Memórias duma Mulher da Época/O problema
Dinora, em frente ao grande espelho oval, dava um geito ao penteado, inspeccionando, ao mesmo tempo, o estado do seu maquillage.
Margarida conservava-se sentada no amplo fauteuil, perna traçada, um dos cotovelos fincado no joelho, olhar vago, ar absorto. Zázá, a cadelinha negra, deitada aos pés da dona, seguia com os olhos vivos um minusculo insecto que volteava pelo ar. Na estante do piano via-se, aberta, uma peça de Moszkowski ea um canto do sofá jazia, esquecido, um livro de Blasco Ibañez, cuja capa mostrava uma tricromia, exotica.
Dinora punha uns ligeiros toques de carmim na face delicada, tendo tirado da pequena bolsa de brocado uma primorosa caixinha, auxiliar preciosa da sua coqueteria de mulher bonita. Ao vêr reflectida no espelho a atitude pensativa da amiga, sorriu.
— Tu hoje pareces muito preocupada, Margarida — disse Deves ter que desabafar. Eu vim passar o dia contigo, não só para me distrair mas tambem para te servir de alguma coisa e, no meu papel de confidente , cá estou esperando as tuas revelações... Apesar da incredulidade dos homens no que respeita á discreção da mulher, não resta duvida, de que qualquer de nós tem sabido ser para a outra uma verdadeira caixinha de segredos impenetravel para os estranhos, uma espécie de cofre de ferro, forrado com o mais macio dos veludos. O ferro para os outros, o veludo para nós.
Margarida aprovava, meneando a cabeça. De repente, desatou a rir.
— E olha que não teem sido banaes muitas das confidencias que eu te tenho feito — respondeu ―. Só a ti as faria, porque és a unica das minhas amigas que pode compreender-me.
— A nossa antiga convivencia tem grande parte nesta mutua confiança. Ora espera: ha quanto tempo nos conhecemos nós?
— De cabeça não posso fazer a conta, minha querida. Nem sei mesmo se conseguiria fazel-a com lápis e papel... Conheces a minha inteira incapacidade para a aritmetica, incapacidade que, afinal, nunca até hoje me prejudicou. Não sei, francamente, com que fundamento Sydney Smith afirmou, numa carta celebre a Miss Lucy Austin, que a vida sem a aritmetica seria uma coisa horrorosa...
— Horrorosa de prosaísmo foi essa a afirmativa que ele fez e que só uma pena masculina poderia traçar. Isso para mim é absurdo. No tempo de Adão e Eva com certesa não havia aritmética e, no entanto, eu estou convencida de que nossos pais se sentiam muito melhor, na sua ignorância, do que nós nos sentimos nêste século de cinematógrafos, telefónes, aeróplanos e máquinas de somar.
— Não sei se teu marido, na sua qualidade de homem moderno, aceitaria com prazer essa tua opinião...
— E que me importa que êle a aceite com prazer ou não? Mas, voltando a ti, Margarida, acho-te, como já disse, uma expressão desusada, inquieta. De que se trata?
Dinora deixára o espelho e viera sentar-se no sofá, perto da amiga. Um pouco curvada, percorria com uma das mãos, finas, esguias. lombo sedoso de Zázá, que brincava, agachada, com um pequeno novelo de lã vermelha, encontrado a um canto.
Margarida teve uma expressão de preocupada, olhando para o tapete. Parecia que lhe custava falar. Dinora, intrigada, parára de acariciar a cadelinha e não desfitava aquela mulher caprichosa, cujas estranhas idéas a interessavam sempre tanto. Margarida, por fim, decidiu-se:
— Ouve lá: ha dois homens que me cortejam agora, ao mesmo tempo, rodeando-me de atenções e inundando-me a casa de cartas e de flores. Não se conhecem um ao outro e, no entanto, dir-se-ia que porfiam em cativar-me...
— A grande coisa! Provavelmente estás cheia de dúvidas por não saberes qual dêles deve ser o escolhido, não? Não te conhecia essas hesitações!
— Não é isso. Não fales antes de tempo, por Deus! Ouve o resto. Um desses homens é intelectual; possue um espírito de élite, requintado, romântico. O outro, é um homem de belo físico, sem complicações psicológicas, cuja alegria, natural e viva, não deixa de ter o seu encanto.
— Mas, amas algum dos dois ?
Margarida hesitava. Baixou a voz.
— Dinora, tu não classifiques de monstruosidade o que vou dizer-te. Sucedeu-me hoje uma coisa que nunca me havia sucedido: amo ambos, sem dúvida alguma, com a mesma intensidade.
— !!!
Margarida continuava:
— Toda a mulher cria, no seu intimo, um tipo ideal de homem e eu, como as outras, construí, dentro do meu espirito, um ideal complexo, mixto de qualidades e defeitos, que me daria completa felicidade se porventura eu o encontrasse. Mas, minha querida, fiz ante-ontem vinte e nove anos e já me convenci de que só um homem que possuisse, reunidas, as caracteristicas de três ou quatro poderia dar inteira satisfação ás exigencias deste meu insubmisso feitio. Obstinando-me em esperar por esse gală fenomenal, arriscar-me-ia a ir envelhecendo, sempre insatisfeita com os episodios mais ou menos excentricos da minha vida. Dá-se o caso de encontrar, hoje, dois homens de caracter diverso, cujas qualidades e cujos defeitos formam exactamente o conjunto de que eu necessito. Quando oiço as palavras brandas e fantasistas dum, ocorrem-me logo, como complemento, as frases alegres, precisas, do outro; quando mantenho um dialogo vivo, terrestre, com aquele que te descrevi em segundo logar, sinto imediatamente a falta da imensa ternura espiritual do primeiro.
«Logo que descobri que gosta va muito de ambos, enfureci-me contra mim propria e quiz convencer-me de que necessitava fazer uma escolha; mas tive de confessar, intimamente, que qualquer dos dois, isolado, me causava a impressão d'um espelho baço em que a minha imagem não pudesse reflectir-se. O que quere dizer que ao fino cristal que um representa é preciso adaptar o aço forte representado pelo outro. Só assim eu poderia obter um espelho solido e cristalino, onde a minha vaidade, o meu espirito e o meu coração se mirassem conjuntamente, com prazer.
— Margarida, tu tornas-te imoral e arripias-me, — disse Dinora.
Margarida ria, nervosa; Dinora prosseguiu:
— Como querias tu que eu não classificasse de monstruosidade uma conclusão como a que acabas de tirar? E' admissivel que uma mulher inteligente e de gostos elevados, como tu, se embrenhe em tão abominavel teoria?! Tens de renunciar a essas extravagancias, minha querida, e é triste que seja eu, que sou muito inferior, sob todos os pontos de vista, quem tenha de dar-te conselhos razoaveis.
— Tu não me disseste, um dia, que achavas naturalissimo que um homem amasse, ao mesmo tempo, tres ou quatro mulheres, das quais uma poderia ser bela, outra inteligente, outra...
— Mas isso são eles!
— São eles?! E nós não devemos ter os mesmos direitos?
— Olha, Margarida, tu chama-me burguesa, como aquela madame Ferreira dali defronte; classifica-me de pobre de espirito, como a filha do bacalhoeiro da esquina; apoda-me de banal e vulgar, como quizeres, mas não tentes convencer-me de que uma mulher póde, dentro das leis do sentimento, dividir o seu amor por dois homens. Isso é impossivel e tu tens ou de escolher um dos dois ou de renunciar a ambos.
— Pois eu acho o meu raciocinio justissimo. O que me preocupa e me deve ter dado o ar perplexo que tu ha pouco notaste, é não encontrar a maneira de resolver este problema, de pôr em pratica, com tacto e habilidade, a teoria que tanto te escandalisa.
— Se essa teoria é absurda, Margarida! Nem tu a poderias pôr em pratica! Reflecte, pensa bem.
Margarida deitára para traz a cabeça fina e perversa, fitando no tecto os grandes olhos. Zázá, enroscada no tapete, dormia tranquilamente, já indiferente ao esvoaçar do pequenino insecto e ao novelo vermelho, abandonado a meio da casa. Dinora, fazendo girar com o indicador um cestinho de prata que estava sobre a pequena mesa redonda, preguntou, repentinamente, após alguns momentos de silencio:
— Então, Margarida, em que pensas?
— No que me disseste ha pouco. Com poucas palavras me convenceste ! Tens razão. Estive fazendo a minha escolha.
— Catavento! Mas ainda bem que concordas comigo. Por qual te decides? Pelo bel esprit? Não, pelo outro. Deve ser mais divertido.
E indo sentar-se ao piano, principiou a tocar, de cór e com ar travesso, um fox-trot buliçoso.
Lisboa, 1923.