Memórias de um Sargento de Milícias/VIII
Ainda hoje existe no saguão do paço imperial, que no tempo em que se passou esta nossa história se chamava palácio del-rei, uma saleta ou quarto que os gaiatos e o povo com eles denominavam o Pátio dos Bichos. Este apelido lhe fora dado em conseqüência do fim para que ele então servia: passavam ali todos os dias do ano três ou quatro oficiais superiores, velhos, incapazes para a guerra e inúteis na paz, que o rei tinha a seu serviço não sabemos se com mais alguma vantagem de soldo, ou se só com mais a honra de serem empregados no real serviço. Bem poucas vezes havia ocasião de serem eles chamados por ordem real para qualquer coisa, e todo o tempo passavam em santo ócio, ora mudos e silenciosos, ora conversando sobre coisas do seu tempo, e censurando as do que com razão já não supunham seu, porque nenhum deles era menor de 60 anos. Às vezes acontecia adormecerem todos ao mesmo tempo, e então com a ressonância de suas respirações passando pelos narizes atabacados, entoavam um quarteto, pedaço impagável, que os oficiais e soldados que estavam de guarda, criados e mais pessoas que passavam, vinham apreciar à porta. Eram os pobres homens muitas vezes vítimas de caçoadas que naquele tempo de poucas preocupações eram o objeto de estudo de muita gente.
Às vezes qualquer que os pilhava dormindo chegava à porta e gritava:
— Sr. tenente-coronel, el-rei procura por V.S.
Qualquer deles acordava espantado, tomava o chapéu armado, punha o talim, acontecendo às vezes com a pressa ficar o chapéu torto ou a espada do lado direito, e lá corria a ter com el-rei.
— Às vossas ordens, real senhor, dizia ainda bocejando.
O rei, que percebia o negócio, desatava a rir e o mandava embora.
Quando chegava o pobre homem abaixo, ia cada um dos que por ali se achavam indagar, o mais seriamente que era possível, qual tinha sido o objeto do chamado del-rei.
Faziam-lhes destas e doutras, mas daí a pouco deixavam-se eles enganar de novo.
Vamos fazer o leitor tomar conhecimento com um desses ativos militares, que entra também na nossa história.
Era velho como seus companheiros, porém decerto por ele não é que tinha vindo ao quarto o apelido que lhe davam: suas feições quebradas pela idade tinham ainda certa regularidade de contorno que bem devotava que seu tempo de rapaz não fora a respeito de beleza mal favorecido; de seus cabelos que o tempo levara restavam apenas orlando-lhe as têmporas e a nuca alguns anéis crespos e prateados; sua calva era nobre e imponente. Fora valente; ganhara por seus feitos as dragonas de tenente-coronel; era filho de Portugal, e acompanhara el-rei na sua vinda ao Brasil.
Estas qualidades porém não lhe serviam de salvaguarda, e sofria como os outros as caçoadas dos gaiatos.
Assim um dia que uma mulher de mantilha o foi procurar, e se pôs com ele a conversar por algum tempo em particular, passavam uns e outros e escarravam junto da porta, ou deixavam escapar uma ou outra chalaça análoga.
— Amores velhos nunca se esquecem, dizia um.
— Bravo! gosto do bom gosto, dizia outro.
A mulher de mantilha é nossa conhecida, porque nem mais nem menos é a comadre; e o negócio que aí a levou também nos interessa, pois que se trata da soltura do pobre Leonardo. Ouça portanto o leitor a conversa dos dois.
— Sr. Tenente-coronel, disse a comadre ao chegar, venho me valer de V.S.: meu compadre Leonardo está na cadeia.
— O Leonardo?! mas então por quê?
— Ora! maluquices!
E chegando-se ao ouvido do velho, contou-lhe a comadre baixinho a causa da prisão do Leonardo.
O velho desatou a rir.
— Bem pregado!... disse.
— Agora eu queria que V.S. fizesse o favor de falar por ele ao Sr. major Vidigal, que foi quem o prendeu... coitado do homem: é uma vergonha; mas também ele não se emenda!
E prosseguindo, a comadre contou muito em segredo, como já o tinha feito a todos os seus conhecidos, toda a história dos infelizes amores do Leonardo com a Maria, todas as diabruras do menino que ela deixara e de que o padrinho tomara conta: passou depois a relatar todo o ocorrido com a cigana, e voltou de novo à história da prisão, que contou e recontou vinte vezes, sem lhe escapar a mais pequenina circunstância. No fim tornou a fazer o seu pedido, a que o velho prometeu satisfazer, e então saiu ela recebendo no saguão muitos cumprimentos e sorrisos maliciosos. Na porta por onde saiu estava encostado um cadete que lhe disse:
— Estimo que fosse feliz; no dia do batizado neo se esqueça da gente.
— Arrenego! foi a única resposta que ela deu, e passou.
Como o velho tenente-coronel conhecia a comadre e o Leonardo, e por que se interessava por ele, o leitor saberá mais para diante.
Esse conhecimento era antigo, e o Leonardo apenas se achou na cadeia lembrou-se da proteção que o velho lhe podia prestar em semelhante aperto; mandou por um colega chamar a comadre, e a encarregou da missão de ir ter com ele, missão que ela aceitou de bom grado, e que desempenhou, segundo vimos, satisfatoriamente.
O velho, apenas a comadre saiu, tomou o chapéu armado, pôs a espada à cinta e saiu, depois de ter contado aos companheiros o que sucede a quem vai tomar fortuna. Um deles, que era crédulo até ao entusiasmo a respeito de feitiçarias, ficou muito indignado com o caso, e prometeu também empenhar-se pelo Leonardo.
Já vê pois o leitor que o negócio não estava mal parado, e em breve saberá o resultado de tudoisto.