Memórias de um pobre diabo/Segunda Parte - Capítulo 9
Primeiro que as maximas obtivessem despacho, recebi da minha terra uma carta do muito probo Sr. Silva, cognominado pelo vulgo o tira pelle, negociante com armazem de seccos e molhados na travessa da Forquilha.
Recommendo este estabelecimento aos que procuram do bom e barato.
O vulgo, que sempre ha de mostrar ser vulgo, cousa baixa e vil e mais baixa e mais vil depois das eleições concluidas, cognominára tira pelle a esse honrado cavalheiro por um facto, que, em seu nome, justificarei.
O Sr. Silva nunca tirou nem pretendeu tirar o couro, quanto mais a pelle, á ninguem.... obrigaram-o a isso.
O meu amigo, actualmente negociante matriculado, começou a vida refinando assucar. Honra lhe seja feita, antes principiar a vida refinando assucar do que leval-a ao cabo na qualidade de refinado vadio, ou refinadissimo velhaco.
Achava-se certa vez na sua labutação, quando apparece na cosinha um individuo, que entrou pela casa como se fosse o dono.
—Sr. Silva! diz o individuo com má catadura.
—Bom dia, Sr. Alves, acode o laborioso refinador; e foi continuando a mecher o tacho com a grande escumadeira.
—Não temos cá bons dias! replica Alves. Quero que diga, quantas arrobas de mascavo-claro mandei refinar.
—Cinco, respondeu o refinador.
—Justas, cinco; e quantas enviou?
—Quatro e meia.
—Justas, quatro e meia. Quatro e meia, sim, quatro e meia.... porém, duas e meia de assucar e as outras do que, Sr. Silva?
—Tambem de assucar, está claro.
—De assucar.... de assucar, êim, Sr. Silva? Digo-lhe, todavia, que entendo de refinação....
—Não duvido.
—Duvide ou não duvide, o que digo, digo. E quando digo que cinco arrobas de assucar são cento e sessenta libras, é porque sei que uma arroba, seja lá do que fôr, tem trinta e duas libras. Ora, sendo certo, como é incontestavel, que cada arroba de mascavo-claro perde na refinação, quando muito cinco libras, é porque tambem sei que em cinco arrobas perderá vinte e cinco, já que a taboada quer que cinco vezes cinco sejam vinte e cinco.
—Noves fóra sete, diz rindo-se Silva.
—Não preciso que o senhor me ensine a tirar os noves fóra, o que preciso é saber como é isto....
—O que? pergunta o outro.
—Que devendo eu, por consequencia, receber quatro arrobas e sete libras de assucar refinado, recebi quatro arrobas e meia?
—Está-se mettendo pelos olhos; é que mandei nove libras de mais, segundo a sua taboada.
—A taboada não é minha, Sr. Silva! brada Alves, enfurecendo-se mais. A taboada é de todo o mundo, entendeu?
—Entendi... entendi... responde o meu amigo com santa calma.
—O que é meu é o calculo, e, conforme calculei, entre as quatro e meia arrobas de assucar, foram duas de arêa, fique sabendo de arêa...
—De arêa? acode o refinador cahindo das estrelas; essa agora é sua... ou então o portador...
—Não temos aqui portador nem portadores. Os meus caixeiros são homens de bem, e o senhor devia saber que, sendo meu freguez o presidente da camara, mais dia menos dia, eu seria multado pela sua... e engulio a palavra.
—Solte a palavra... brada Silva.
—A palavra é ladroeira, responde Alves.
—Então sou ladrão? Diga, se é capaz, sou ou não sou?
Alves não se intimidou e asseverou;
—E', é, e é ladrão, e ladrão refinado...
O meu amigo não podia ser mais prudente do que o foi até alli. A prudencia, porém, tem o seu termo. Alves não previu que, obrigando o honrado refinador a sahir fóra do termo da prudencia uma pollegada, sugeitava-se a receber, como recebeu, na cara a escumadeira impregnada de assucar em calda a ferver. Sem esperar repetição da dóse, Alves sahio vendendo mel ás canadas.
Quinze dias depois tinha a mesma cara, menos a pelle.
Propalado o caso, deu-se ao meu amigo o cognome citado, que nada teve com a substituição do assucar trocado por arêa, como prova a carta a qual me repórto.