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Memórias duma Mulher da Época/Forte...

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Forte...


 

Minha querida Tia :

A sua carta, que recebi por intermédio da madrinha Amélia, cheia de meigas censuras, aquelas cujo se gredo é só seu e parecem acariciar-me ao mesmo tempo que me causam remorsos por ter passado ― quasi um ano! ― sem lhe escrever, teve, como vê, uma rápida resposta. Aí, nesse Algarve de clima suave e temperado, na sua vida calma, tranquila, nunca poude, decerto, suspeitar que terriveis comoções têm agitado, de há um ano para cà, a existência da sua Lili, pois para si, santa guiadora da minha infância turbulenta, eu nunca deixei de ser a Lili de cabelos encaracolados, viva, travêssa, á qual, depois de morta a minha pobre Mãi, de quem mal me lembro, ensinou carinhosamente a dizer as primeiras orações!

Tenho sofrido muito, muito! Mas agora já vou esquecendo, a pouco e pouco, os meus sofrimentos, embalada por um atecto intenso, animador, que os compensa tanto quanto possivel. E vou, pois, contar-lhe tudo.

A minha Tia sabe bem que eu, casando aos dezanove anos incompletos, quando fazia da vida uma idéa errada, na minha inteira inexperiência das coisas do mundo, obedeci mais aos conselhos da familia, aos desejos de meu Pai, do que propriamente á inclinação da minha alma. Levei nove anos de vida tranquila mas banal, sem alegrias de coração, embora tambem sem grandes desgostos, na convivencia de meu marido, homem correcto e de caracter digno, mas tão frio, tão concentrado, que muitas vezes se me gelou nos lábios o beijo terno de esposa amorável, que corria a dar-lhe quando êle entrava em casa. Descaíam-me os braços que ia a erguer para um afectuoso amplexo...

Todos os meus caprichos eram satisfeitos, compradas todas as joias que eu desejava. Nunca me faltou dinheiro para dispender em bagatelas, destas que fazem o encanto de todas as mulheres novas e garridas. Frequentava todos os teatros, assistia a todos os concertos mundanos e não raras vezes as portas de nossa casa se abriram a visitas elegantes que tomavam chá ou jantavam e com as quais se improvisavam pequenas recitas e outros divertimentos. Mas o meu espirito continuava insatisfeito, descontente , ambicionando sempre qualquer coisa de ardente de grande, que parecia não chegar... E, no entanto eu não sentia sêde de aventuras, não desejava realizar na vida qualquer romance lido na adolescencia era fiel, escrupulosamente fiel, a meu marido.

Lembro-me bem de que uma vez, tendo ouvido, durante um baile dado em casa duma amiga minha, alguns galanteios ousados da parte de um homem que tambem frequentava a nossa casa, lhe voltei desabridamente as costas, depois de lhe ter formalmente proibido que voltasse a vizitar-me...

Mas um dia, veio, minha Tia, em que amei, amei violentamente, com todo o entusiasmo da minha alma impetuosa... E houve, então, uma luta atroz entre o coração e a consciencia dos meus deveres de esposa. Pensei, lutei! A minha consciencia era tão firme e o sentimento da minha dignidade tão profundo que me convenci de que, devendo todas as minhas comodidades, todo o meu luxo, tôda a consideração que disfrutava, a um homem de bem, que depositava em mim uma confiança ilimitada, seria uma mulher indigna, merecedora do maior despreso, se o enganasse, enlameando o nome que êle me déra e dando largas á minha paixão por outro, ao mesmo tempo que representaria uma torpe, repugnante comédia, continuando a viver sob o mesmo tecto dêsse homem!

― Nunca farei tal! ― disse comigo. E empreguei, então, esforços sobre-humanos para sufocar aquêle amor que criára em tão pouco tempo tão sólidas raizes. Foi inutil... Se a consciencia se impunha, o coração ordenava... E tive de ceder a essas simultaneas influencias.

Uma manhã, depois duma noite de febre, de receios, de mil angústias, tendo tomado uma resolução, entrei no gabinete onde meu marido trabalhava. Sentei-me ao pé dêle e, agarrando-lhe uma das mãos, expuz-lhe, num grito de alma, tudo o que se estava passando no meu íntimo. Disse-lhe que tinha por êle o maior respeito e uma verdadeira estima; que sentia o mais vivo reconhecimento por todas as suas condescendencias e generosidades, mas que um amor subjugante por outro homem, amôr que em vão quizera reprimir, me arrastava impetuosamente, numa onda de desvario, e que preferira sujeitar-me à mágua, à vergonha de lho confessar, a iludi-lo, a atraiçoá-lo, abusando da sua bôa fé.

Acabei a minha confissão sufocada em choro e quasi arrependida de ter falado. Meu marido ficou frio, impassivel, e só um rictus da sua boca contraída denunciava a dôr que, decerto, o estava dominando. Levantou-se e disse apenas, mostrando-me a porta: — «Disponha as suas coisas e sáia hoje mesmo desta casa!»

Quiz beijar-lhe as mãos, pedir-lhe que atentasse em que só o meu grande respeito por êle e a impossibilidade de resistir ao meu ardente afecto por outro me tinham levado áquele procedimento. Retirou as mãos e nada mais quiz ouvir, saíndo do gabinete.

Voltei para o meu quarto com os olhos cheios de lágrimas, mas com a consciencia liberta do terrivel pêso que a estava esmagando havia cinco mêses. Reuni numa pequena mala dois dos meus vestidos mais simples e mais usados, algumas roupas e diversos objectos sem importancia. Tirei os brincos de brilhantes que trazia e meu marido me havia dado e coloquei-os sobre o toucadôr; abri novamente o guarda-vestidos, despedi-me com o olhar do seu rico conteúdo que nunca mais tornaria a vestir e chamei uma criada a quem recomendei que entregasse a mala à pessôa que, por minha ordem, a fôsse buscar...

Saí, comprei o Diario de Noticias e procurei os anuncios de quartos para alugar. Lembrei-me, depois, de que só tinha comigo cinco mil réis e fui a casa da madrinha Amélia, contando-lhe, logo que entrei, o que tinha sucedido e pedindo-lhe emprestados cem mil réis, que depois pagaria como pudésse. Ela, coitada, deu-mos logo, sem uma palavra de censura e com as lágrimas nos olhos. Nessa mesma tarde consegui encontrar um pequeno quarto, modestissimo, onde me alojei. Lembro-me de que estava tão alquebrada de corpo e espírito que dormi profundamente nessa primeira noite passada num humilde quarto andar, num pobre leito de ferro...

No dia imediato e nos que se lhe seguiram consultei desesperadamente os jornais, procurando trabalho, ansiosa por conseguir um logar que me garantisse o sustento. Tudo isto com os olhos turvos de lágrimas, minha querida Tia, mas orgulhosa por não ter sido ou não me considerar infame e cheia de esperança pelo meu amôr...

Ao fim de quatro dias achei ocupação diária num consultório de beleza, para ajudar a fazer tratamentos estéticos. Seis horas de trabalho cada dia, noventa mil réis por mês.

Que pungente foi esta determinação do Destino! Noventa mil réis mensais para todas as despezas duma mulher, duma rapariga que antes dispendia, só com os seus gastos particulares, cerca de quatrocentos, sem incluir as toilettes, especialmente custosas! Mas puz-me ao trabalho, sem perder a coragem. Arranjei uma lição de piano, duas noites por semana, e ainda passei a aproveitar alguns raros momentos de ocio, bordando napperons e fazendo alguma renda inglêsa para uma retrozaria da Baixa.

Só depois de me ter certificado de que estas ocupações , que ainda conservo, me permitiam equilibrar-me na vida, embora com dificuldade, escrevi ao causador da minha mudança de situação, que ainda não conseguira saber de mim e acorreu com alegria ao meu apelo.

Quantas censuras ― quantas! ― me dirigiu por eu não o ter procurado logo depois de haver deixado a casa de meu marido! Declarou-me que não consentiria que eu trabalhasse; disse-me que eu não poderia habituar-me a vida tão fatigante; afirmou-me que não toleraria que eu vivêsse assim em tanta pobreza, tendo vindo dum meio regalado que, por causa dêle, deixára. Fui inflexivel e proibi-lhe que tocasse de novo no assunto, jurando-lhe que de modo algum deixaria de trabalhar e ainda menos aceitaria das mãos dêle qualquer auxilio material, fosse qual fosse...

Beijou-me as mãos, com os olhos húmidos, e não disse mais palavra. Hoje somos felizes e quando á tarde, ás vezes extenuada, deixo o consultório e me encontro com êle, compreendo bem até que ponto chega a nossa mútua afeição e sinto-me mais do que compensada dos meus tormentos, das minhas lágrimas e das minhas humilhações. Bemdigo, então, aquela hora de valor e franqueza que me preservou duma vida de indignidade, de hipocrisia.

As minhas antigas amigas fingem não me vêr quando o acaso as faz cruzar comigo e até alguns amigos de meu marido deixaram, grosseiramente, de me cumprimentar. Que me importa?! Em meio da minha voluntária pobreza, na minha situação irregular, mas conhecendo como conheço a conducta de algumas dessas mulheres e a vergonhosa tolerancia de alguns dêsses homens, sinto por toda essa gente a maior indiferença e ergo bem a cabeça quando por ela passo, pensando sempre, para meu suficiente amparo moral, o que já lhe disse, minha querida Tia: fui pecadora, sim! ― mas não desci a representar um papel ignóbil, repugnante, junto daquele a quem não podia ter amor, mas a quem tinha o dever de respeitar. E espero que o divorcio requerido por meu marido me permita, daqui a algum tempo, regularisar esta situação.

Aqui está tudo. A falta das minhas noticias, minha boa, minha carinhosa segunda mãi, foi devida ao meu receio de afligil-a contando-lhe estas passagens da minha vida, que não podia, porém, continuar a ocultar-lhe. Perdôe essa falta áquela que lhe beija enternecidamente as mãos e que para si será sempre a ― Lili.

 

Lisboa, 1923 (?)