Saltar para o conteúdo

Marília de Dirceu/II/XXXI

Wikisource, a biblioteca livre


Roubou-me, ó minha Amada, a sorte ímpia
Quanto de meu gozava
Num só funesto dia;

Honras de maioral, manada grossa,
Fértil, extensa herdade,
Bem reparada choça.

Meteu-se nesta infame sepultura,
Que é sepulcro sem honras,
Breve masmorra escura.

Aqui, ó minha amada, nem consigo
Ver outro desgraçado
Sentir também comigo:

Mas esta companhia não mereço.
Os Deuses me dão outra,
Ainda de mais apreço.

Não é, não, ilusão o que te digo;
Tu mesma me acompanhas;
Peno, mas é contigo.

Não vejo as tuas faces graciosas,
Os teus soltos cabelos,
As tuas mãos mimosas.

Se eu as visse, infeliz me não dissera,
Bem que subira ao Potro
Bem que na Cruz pendera.

Não ouço as tuas vozes magoadas,
Com ardentes suspiros
Às vezes mal formadas.

Mas vejo, ó cara, as tuas letras belas,
Uma por uma beijo,
E choro então sobre elas.

Tu me dizes que siga o meu destino;
Que o teu amor na ausência
Será leal e fino.

De novo a carta ao coração aperto,
De novo a molha o pranto,
Que de ternura verto.

Ah! Leve muito embora o duro Fado
A tudo quanto tenho
Com meu suor ganhado.

Eu juro que do roubo nem me queixe,
Contanto, ó minha cara,
Que este só bem me deixe.

Que males voluntários não sentiram,
Os que te amam somente
Porque menos te ouviram?

Dê pois aos mais seus bens a Deusa cega,
Que eu tenho aquela glória
Que a mil felizes nega.