna tanto,
Se sei não há Fortuna?

Os Fados, os Destinos, essa Deusa,
Que os Sábios fingem, que uma roda move,
É só a couta mão da Providência,
A sábia mão de Jove.

Não é que somos cegos, que não vemos
A que fins nos conduz por estes modos;
Por torcidas estradas, ruins veredas
Caminha ao bem de todos.

Alegre-se o perverso com as ditas;
C'o seu merecimento o virtuoso;
Parecer desgraçado, ó minha Bela,
É muito mais honroso.