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Memórias duma Mulher da Época/O veneno da inveja

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O veneno
da inveja


 

Minha querida Lúcia: — Inquietou-me deveras a tua carta de ontem.

Recebia-a esta manhã, precisamente quando iniciava os meus trabalhos quotidianos de toucador. Entre parêntesis: não te admires de que eu classifique de trabalhos os cuidados de toilette, que todas nós reconhecemos como uma obrigação fundamental inerente à nossa qualidade de mulheres. Eu penso até, que se lhes deveria chamar trabalhos forçados. E isto por inúmeras circunstâncias que não irei desfiar agora, visto não ser êste o momento próprio para falar dessas coisas tremendas a que os homens chamam futilidades e que, sendo o nosso pedestal, são tambem o nosso calvário.

Foi, pois, entre um raio de sol e uma nuvem de pó de arroz, que eu mergulhei a vista na tua prosa aflictiva. A carta vinha toda impregnada dessa «espécie de neurastenia» de que te queixas e que é, em ti, afinal, uma doença crónica, de repetidas, repetidissimas crises, como essa que te acabrunha agora. Afirmas não encontrar, por mais que interrogues o teu espírito, causas para tão intenso sofrimento; eu, que tão bem te conheço e há tantos anos, pensei, pensei — e julgo tê-las encontrado. Médica espiritual da tua psicologia ingrata, apresso-me a dizer-te que o teu mal é, talvez, susceptivel de cura.

Investigando mentalmente, recordando factos, reunindo indícios, conclui, minha adorável Lúcia, que essas crises agudas coincidem sempre — é infalível — com qualquer triunfo, grande ou diminuto, de alguma amiga tua; um ligeiro ou sensível progresso de ordem material, um átomo impálpavel de felicidade; um passeio ao Bussaco, um vestido modelo; bagatelas, enfim, que assumem, para ti, proporções esmagadoras.

Interroguei-me, inquieta. Não, não devia tratar-se de mim. Na minha vida não houve, ultimamente, a menor alteração. Não tive herança alguma, não adquiri novas toilettes, ainda êste ano não viajei... Se tens, minha querida, qualquer apreensão sobre o alfinete cravejado de pedras rôxas, que noutro dia viste na banda do meu casaco, calma o teu sobressalto: trouxe-o de Paris, o ano passado, mas é falso, falsissimo; custou-me trinta francos numa lojinha encantadora do Passage Jouffroy.

Lembrei-me, então, das nossas amigas comuns. Recordei-as, uma a uma, passando-as em revista mental. E no meu cérebro, ofuscado, surgiu o clarão da evidência. Julieta mandou vir, há pouco, dois vestidos da Régny; Almira renovou o mobiliário da sala de visitas; e, para que a tua desdita chegasse ao cúmulo, o marido de Terezinha subiu um ponto na hierarquia burocrática.

Como deves ter sofrido, minha pobre Lúcia! Ante êsse feixe de más notícias, a tua alma sangrou, decerto, tanto como o corpo de S. Sebastião sob a chuva de fléchas que lhe valeu a palma do martírio e a bemaventurança eterna. Compreendo, compreendo. Mas é forçoso readquiríres o sangue frio. Domina êsses nervos. Está um dia lindo. Se soubesses que delicioso perfume chega, até mim, vindo das madresilvas do terraço! Isto é... enganei-me... Parece-me que os visinhos são quem verdadeiramente gosa o perfume das minhas madresilvas. E talvez, até, elas já estejam sêcas... Perdoa. Não me lembrava de que não tens flores nem terraço. A gente, ás vezes, comete destas gaffes.

Tranquilisa-te. O que precisas, antes de tudo o mais, é convencer-te de que o facto de invejares assim furiosamente todo o mundo, tem, como consequência única, o prejudicar-te, amarelecendo-te as faces, cavando-te os olhos, roubando-te o sono e fazendo sorrir os outros.

O velho proverbio «Nunca o invejoso medrou nem quem ao pé dêle morou», só na primeira parte pode considerar-se exacto, porque é certo que os invejosos não florescem. «Quem ao pé dêle morou» quere dizer, porém, os invejados. E os invejados florescem lindamente, formidavelmeate, como roseiras em Maio, como cravos no S. João.

Dir-se-ia que o fluido malévolo que em torno dêles paira, tem, ao contrário do que poderia supôr-se, propriedades adubantes, fecundantes, para desespero do próximo ruim, que desejaria vê-los sequinhos, mirrados como ramículos de carqueja velha.

Reflete, interroga as tuas reminiscências, recapitula as tuas sensações e serás forçada a concordar comigo.

Urge, pois, estrangulares a maldita serpente da inveja, que te corróe o espírito, que te arruina corpo e alma — sem prejuizo para mais ninguem. Foi para ti um agudo golpe a exibição dos dois modelos da Régny em que Julieta — feliz Julieta! — envolve, alternadamente, o corpinho ondulante? Pois bem, toma a desforra: corre a qualquer loja de modas de terceira ordem, escolhe um tecido de algodão de oito mil réis o metro, mas cujo estampado seja lindo; faze tu própria um vestido, segundo qualquer figurino gracioso

veste-o com naturalidade e elegância; sorri, procura ser benevolente. O que é a vida senão uma longa série de sacrifícios?

Se souberes ser encantadora, simples, suprindo pela graça o que te falta em opulência, até a própria Julieta se convencerá de que não vale a pena encomendar vestidos da Régny.

Almira renovou, ostentosamente, a sua sala de visitas? Os polimentos reluzem? As côres dos tapetes e dos estofos são frescas, vivazes, recordando a cada instante o Alcobia e o Castanheira? Tu, que não podes fazer outro tanto, não deves considerar-te em pior situação. Povoa de flôres as tuas jarras, substitue os cortinados por outros mais garridos, arranja um novo e vistoso bibelô. Em tua casa haverá mais encanto do que em casa de Almira, que está longe de ter bom gôsto e tem sempre viuvos, desolados, os seus jarrões custosos.

Há ainda o salto, aliás bem pouco extenso, com que o marido de Terezinha atingiu mais um grau do petipé resvaladiço da repartição. Mas como não depende de ti fazer com que a teu marido suceda outro tanto e o despeito que te devora é sentimento infecundissimo, o mais acertado será resignares-te e esquecer como as nobres heroínas dos romances a fasciculo.

Estou vendo, daqui, surpresa nos teus olhos verde-claros, nêsses olhos que investigam furiosamente a vida alheia, inventariando-a sem piedade. Adivinho que pensas, nêste instante: — «E' que eu nasci para viver em cenários de alto luxo, para envergar vestidos preciosos, para me cobrir de joias resplendentes, para levar uma vida de princesa milionária; nada disso possuo; e não me resigno a saber que outras, que não valem mais do que eu, têm tudo ou parte disso...» Pensas assim, não é verdade, Lúcia?

Mas quási todas nós nascemos — ou julgamos ter nascido ― para a grandeza e para a beleza. E como somos geralmente impotentes para alcançar a grandeza e a beleza pelo seu lado material, resta-nos um recurso, filão maravilhoso de alegrias sãs e legítimo orgulho. Esse recurso consiste em sentir e praticar coisas belas e elevadas, cultivando em nós mesmas a ternura, a generosidade, a indulgência, o amor pelos que sofrem. Isto é belo, é grande; e é, também, útil e fecundo.

Experimenta. Procura aplicar à tua alma envenenada o antídoto salvador que te aconselho. Eu sei que se melhante propósito é difícil de realisar por quem, como tu, se preocupa mais com a vida exterior do que com a vida íntima. Não posso deixar de sorrir ao supor-te torturada pela recordação do Rolls-Royce de Almira, a tentares interessar-te pela mulher da cave, que é pobre, está doente e tem quatro filhos pequenos, ou pela ninhada de gatitos sem dono que solta, no quintal próximo, uns miaus aflictivos... Exclamarás, então: «Meu Deus! Como custa ser boa

O hábito pode muito, porém, nêste mundo de fraquezas. E eu julgo que, exercitando a tua força de vontade, conseguirás preocupar-te muito menos com os triunfos fictícios de algumas mulheres, se te propuzeres vencê-las, por tua vez, à custa de muita despretenção, de muita generosidade, de infinita gentileza...

Demais, passar uma existência inteira a invejar e detestar os outros, deve ser muito fatigante.

Estuda bem a tua alma, minha querida Lúcia. Estou certa de que, se porfiares em seguir os meus conselhos, conseguirás exterminar a «espécie de neurastenia» que te empalidece a epiderme, te rouba o repouso noturno e faz sorrir maliciosamente as tuas e as minhas amigas...

 

Lisboa, 1929.