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Memórias de um Sargento de Milícias/IX

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Os leitores estarão lembrados do que o compadre dissera quando estava a fazer castelos no ar a respeito do afilhado, e pensando em dar-lhe o mesmo oficio que exercia, isto é, daquele arranjei-me, cuja explicação prometemos dar. Vamos agora cumprir a promessa.

Se alguém perguntasse ao compadre por seus pais, por seus parentes, por seu nascimento, nada saberia responder, porque nada sabia a respeito. Tudo de que se recordava de sua história reduzia-se a bem pouco. Quando chegara à idade de dar acordo da vida achou-se em casa de um barbeiro que dele cuidava, porém que nunca lhe disse se era ou não seu pai ou seu parente, nem tampouco o motivo por que tratava da sua pessoa. Também nunca isso lhe dera cuidado, nem lhe veio à curiosidade indagá-lo.

Esse homem ensinara-lhe o oficio, e por inaudito milagre também a ler e a escrever. Enquanto foi aprendiz passou em casa do seu... mestre, em falta de outro nome, uma vida que por um lado se parecia com a do fâmulo, por outro com a do filho, por outro com a do agregado, e que afinal não era senão vida de enjeitado, que o leitor sem dúvida já adivinhou que ele o era. A troco disso dava-lhe o mestre sustento e morada, e pagava-se do que por ele tinha já feito.

Quando passou de menino a rapaz, e chegou a saber barbear e sangrar sofrivelmente, foi obrigado a manter-se à sua custa e a pagar a morada com os ganchos que fazia, porque o produto do mais trabalho pertencia ainda ao mestre. Sujeitou-se a isso. Porém queriam ainda mais: exigiam que continuasse a empregar-se no serviço doméstico. Lavrou-lhe então n’alma um arrepio de dignidade: já era oficial, e não queria rebaixar o seu oficio. Virou mareta; fez-se duro, e safou-se de casa sem escrúpulos nem remorsos, pois bem sabia que estavam saldas as contas de parte a parte. Tinham-no criado; ele tinha servido. Também não encontrou grande resistência à sua deliberação.

Apenas passou o primeiro ímpeto e teve tempo de reflexionar, quase que começou a arrepender-se por não saber qual o meio de achar arranjo. Viu-se na rua, sem saber para onde ir, tendo por única fortuna uma bacia de barbear embaixo do braço, um par de navalhas e outro de lancetas na algibeira. Verdade é que quem tinha consigo estes trastes estava com as armas e uniforme do oficio; porém isso não bastava; o pobre rapaz estava em apertos.

Passou a primeira noite em casa de um colega, e no dia seguinte ao amanhecer, tomando os seus apetrechos, saiu em busca de que fazer para aquele dia, e de destino para os mais que se iam seguir.

Achou ambas as coisas: uma trouxe a outra.

No largo do Paço um marujo que estava sentado em uma pedra junto ao mar chamou-o para que lhe fizesse a barba: mãos à obra, que já naquele dia não morria de fome.

Todo barbeiro é tagarela, e principalmente quando tem pouco que fazer; começou portanto a puxar conversa com o freguês. Foi a sua salvação e fortuna.

O navio a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupava-se no comércio de negros; era um dos comboios que traziam fornecimento para o Valongo, e estava pronto a largar.

— Ó mestre! disse o marujo no meio da conversa, você também não é sangrador?

— Sim, eu também sangro...

— Pois olhe, você estava bem bom, se quisesse ir conosco... para curar a gente a bordo; morre-se ali que é uma praga.

— Homem, eu da cirurgia não entendo muito...

— Pois já não disse que sabe também sangrar?

— Sim...

— Então já sabe até demais.

No dia seguinte saiu o nosso homem pela barra fora: a fortuna tinha-lhe dado o meio, cumpria sabê-lo aproveitar; de oficial de barbeiro dava um salto mortal a médico de navio negreiro; restava unicamente saber fazer render a nova posição. Isso ficou por sua conta.

Por um feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros; chamou-se o médico; ele fez tudo o que sabia... sangrou os doentes, e em pouco tempo estavam bons, perfeitos. Com isto ganhou imensa reputação, e começou a ser estimado.

Chegaram com feliz viagem ao seu destino; tomaram o seu carregamento de gente, e voltaram para o Rio. Graças à lanceta do nosso homem, nem um só negro morreu, o que muito contribuiu para aumentar-lhe a sólida reputação de entendedor do riscado.

Poucos dias antes de chegar ao Rio o capitão do navio adoeceu; a princípio nem ele nem alguém teve a menor dúvida de que ficaria bom logo depois da primeira sangria; porém repentinamente o negócio complicou-se, e nem com a terceira e quarta se pôde conseguir coisa alguma. No fim do quarto dia convenceram-se todos e o próprio doente capitão de que estava chegada a sua hora. Nem por isso porém inculparam o nosso homem.

— Ali não há sangria que o salve, diziam; chegou a sua vez de dar à costa... há de ir.

O capitão teve de fazer suas últimas disposições, e, como dissemos, tendo o médico granjeado grande amizade e confiança, foi escolhido para desempenhá-las.

O capitão chamou-o à parte, e em segredo lhe fez entrega de uma cinta de couro e uma caixa de pau pejadas de um bom par de doblas em ouro e prata, pedindo que fielmente as fosse entregar, apenas chegasse à terra, a uma filha sua, cuja morada lhe indicou. Além deste dinheiro encarregou-o também de receber a soldada daquela viagem e lhe dar o mesmo destino. Eram estas as suas únicas e últimas vontades que o encarregava de cumprir, declarando-lhe que lá do outro mundo o espiaria para ver como cuidava disso.

Poucas horas depois expirou.

Desse dia em diante nenhum só doente escapou mais, porque o médico já não sangrava tanto; andava preocupado, distraído, e assim levou até chegar à terra.

Apenas saltou, declarou que não se tinha dado bem, e que não embarcaria mais.

Quanto às ordens do capitão... histórias; quem é que lhe havia de vir tomar contas disso? Ninguém viu o que se passou; de nada se sabia.

Os únicos que podiam ter desconfiado e fazer alguma coisa eram os marinheiros; porém estes partiram em breve de novo para a Costa.

O compadre decidiu-se a instituir-se herdeiro do capitão, e assim o fez.

Eis aqui como se explica o arranjei-me, e como se explicam muitos outros que vão aí pelo mundo.