Memórias de um pobre diabo/Terceira Parte - Capítulo 10

Wikisource, a biblioteca livre

Chamava-se Monica; nome que não anda na bocca de todos, e a essa vantagem reune a de ser esdruxulo.

Casára aos vinte nove annos de idade com um rapaz de vinte e quatro; e enviuvou no anno seguinte. Tudo isto foi muito natural, sendo mais natural a morte do rapaz.

Não era bonita, era sympathica. Não era sabia como D. Maria Caetana Agnezi, mas era intelligente; e mais espiritada do que espirituosa. Neste ponto trivialissima.

Lia o portuguez corrente como um juiz de paz, e trazia o francez em sarilho. Tocava a saloia ao piano, e nutria a presumpção de saber contar.

Quando a-conheci seus progenitores já haviam levado a breca.

Pretendeu-a na viuvez um capitalista, tambem viuvo.

Monica accedeu á licita pretenção. Nas vesperas das bodas, revelou-se-lhe o noivo com queda para a literatura-funda, ao lêr um artigo, inserto não sei em qual periodico, onde, ad-rem, o escriptor citava este aphorismo de Balzac:

«Un mari ne doit jamais s'endormir le premier ni se réveiller le dernier.»

Seguia-se a traducção, o pomo da discordia: «O marido não deve pegar no somno antes da mulher e nem acordar depois della.»

—Como isto é fundo! exclamou o capitalista, chamando a attenção da noiva para o conselho em portuguez.

—E o senhor, perguntou Monica, no seu tempo de casado seguio isso á risca?

—Como seguiria, se é agora que sei disto?! Ah! se eu em outro tempo adivinhára... e engasgou-se com o resto. Mas, proseguio, cá me fica no canhenho; conselhos como estes não se perdem.

Confessemos, o capitalista não andava corrente com o Codigo do Bom-Tom. Declarar á noiva que um aphorismo de tal jaez lhe ficava no canhenho, foi falta de tino imperdoavel.

Monica, que lia Alphonse Karr e tencionava dar um pulo até á França para comprimentar o autor das Guêpes, com o que o Sr. Alphonse Karr, por sem duvida, muito se lisongearia, não contendeu.

Na manhã do dia seguinte pespegou ao capitalista em carta este bofetão:

«Senhor.—Toda a noite considerei no conselho de hontem e não me convenci que seja o marido quem deva pegar no somno depois da mulher e acordar antes della, por muitas e longas razões com as quaes eu encheria uma resma de papel, se quizesse argumentar. Tendo V. S. no seu canhenho, tomado nota do conselho, pol-o-ha em pratica depois de casado; achando-me em opposição a semelhante pratica, desisto do meu compromisso. V. S. está livre, disponha do seu coração. Prefiro a monogamia ás desavenças do lar.

«Sua criada
«MONICA.»

Quando um homem recebe nas bochechas um recado destes, é mister que saibam todos o seu nome.

O capitalista chamava-se Joaquim.