Memórias da Rua do Ouvidor/III
Como a Rua de Aleixo Manoel estendeu-se para o interior até a dos Latoeiros, ficando por muitos anos, onde começara em Desvio do Mar, e viu ali nas tardes de verão moças a pescar no mar e em terra. Como se aterrou aquele mar da Rua Direita, a de Aleixo Manoel já com a denominação de Rua do Padre Homem da Costa avançou até a atual do Mercado, e aí na praia se estabeleceu o primitivo mercado com o nome de Quitanda das Cabanas que depois se trocou pelo de Praia do Peixe. Refere-se uma tradição duvidosa do Padre Homem da Costa, e diz-se, como se abriu a vala da Carioca, e a rua daquele leio nome, até á qual se alongou a do Padre Homem da Costa; fala-se dos inconvenientes da vala e dos aplausos que por mandar cobri-la de grossos lajedos recebeu o Vice-Rei Conde da Cunha, que aliás pouco influíra na obra, tendo sido esse melhoramento determinado por grotesco e infeliz caso, história romanesca que se contará no capítulo seguinte.
Adiantava-se o século XVII e a Rua de Aleixo Manoel que peio lado de terra não se estendia além da dos Latoeiros que a corta em ângulos retos, e que hoje se denomina de Gonçalves Dias, pelo lado do mar ainda começava onde rompera em Desvio.
Na Rua Direita a praia era em pouco irregular: em alguns pontos o mar muito baixo sem a menor dúvida se mostrava retirante, e acumulava aqui e ali areias, formando ilhotas brancas e privadas de vegetação.
Mas entre esses pontos o mar ainda investia menos baixo sobre o continente, como teimoso a negar-se ao recuamento de suas águas.
E naqueles tempos a praia e o mar (onde ele era mais fundo ou menos entupido de areias) serviram de lugares de recreio, se o recreio não servia de pretexto para exibições ardilosas.
Envolvidas em suas mantilhas, e cobrindo o rosto com seus véus, as senhoras da Rua Direita, e principalmente (dizem) as da de Aleixo Manoel, tinham por costume ir à tardinha nos meses de verão pescar de caniço sentadas ou em pé na praia. As mães ou as tias já velhas acompanhavam as filhas e sobrinhas moças, zelando sua pundicícia e o seu decoro.
Todavia as pescadoras jovens sabiam perfeitamente o segredo de Inês - a mameluca, e ao deitarem os anzóis ao mar, o amigo vento vinha sempre desarranjar suas mantilhas e levantar seus véus, de modo que os observadores curiosos podiam ver e admirar olhos formosos, bonitos semblantes e soberbos colos.
E muitas vezes as vaidosas arteiras eram tão felizes na pesca que chegavam a pescar duplamente - peixes no mar e corações em terra.
Vejam como se mudaram os costumes!...
Naquele tempo, as jovens da Rua de Aleixo Manoel iam pescar para se mostrar; e hoje freqüenta a Rua do Ouvidor certo bando de pescadoras que andam se mostrando para pescar.
Mas não há bem que sempre dure!...
Tratando-se de construir a fortaleza da Lage à custa do povo, e, achando-se este sobrecarregado de impostos, a Câmara Municipal (que ainda não era ilustríssima), como não bastassem para essa obra algumas rendas que propusera aplicar à fortaleza, deliberou vender alguns terrenos das marinhas da cidade, sendo o produto da venda destinado àquele fim.
Uma das marinhas vendidas foi a que fazia frente à primitiva linha de casas da Rua Direita.
E assim lá se foi a praia de exposição ardilosa de bonitas pescadoras.
Ganharam com isso as Ruas Direita e de Aleixo Manoel.
Em poucos anos aterrou-se o mar que ajudava o aterro, amontoando areias, e tão rapidamente que no fim do mesmo século décimo sétimo já era regular e contínua a edificação e série de casas fronteiras às da única linha antiga da Rua Direita. Em 1698 já estava construída a casa que por ordem régia então se comprou para residência dos governadores e que é aquela onde desde anos se achavam estabelecidos o Correio Geral e a Caixa da Amortização.
É casa histórica: em 1710 Carlos Duclerc atacando por terra a cidade do Rio de Janeiro entrou com a sua falange nesta casa, e em rígido combate foi dela expelido por Gurgel do Amaral com os seus estudantes e paisanos armados.
Agora a casa dos governadores vai ser demolida. Que haja ao menos quem lhe assista às últimas horas de existência e lhe escreva a necrologia.
(Prevenção ao Instituto Histórico).
Mas a Rua de Aleixo Manoel, vendo aterrado o mar do qual fora Desvio, atravessou a Rua Direita, ou foi além dela estender-se até ao lugar que ficou sendo então praia, e que era pouco mais ou menos onde hoje a Rua do Mercado corta em ângulo reto a do Ouvidor.
No fim do mesmo século décimo sétimo essa praia tornou-se lugar de mercado de peixe, de verduras e de algumas frutas, que se vendiam não debaixo de barracas de lona, mas sob pequenas palhoças, pelo que foi denominado e conhecido por
Quitanda das Cabanas - primeiro nome da atual Praça do Mercado.
Assim, pois, a rua que desde um século menos dois anos se chama do Ouvidor começava então em face da Quitanda das Cabanas.
Quitanda das Cabanas! Apesar de Quitanda, graças porém às Cabanas, era nome rústico, mas um pouco lírico o tinha laivos de poesia de civilização primitiva; a mais chata e infeliz das lembranças eivada de maresia mais tarde trocou essa denominação pela de Praia do Peixe.
Mil vezes antes Quitanda das Cabanas!
É certo que naquele mercado o que predominava era o peixe, e peixe ótimo e a fartar baratíssimo a cidade, e peixe miúdo que se vendia então a cinco réis por quantidade abundante.
As verduras eram poucas e limitadíssimas em variedades. As frutas estavam no mesmo caso. Flores ninguém vendia nem comprava, davam-se como davam-se e trocavam-se as mudas e sementes das que já se cultivavam; quais eram além das do país?... Não estudei a questão floriantiquária, mas que havia cultivo de flores juro-o, porque havia senhoras.
Mas, em todo caso, não há desculpa que aproveite a quem mandou rebaixar a Quitanda das Cabanas para Praia do Peixe.
Em memórias históricas o anacronismo é naufrágio, e eu estava deveras naufragando em anacronismo.
A rua chamada de Aleixo Manoel quando atravessou a Rua Direita e foi parar na Quitanda das Cabanas não tinha mais aquele nome, pois que desde o ano de 1659 se denominou Rua do Padre Homem da Costa.
Certamente o cirurgião Aleixo Manoel já tinha morrido sem deixar filhos ricos, e a linda mameluca Inês, se ainda vivia, era viúva maior de oitenta anos, e por isso desde muito esquecida do amigo vento, que outrora oportunamente lhe desarranjava a mantilha e lhe levantava o véu, e portanto um por morto sem herdeiros de seu nome com herança de áureo prestígio e a suposta viúva já por velha, ex-adorada mameluca, foram despojados da glória daquela denominação da rua.
Quem foi porém na ordem das coisas, e qual o merecimento do Padre Homem da Costa positivamente morador à rua que tomou o seu nome?... Não sei.
Naqueles tempos encontro um Padre Pedro Homem Albernaz que foi Vigário da freguesia da Candelária, e Prelado do Rio de Janeiro; mas, embora fosse Homem, não foi da Costa; além disso, descobri um Padre Pedro Homem da Costa que depois de paroquiar por alguns anos a freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Angra dos Reis entregou-a em 1636 ao Padre Roque Lopes de Queirós, e recolheu-se à cidade do Rio de Janeiro.
Seria esse o padre cujo nome passou à rua que se chamava de Aleixo Manoel?... ignoro-o, e não devo expor-me a falsos juízos.
Sei de uma tradição - que não se encontra nos meus velhos manuscritos, mas que me foi transmitida por um antigo fluminense honradíssimo, carpinteiro e mestre-de-obras, a quem devi curiosíssimas informações de coisas do fim do século passado e do princípio do atual; esta tradição, porém, que é a do Padre Homem da Costa, só a esse meu amigo ouvi, e portanto é apenas individual, e não popular, e, tratando-se de caso passado há duzentos anos, não a posso reproduzir sem previamente declará-la muito duvidosa.
Quando imagino episódios para suavizar a leitura destas Memórias, indico-os sempre com bastante clareza: Agora não imagino, não invento a tradição, mas refiro-a, porque se não é verdadeira é bem achada.
O Padre Homem da Costa (que só esses dois nomes tinha) era padre de letras gordas, mas passava por bom cantoconista, porque sabia um pouco de música: indulgente, agradável e de benigno coração, era geralmente estimado, e como gostasse de cantar modinhas e lundus, todos o queriam nos seus saraus; tinha ele porém uma fraqueza ou uma paixão predominante - a da gastronomia.
Padre e já velho, mas ainda rei da viola ou do cravo acompanhadores de suas cantigas nas sociedades, as senhoras o festejavam à porfia; e por fim de contas as moças solteiras e desejosas de casar descobriram nele a mais preciosa qualidade, um talento sublime.
O Padre Homem da Costa era maravilhoso a facilitar e promover casamentos.
Qual foi a primeira ardilosa que fez a descoberta de tão rico tesouro não se sabe e isso pouco importa: o certo é que conhecido o milagre do padre as moças o tomaram em devoção.
Mas a candidata a casamento e o padre firmavam a rir e brincar, contrato que aliás era cumprido sem falha.
A candidata abria seu coração ao Padre Homem da Costa, dizia-lhe o nome do seu namorado, e, expondo-lhe as dificuldades que se opunham ao seu casamento, pedia intervenção protetora.
O Padre Homem da Costa respondia rindo e como a gracejar:
Bem, bem: mas eu quero uma garopa de forno no dia do ajuste do noivado e convite para o banquete do casamento.
Não havia nada mais barato!
E o padre a entender-se com os pais do namorado e depois com os pais da candidata era tão persuasivo e hábil que acabava sempre por ganhar a garopa de forno, e ir ao banquete do casamento.
E era sempre feliz nos empenhos tomados; porque, quando a pretensão lhe parecia inconveniente ou desajuizada, não hesitava em desenganar a candidata.
É claríssimo que se multiplicavam as candidatas a casamento e os contratos de aparência zombeteira e de realidade gastrônoma.
As confidências e as expansões das candidatas eram pouco mais ou menos semelhantes, edições mais ou menos corretas e emendadas do mesmo romance de amor.
Nos contratos gastrônomos havia alguma variedade, mas sem importância para as candidatas: em vez de garopa de forno, vinha neste peru recheado -; naquele um prato de chouriço, etc.; mas em regra predominavam em primeiro lugar a garopa de forno e em segundo o peru recheado.
Em pouco tempo o Padre Homem da Costa promoveu e abençoou ou fez abençoar mais casamentos do que o prelado do Rio de Janeiro, e os vigários das freguesias da cidade.
E as noivas e casadas agradecidas e as novas candidatas em devoção, querendo honrar o milagroso casamenteiro, começaram a chamar a rua onde ele morava, que era a de Aleixo Manoel, Rua do Padre Homem da Costa.
Não houve nem Câmara Municipal, nem clero, nobreza e povo que pudessem resistir àquela proclamação do belo sexo.
A Rua de Aleixo Manoel passou a denominar-se - Rua do Padre Homem da Costa.
E o velho padre continuou a adotar e proteger candidatas a casamentos, até que no fim de alguns anos, em uma noite, morreu de apoplexia fulminante, depois de uma ceia em que devorara metade de uma garopa de forno, uma fritura de camarões e ostras, e um pratarraz de chouriço.
Não se pôde levantar da mesa, e expirou sem agonia, sentado, risonho e provavelmente a pensar no almoço do dia seguinte.
Se esta tradição pudesse correr com fundamentos de veracidade, o Padre Homem da Costa, pondo-se de lado a sua paixão gastrônoma, que não foi nociva senão a ele, deveria ser aplaudido pela sua influência benigna, moralizadora e social, e bem merecera a honra de passar seu nome à rua onde morava e onde enfim morreu.
Ah! se hoje em dia florescesse algum padre como aquele Homem da Costa, certamente o preço das garopas e dos perus seria já fabuloso na Praça do Mercado; porque o número das devotas do padre casamenteiro chegaria pelo menos a igualar ao dos candidatos a empregos públicos: mas também seria menor o número daquelas mártires, a quem chamam solteironas.
Mas enfim a Rua de Aleixo Manoel passou a chamar-se do Padre Homem da Costa, nome que conservou por cento e vinte anos, tendo trocado a casaca e a cabeleira do cirurgião pela batina e pelo solidéu do padre, e faz vontade de rir imaginar beata e clerical durante um século e anos esta Rua do Ouvidor filósofa sensualista, e até rua um pouco ou muito endemoninhada pela multiplicação das tentações.
Em meados do século XVIII a Rua do Padre Homem da Costa estendeu-se um pouco mais para o lado do continente, avançando até a rua que se chamou da Vala; deveras, porém, que não devia aplaudir-se desse prolongamento.
Construída a fonte ou chafariz da Carioca no lugar; depois largo e hoje Praça da Carioca, nome que tomou do das vertentes ótimas que recebeu canalizadas, sobravam tanto as águas que, para dar-lhes esgoto, abriu-se grande vala com leito e paredes de pedra desde a Carioca (chafariz) até o mar no sítio chamado Prainha.
(Entre parênteses: carioca quer dizer em língua tupi - casa do homem: - donde proveio semelhante denominação?... quem era o homem da casa?... pretendiam os selvagens tamoios que aquelas águas como as da fabulosa Cabalina tinham a virtude de inspirar estro poético: donde provinha essa falsa crença?... o homem da casa teria sido algum pajé poeta, algum tamoio solitário, homem notável pelo talento poético que os índios julgassem devido às águas que corriam perto da sua - oca -?... deixo aos meus ilustrados amigos os Srs. Drs. Brigadeiro Couto de Magalhães e Batista, os juizes mais competentes que conheço na matéria, o empenho de resolver este problema, e fecho o parênteses).
A vala foi de considerável utilidade, porquanto serviu para dar vazão àquelas águas que caíam sobrepujantes da fonte e dos tanques de pedra, e também às das chuvas então muito freqüentes e algumas torrenciais, que tornavam como rios as ruas, e inundavam as casas da cidade.
Além disso a vala teve durante anos certa importância administrativa, porque foi considerada muro da cidade, ou linha extrema urbana.
Entretanto a vala ficou exposta, destapada, e como de tudo se abusa, abusaram da inocente e benfeitora os colonos moradores das vizinhanças que a fizeram servir, para o despejo de quanto de pior serviço de suas casas era preciso despejar.
Em breve e necessariamente a desvirtuada vala tornou-se imunda, repugnante, fétida e foco de miasmas, e a Rua do Padre Homem da Costa que avançou até ela devia ser nesse seu novo limite de habitação muito desagradável e anti-higiênica.
Mas apesar das ruins condições determinadas pelo abuso que ficou mencionado, casas se foram construindo aos lados da vala e principiou a formar-se a rua que tomou dela o nome e que hoje se chama de Uruguaiana.
Além da vala, o espaço que se estendia entre o monte de Santo Antônio e o mar, e dessa linha para o centro até a depois chamada cidade nova inclusive, tudo era campo do Rosário.
Em 1764 ou 1765 o Vice-Rei Conde da Cunha ordenou à Câmara Municipal da cidade que fizesse cobrir com lajes grossas a vala fétida e pestífera; a obra executou-se prontamente, e para que não fosse de todo prejudicado o esgoto das águas das chuvas, a vala recebeu ralos de pedra no encruzamento das ruas.
E todavia ainda houve abuso de ralos!
Em todo caso foi considerável o melhoramento olfativo e higiênico, sendo o Conde da Cunha muito aplaudido e louvado por isso nas memórias do tempo.
E eis aí como se escreve a história!
O Vice-Rei Conde da Cunha, doente e velho, que raro se mostrava, passeando pelas ruas da cidade, porventura nunca tinha recebido em seu vice-real nariz o gasoso testemunho das exalações da vala aberta, e entrou na obra melhoradora apenas com a sua indispensável assinatura na ordem expedida para que a vala fosse coberta com lajes grossas.
O que inspirou e determinou esse melhoramento foi noturno e ridículo caso, cuja história parece romance, e há de divertir os meus leitores no capítulo seguinte.