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Memórias duma Mulher da Época/O transeunte

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O transeunte


 

Não era bonita; mas, como tinha uns olhos lindos e um cólo redondo, conseguia agradar. Seus pais não eram ricos; contudo, ela vivia mimosa e vestia com luxo.

Honestissima, duma virtude zelada dia a dia por uma família previdente, de moral apertada e criterio preconceituoso, passava ás vezes por cocotte aos olhos pouco perspicazes de certos homens grosseiros — porque eram excessivamente garridos os vestidos que usava e acentuado com exagêro o rouge que trazia nos seus lábios de virgem.

O olhar doce e o fresco sorriso captavam-lhe as simpatias masculinas; sabia-o, narcisava-se ao espelho, achava belo até, por vezes, o seu rostinho feio e insinuante — mas sempre a entristeceu o ser baixa e trigueira...

Havia nela um fundo romantico, um vago e secreto desejo de aventura, a custo acomodado ao bom senso burguês que lhe fôra sugerido, pouco a pouco, pela mãi — uma provinciana inculta e virtuosa, por algumas tias solteiras e inflexiveis e pelo pai, burocrata exacto e cumpridor. Quando a galanteavam, sorria, inocentemente vaidosa, feliz por ver-se requestada. Mas inventariava tambem teres e haveres de qualquer pretendente mais sério que se lhe dirigisse com fins himenescos — procurando secretamente informações e policiando com argúcia o alvejado. Dona dum coração sensivel e duma vaidade razoável, bistrava conscienciosamente os olhos, punha um geitinho tentador na sua boca tão grande como sorridente e dava esmolas minimas a todos os pedintes que lhe solicitavam caridade...

Realizaria as suas aspirações na vida prática, um homem rico e vulgarmente sensato; herois dos sonhos que lhe perpassavam, numa ou noutra tarde de preguiça romantica, pela cabecita crespa, eram-no certos tenores de voz aveludada, os «ases» dum qualquer torneio hipico e até atletas, disformes de corpo e incompletos de alma, dos que se exibem nesses tablados execraveis de coliseu...

Demorava-se nos institutos de beleza e nas casas de modas — feiazinha gentil que quere vencer na vida — e era rápida nos seus programas de ordem prática. Crente e religiosa, adorava tambem os perfumes de preço.

Casou. Casou numa manhã de outono com um homem pobre de espírito e avultado de bens, que lhe proíbiu o rouge, lhe mediu a altura das saias e lhe impoz o dever de sair pouco, fazendo-a renunciar a diversões mundanas. E ela habituou-se gradualmente a uma nova vida, filosofando, resignada, sobre o irremediavel e calando no seu intimo uma vaga saudade do rouge e dos vestidos curtos de solteira...

Mas, como não teve filhos, depressa o tédio a dominou. E passava horas por detrás da janela do seu gabinete de vestir, bordando bagatelas e observando, pela fenda das cortinas de tule, os transeuntes habituais ou ocasionais da rua tranquila em que morava.

Todos os dias passava ali um homem de figura esguia, distinto de aspecto, que trazia sempre no rosto pálido uma expressão de tristeza impressionante. Ela pensava muito nesse homem; e o seu geito romantico levou-a a sentir uma funda simpatia — despertada pelo mal imaginário ou verdadeiro do transeunte desconhecido.

Que sofrimento entristeceria assim o rosto alongado do daquele homem? Mal de amôr, uma doença incuravel ou simplesmente enfado de viver? Se fosse enfado de viver... Tambem ela o sentia, algumas vezes...

Foi-se-lhe tornando indispensável o ver todas as tardes aquele homem desconhecido que passava na rua. Por preço algum ela se denunciaria, abrindo a janela, fazendo com que ele a visse; a honestidade própria e os preconceitos do meio em que vivia tinham creado no seu espírito raizes vigorosas, que a sua fantasia não afectava naquele romance incolor e ignorado, nascido do vazio duma existencia inutil.

A hora a que passava o desconhecido melancólico era espiada com ânsia no relogio que mostrava, sobre a «psiché», uma forte matrona de bastão e com um mocho aos pés — Minerva aburguesada, simbólica, presidindo a um lar tambem simbólico e burguês. E eram então abandonados os pequenos lavores que mal preenchiam as longas horas de tédio, eram afastadas as sedas de bordar, atiradò fóra o dedal de prata e assestado por entre as cortinas um lorgnon impaciente. O desconhecido aparecia, caminhando no seu passo regular, com a mesma tristeza na face glabra, até se sumir na esquina. E ela ficava imóvel, pensativa, durante uns segundos; estendia de novo a mão fina para o eterno bordado, escolhia as sedas, procurava o dedal . E dava uns pontos distraídos até que o marido entrasse para jantar e continuasse a conversação de sempre — impressões sobre negocios de que ela nada entendia nem queria entender, projectos sobre a forma de aumentar a já sólida fortuna, essa fortuna que ela considerava inutil, visto que não lhe era permitida a vida mundana, visto que lhe era interdito o rouge e lhe eram proíbidas as saias curtas...

Uma vez, não se sabe porque influencia magnética, os olhos do transeunte desconhecido ergueram-se, com o mesmo véu de tristeza a ensombra-los, para a janela por detrás da qual ela espreitava. E ela recuou precipitadamente o busto, deixando caír o lorgnon, afogueada, atemorizada, como se êle pudesse vê-la, adivinha-la através das cortinas. Decorriam os meses. Saia pouco e mesmo assim á pressa, para voltar cedo, a tempo de vêr passar esse homem de quem nunca soubera o nome. Evitava, sempre que podia, receber vizitas àquela hora, defendendo o seu unico prazer, o prazer diário de seguir com um olhar de ternura compassiva alguem que não suspeitava sequer a sua existencia. Mas, um dia, necessitou de comprar chapéus, alguns desses chapéus escuros e discretos que usava desde que casára. E como de costume, saiu o mais cêdo que pôde, para que cêdo fosse tambem o regresso, pois não queria deixar de vêr, nessa tarde, o homem glabro e pálido que passava na sua rua tranquila...

Desceu do auto à porta duma casa de luxo, cujas vitrinas ostentavam modelos sumptuosos, dêsses que todas as escravas da Moda ambicionam para coroar as cabecinhas frivolas.

Desceu do auto — e estremeceu: junto duma porta estava o homem desconhecido e pálido, conversando com dois amigos. Mas, quanto ela o estranhou! Ao falar, perdia a sua expressão grave e triste, essa expressão que tanto a impressionára, que lhe fizera viver horas de sonho e lhe romantizára a existencia árida. Era cinico o rictus da sua boca e atrevido o olhar que ela se habituára a ver ensombrado de melancolia. E, para cúmulo, no momento em que ela, de olhos baixos, transpunha, a porta, uma frase de galanteio, mas de galanteio digno de rufião ébrio, partiu dos lábios do homem pálido.

Ela entrou, balbuciou umas palavras vagas e saíu pouco depois, sem saber a côr dos chapéus que escolhera. O homem pálido já não estava à porta. Ela aninhou-se no auto e sentiu frio, apesar da primavera reinar e o sol estar já doirado e quente...

Chegou a casa, pensativa, entristecida, com a fadiga moral de quem sentiu uma derrocada, uma derrocada dentro da própria alma. Foi à janela, cerrou mais as cortinas, trouxe para o meio da casa o pequenino fauteuil cor de rosa, em que habitualmente se sentava a olhar para a rua.

Com os braços pendidos e a cabeça encostada ap espaldar, quedou-se pensando, cismando, duas lágrimas a rebrilharem nos seus olhos lindos de feiazinha gentil...

E nunca mais — nunca mais — voltou para junto da janela, à tarde, a assestar por entre os cortinados um lorgnon impaciente.

 

Lisboa, 1928.