Melancolia (Cruz e Sousa, grafia de 2008)

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Falo ainda e sempre a ti, branco Lusbel das espirituais clarividências! A ti, cuja ironia é ferro e é fogo! Cuja eloqüência grave e vasta faz lembrar, como a de Bossuet, longas alamedas de verdes e frondejantes, altos plátanos chorosos. A ti, que amargurado deploras toda esta decadência dos seres; a ti, que te voltas desolado e saudoso para os tempos augustos que se foram, quando a Honra vã de hoje, era, como um poderoso e altivo brasão de águias negras atravessado de uma espada no centro!

Sim! branco Lusbel, nós caminhamos para o irreparável empedernimento; desde o solo até aos astros, homens e cousas, tudo vai quedar de pedra. Será um sono universal de uma universal esfinge. Tudo, na pedra, dormirá um sono de pedra. A pedra respirará pedra. A pedra sentirá pedra. A pedra almejará pedra. E esta tremenda aspiração de pedra profundamente simbolizará os sentimentos de pedra dos homens de hoje. E, então, branco e iluminado Lusbel, mais claro do que nunca, verás que os olhos dos homens só luzem diante do dinheiro! Que pelo Amor nenhum se sente com ânimo de brandir um facho, de agitar um gládio ou desfraldar uma bandeira! Que pelo Sacrifício nenhum se arrojará nos Nirvanas transcendentes, porque dói muito abandonar o Conforto! Que pela Abnegação nenhum se colocará na vanguarda, porque custa muito aniquilar o Interesse.

Bem sei que tu, ainda com uns restos de clemência, não sei se diabólica, não sei se divina, acharás paradoxal esta intuitiva profecia; mas, para te fazer apagar de uma vez as últimas claridades de crença inexperiente que ainda conservas na alma, vou ministrar-te um rápido e curioso exemplo —síntese preciosa de que o Sentimento está metalizado em ouro, de que a alma anda em cheques universais, no câmbio feroz do egoísmo humano:

— Meu filho, ouvi perguntar um dia a uma criança de sete para oito anos que chegara desse rude e corrupto mundo europeu a tentar fortuna nestas novas terras azuis, — meu filho, você, com certeza, deixou lá fora família, sua mãe, seu pai, não?!

— Deixei, respondeu ele.

— E não tem vontade de voltar, não tem saudade deles?

— Eu! saudades, replicou a inocente criança de sete para oito anos; eu não vim cá para ter saudades, vim para ganhar dinheiro!

Aí tens tu, branco e iluminado Lusbel, a boca dessa esquisita criança, na qual deveria desabrochar a flor tépida de um afeto cândido, instintivamente gangrenada já por tamanhas abjeções de palavras duras!

Nesse ingênuo bandidozinho aí tens tu a imagem simbólica, a mais que exata medida da alma humana universal que tu desoladamente observas com tão desesperada melancolia, cuja psicologia secreta tu penetras tanto nos requintes de toda a tua inquieta Indignação!