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Memórias da Rua do Ouvidor/II

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Continuação e fim da tradição achada nos velhos manuscritos. Como Inês, a mameluca depois de pentear e despentear a cabeleira do seu senhor de direito e seu escravo de fato e depois de rir e de zombar muito dele, vê e ouve, fingindo não ver nem ouvir os pervertidos fidalgos que a namoravam, fica cismando, deixa de cismar, apura-se em feceirice, e Aleixo Manoel põe-se de cabeleira nova. Conseqüências do apuro da feceirice, da cabeleira nova e das denuncias confidenciais de João de Pina e da mãe Sebastiana. Casamento e ceia com dois convidados em desapontamento e contra vontade á mesa, e outras coisas que saberá, quem ler este capítulo, e etc. Fim da tradição da romanesca origem da denominação de Rua de Aleixo Manoel que em 1590 recebeu a atual de Rua do Ouvidor.

Era uma tarde...

Convém não esquecer os costumes do tempo.

No século décimo sexto e ainda até quase o fim do décimo oitavo, os antigos colonos portugueses não tinham no Brasil café para tomá-lo com a aurora, mas almoçavam com o sol às seis ou sete horas da manhã, e jantavam com ele em pino ao meio-dia, salvo o direito de merendar (hoje se diz fazer lunch) às dez horas da manhã.

Atualmente a sociedade civilizada almoça à hora em que os velhos portugueses jantavam, e jantam de luzes à mesa à hora em que se levantavam da ceia aqueles nossos avós.

História de progresso e de civilização, que levam e estendem o sol de seus dias até depois da meia-noite com a iluminação a gás, e, ainda preguiçosos, saúdam o rompimento de suas auroras às 9 horas da manhã, quando abrem as cortinas dos seus macios leitos, e tomam, ainda bocejantes, o seu café madrugador.

Portanto, a tarde tem hoje horas novas, que se confundem com a noite, e eu começava este capítulo, indicando a tarde do outro tempo, que atualmente é a hora em que almoçam a começar o dia o progresso e a civilização.

Estamos entendidos.

Era uma tarde (em 1590), uma hora depois do meio-dia, meia hora depois de suculento jantar. Aleixo Manoel sentado em grande cadeira de encosto desejava, empenhava-se debalde em dormir sua sesta eminentemente portuguesa; mas com a cabeça levemente inclinada, com os olhos meio cerrados queria e não conseguia adormecer excitado pela lembrança dos fidalgos libertinos, e pelos cuidados ansiosos do objeto do seu amor já um pouco anacrônico; em erupções porém irresistíveis, embora ainda contidas pelos vexames do anacronismo sentimental.

E quando mais de olhos cerrados, e mais de alma em vigília ativa estava Aleixo Manoel, Inês, a linda mameluca, sua escrava de direito, e sua soberana de fato, Inês que sabia bem o que de fato era, entrou na sala pé por pé, bem de manso, e parando atrás da cadeira do velho em suposta sesta, travessa a brincar, e certa da impunidade do abuso traquinas, começou a pentear e a despentear, a arranjar e a desarranjar com seus dedos mimosos a cabeleira e o rabicho da cabeleira do seu senhor.

Aleixo Manoel sentia, gozava o contato das mãos ou de asas de anjo a traquinar suave e deliciosamente em sua cabeleira feliz, e após alguns minutos quase animado por aqueles afagos de mãos de cetim quase esquecido de que qüinquagenário bem pudera ter sido avô da mameluca, menina de dezessete para dezoito anos, sem mover a cabeça que conservava meio curva, e abandonada às travessuras dos dedos da bela mameluca, perguntou com voz comovida, e um pouco hesitante por aquele vexame, que é a consciência do desmerecimento, e que poderia chamar-se o pudor da velhice:

— Inês, se eu te desse a liberdade, tu me deixarias?...

A mameluca puxou pelo rabicho da cabeleira do senhor seu escravo, como subitamente impulsada pela impressão de idéia insólita e súbita:

— A liberdade?... que história é essa?... de que liberdade é que eu preciso?...

— Tu és minha escrava, Inês.

— Pois não sou!... disse a mameluca rindo e dando com os dedinhos leve piparote no nariz do velho.

Aleixo Manoel riu-se também daquele sinal de reconhecimento da escrava, e logo depois tornou, dizendo:

— Falemos seriamente, é necessário.

Inês, curiosa, respondeu:

— Vamos!... seriamente...

— Dize a verdade: tens visto a rondar-nos a casa... certos fidalgotes vadios e insolentes...

— Tenho, tenho; às vezes, quando estou no jardim, vejo-os...

— E eles?... vêem o teu rosto... as formas de teu corpo?...

— É possível... provável... quase certo...

— Ah!... tu te mostras a eles, Inês?...

— Eu?... que aleive me levanta!... que pecados me quer pôr em cima do coração inocente!... está virado em rabugento padre confessor...

— Mas então como é que os perversos te vêem o rosto, e...

— Ah!... é o vento...

— A que vem aqui o vento?...

— Vem como o único pecador; o vento às vezes levanta o véu que esconde o rosto, desarranja a mantilha que esconde as formas do corpo.

— Inês, tu te confessas vaidosa; o vento é a tua vaidade.

A mameluca pechou pelos cabelos do senhor e disse-lhe:

— Que velho impertinente!... suponhamos que assim seja: então a gente há de ser bonita e viver e morrer sem amigo vento que levantando-lhe o véu e desarranjando-lhe a mantilha dê testemunho da sua boniteza?...

— Ah! portanto gostas de algum daqueles fidalgos libertinos, sedutores malvados...

— Não, não! eu gosto somente de que eles e todos me achem bonita.

— Inês!

— Tal e qual; não nego, nem dissimulo.

— E eu?... eu te acho bonita, Inês?

— Sim! sim! e muito! e a escrava beijou docemente a fronte de seu senhor.

Aleixo Manoel estremeceu todo, e disse:

— Inês! tu és filha de índia, e minha escrava: aqueles fidalgos desmoralizados, embora elegantes mancebos e fingidos namorados, só pensam em seduzir-te e lançar-te depois no desprezo da ignomínia...

— Também eu desconfio disso...

— Ah! pois bem: Inês, tu precisas de protetor legítimo...

— E não o tenho já?

— Falta-lhe condição essencial!

— Qual é?... eu ainda não senti a falta.

— Inês, queres passar e subir de minha escrava à minha legítima esposa?..,.

A dominante e leviana mameluca desatou a rir.

— De que te ris, doida?

— De três tolices na sua proposta: primeira, a escrava, que é senhora, passar a senhora escrava; - segunda, uma menina casar com um velho; - terceira, filha da segunda, por ser menina casada com velho usar dois véus em lugar de um e de duas mantilhas em vez de uma.

— E se a escrava que é senhora se tornasse ainda mais soberana, sendo esposa?...

— Não é muito seguro.

— E se o velho esposo fosse a proteção salvadora e o amor mais extremoso?...

— Isso eu creio.

— E se perfeitamente confiado na virtude da esposa o velho esposo só lhe impusesse véu e mantilha quando ela saísse à rua?...

— Oh! duvido!...

Aleixo Manoel pôs-se em pé, voltou-se para a mameluca, e, vendo-lhe nos lábios zombeteiro riso, disse-lhe triste:

— Apesar do meu amor e da minha proteção, tu és filha da índia e escrava: pensa!

— E, tendo ajustado a cabeleira, saiu.

Inês foi passear no jardim.

Gil Eanes e logo depois Lopo de Melo, que eram os mais assíduos, passaram e tornaram a passar por junto da cerca do jardim, olharam e sorriram para Inês, que não os olhou nem lhes sorriu.

Gil Eanes, demorando os passos, disse-lhe:

— Linda tamoia, se queres ser minha catecúmena, eu te ensinarei a cultivar as flores em lições de amor: queres?...

Lopo de Melo passou pouco depois e disse-lhe:

— Bela selvagem, resolve-te a fugir comigo para as florestas que eu juro tornar-me selvagem também.

A mameluca fingiu não os ter ouvido, como fingira não tê-los visto. Era a primeira vez que eles lhe falavam.

Inês sentiu o desprezo da sua condição no modo por que lhe falaram os dois fidalgos que a namoravam.

E lembrou-se que Aleixo Manoel tinha acabado de dizer-lhe: - pensa.

E sem o pensar Inês pensou.

Nos seguintes dias quem mais cismava não era Aleixo Manoel, era Inês.

Quase logo famílias da amizade do cirurgião principiaram a visitá-lo a miúdo, vindo cear com ele, e, enquanto os homens conversavam com Aleixo Manoel, as senhoras, em círculo separado, tinham sempre a contar casos escandalosos de seduções e de raptos de meninas pobres, vítimas de Gil Eanes, de Lopo de Melo e de seus companheiros de libertinagem.

Inês escutava essas histórias sinistras, fingindo-se indiferente a elas, se bem que às vezes dissimulada sorrisse, adivinhando a encomenda, não menos se sentia impressionada.

Gil Eanes e Lopo de Melo fizeram mais e melhor do que as comadres de Aleixo Manoel.

Gil Eanes mandou propor a Inês que em noite aprazada fugisse da casa do cirurgião para doce retiro, onde ele lhe assegurava, além do. seu amor, felicidade e riqueza. Lopo de Melo mandou oferecer-lhe a liberdade por dinheiro, prestando-se ela a ficar para sempre sob sua amorosa proteção.

Inês repeliu as proposições; mas desde que lhas trouxeram, deixou de cismar, voltou ao seu natural caráter alegre e travesso, e ainda mais faceira se mostrou.

E por isso ou por alguma outra razão Aleixo Manoel pôs-se de cabeleira nova.

Entretanto ele não perdia de vista os libertinos rondantes do Desvio do Mar.

Cirurgião caridoso e com numerosa clínica gratuita, Aleixo Manoel tinha corações agradecidos entre a gente pobre e desgraçada de quem era benfeitor.

Uma noite veio um embuçado falar-lhe: entrou meio atarantado e descobriu o rosto.

— Oh! és tu João de Pina?... temos história?...

João de Pina era um degradado, vadio e desordeiro valentão, que muitas vezes servia a Gil Eanes em suas empresas mais arriscadas.

— Temos... respondeu João de Pina: amanhã é domingo de entrudo, não é?...

— É.

— Pois amanhã, às onze horas da noite, venho eu e mais meia dúzia, aqui com o Sr. Gil Eanes, e arrombada a sua porta com berraria de entrudo, havemos de roubar-lhe a menina sua escrava, a pesar seu e dela.

— Podes ter mais dez vezes ataques de fígado e de bofes, que eu te hei de curar, como já o fiz o ano passado, e neste: vai-te embora, bom tratante, e toma lá para molhar a garganta...

João de Pina recebeu uma moeda de prata, embuçou-se bem, cobrindo o rosto, e disse, saindo:

— Até amanhã às onze horas da noite...

Aleixo Manoel tomou o chapéu e a bengala, e pôs-se em marcha; mas ao dobrar pela Rua Direita, tomou-lhe o braço uma mulher de mantilha, que lhe disse:

— Sr. Aleixo, eu ia lá... a sua casa...

— Inútil; nem que fosse o Sr. Capitão-mor Governador; morra quem morrer, esta noite não vejo doentes...

— Más não é caso de doença... é do seu crédito... eu sou a velha Sebastiana...

— Oh! mãe Sebastiana! então que há?

— Amanhã não é domingo de entrudo?...

— É, que diabo!...

— Foi meu filho que me mandou em segredo...

E a velha agarrou-se ao cirurgião, que lhe curava as erisipelas e ao filho tinha curado de uma vômica, e disse-lhe baixinho ao ouvido:

— Amanhã às onze horas da noite o senhor não estará em casa...

— Eu?... pode ser... mas... por quê?...

— Porque meia hora antes hão de bater-lhe à porta, e chamá-lo para acudir a um ataque de cabeça do Sr. Governador...

— E depois que eu sair a acudi-lo?

— Meu desgraçado filho e outros sequases do Sr. Lopo de Melo (que conta com o seu escravo Tomé), entrando pela porta que abre para o jardim de sua casa tomarão e à força levarão, não sei para onde, a menina Inês, sua escrava.

— Obrigado, mãe Sebastiana; eu lhe darei notícias minhas... agora tenho pressa...

E Aleixo Manoel foi dizendo consigo:

— Dois à mesma noite e à mesma hora!... Que canalha de fidalgos!... mas... Tomé... duvido.

Era quase meia-noite quando Aleixo Manoel, de volta do monte do Castelo, recolheu-se à sua casa. Estava tranqüilo e contente; mas, ao entrar, disse a Tomé, que lhe abrira e depois trancara a porta:

— Vem cá.

E na sala perguntou-lhe:

— Inês?...

— Dorme.

— E que há de novo?...

— Lopo hoje me pagou traição: amanhã onze horas da noite ele vem roubar a menina. Deixa ele!...

— Queres que deixe roubá-la?...

O velho índio riu-se horrivelmente, saiu da sala, e quase logo voltou, trazendo na mão uma clava de gentio, a tacape pesada e terrível:

— Deixa! repetiu Tomé; eu mato!

— Vai dormir, disse Aleixo Manoel: amanhã te direi o que hás de fazer.

No dia seguinte, domingo de entrudo, e do entrudo selvagem e delirante daqueles tempos, era pouco antes das onze horas da noite, quando bateram fortemente à porta da casa do cirurgião, e o chamaram a alto bradar em socorro do governador, o venerado Salvador Correia de Sã, que se achava em perigo de morte.

O índio Tomé abrindo uma janela despediu os emissários, dizendo-lhes que seu senhor ia partir imediatamente, e com efeito, minutos depois, saiu apressado da casa um homem embuçado, que era sem dúvida o famoso cirurgião da cidade.

Às onze horas da noite gritaria infernal rompeu em frente à casa de Aleixo Manoel, cuja porta cedeu, quebrada a fechadura.

Mais minuto, menos minuto, a porta do jardim abriu-se a toque de sinal dado por gente que entrava pelos fundos do quintal.

E, penetrando no interior da casa, esbarraram-se em face um do outro, Gil Eanes e Lopo de Melo, cada qual seguido de seus cúmplices.

Aleixo Manoel e Inês estavam ausentes; na sala de jantar, porém, achava-se servida a mais profusa e rica ceia que então se podia dar na colônia.

O índio Tomé, arrimado à sua dava, disse aos dois fidalgos:

— Senhor tem ceia... e convida senhores... não tarda.

Gil Eanes e Lopo de Melo mediam-se furiosos: mas não tiveram tempo nem de trocar palavras e provocações, porque sentiu-se logo ruído de gente que entrava.

Os cúmplices saíram todos para o jardim, e dali fugiram, vendo quem chegava.

Os dois fidalgos libertinos ficaram como fulminados, quando lhes apareceram o Governador Salvador Correia, e o Prelado Simões Pereira, precedendo a Aleixo Manoel e Inês, de cujo casamento acabavam de ser testemunhas, e seguidos de alguns dos principais da nobreza da colônia, e entre eles dois respeitáveis parentes de Gil Eanes e de Lopo de Melo.

— Os Srs. Gil Eanes e Lopo de Melo serão também meus convidados, se o Sr. Governador o permitir, disse Aleixo Manoel.

O venerando Salvador Correia de Sã olhou para os dois com sobrolho carregado, como o traziam também os parentes deles.

— Ceemos! disse o governador.

Sentaram-se todos, ficando o prelado à direita, e Inês e Aleixo Manoel à esquerda de Salvador Correia.

Só Gil Eanes e Lopo de Melo, abatidos e trêmulos, tinham-se conservado em pé.

O Governador lhes disse com voz severa:

— A empenho de Aleixo concedo-vos perdão do crime desta noite; mas só deixais de servir-nos à mesa como baixos criados; porque devo poupar mais vergonhas a estes dois ilustres fidalgos, que bem quereriam não ter parentes como vós. Sentai-vos à mesa!...

A ceia começou: na ocasião do primeiro brinde Salvador Correia falou ainda a Gil Eanes e a Lopo de Melo.

— Enchei vossos copos!...

Os dois obedeceram.

— Agora de pé! e saudai e bebei à felicidade dos noivos!...

E cumprida a sua ordem, Salvador Correia pôs a mão espalmada sobre a cabeça de Inês, e disse aos dois:

— Lembrai-o bem!... é minha afilhada.

Logo depois expandiu o rosto, e acrescentou alegremente:

— Senhor Gil Eanes, senhor Lopo de Melo, tudo está esquecido. Não haja tristezas nem vexames a perturbar o júbilo dos noivos e o nosso!...

E a ceia continuou e acabou vivamente animada.

Desde o dia seguinte propalou-se a notícia das duas escandalosas tentativas de rapto de Inês, e da famosa logração que habilmente preparara aos indignos e pervertidos fidalgos Aleixo Manoel.

O povo aplaudiu muito o ardil do cirurgião, e o seu feliz casamento: nas noites da segunda e terça-feira foi numeroso bando de colonos cantar à porta da casa dos noivos, e creio que as serenatas teriam ainda continuado, se a quarta-feira de cinzas não fosse começo da quaresma, que era muito respeitada.

Aleixo Manoel, porém, subira ao galarim da fama e da moda; fizeram-lhe cantigas, e no fim de poucos dias o povo sem audiência da Câmara nem licença do Governador deu ao Desvio do Mar a denominação de Rua de Aleixo Manoel.