Memórias duma Mulher da Época/O regresso
Na semi-sombra do patamar silencioso, a mão de Filipe avançou, lentamente, para a campainha, Ele pensou ainda em retroceder, já depois de ouvido o som penetrante; mas logo uma cabeça feminina, a um tempo rude e hipócrita, surgiu atrás de meia porta subitamente aberta.
— A senhora está?
— Está, sim, senhor. Era favor dizer o nome.
— Filipe de Macedo.
Dentro cairam as cinco horas de uma tarde invernal. Filipe sorriu, reconhecendo o relogio. A criada, no seu passo abafado de fantasma, volveu para introduzi-lo. Ao penetrar na pequena sala cinzenta e cor de rosa, que tão familiar lhe fora, Filipe encontrou Camila aninhada entre almofadas, fumando, com o elegante desprendimento de sempre, um daqueles cigarros de ponta vermelha que êle tantas vezes lhe vira aproximar dos lábios.
— Por cá, Filipe?
— Admira-se?
— E' natural, não lhe parece? Sente-se aqui. Tenho muito prazer em vê-lo, creia!
— Devéras?
— Deveras.
— E' muito generosa.
— Que atitude esperava você que eu tomasse? Queria que o fléchasse de recriminações, que lhe manifestasse rancor e despeito? Não sou rancorosa, meu amigo. Quando há perto de ano e meio, você me anunciou que ia casar e que a nossa ligação terminava, senti, é facto, um certo abalo — naturalissimo ao fim de uma entente amorosa de três anos... Mas, passada a tormenta, ressurgi para a vida — l'amour s'en vient, l'amour s'en va — e aqui me tem, calma, feliz e curiosa por saber o que o trouxe.
— Feliz ? Você é feliz, Camila ?
— Actualmente, sou. E creio que tenho tanto direito a sêl-o como você ou qualquer outra pessoa. Mas não falemos de mim. Que foi que o trouxe cá?
— A minha doença.
— Nunca estudei medicina, meu amigo.
— Mas póde curar-me.
— Duvido. De que sofre ?
— Tédio da vida. Cure-me, Camila!...
— Tédio da vida? E casado há tão pouco tempo?
— Minha mulher é um anjo, mas já não me interessa nem mesmo como enfermeira. Conheço de cór todas as suas bondades e todas as suas puerilidades. A si, posso dizê-lo. Eu comparo o espirito dela, liso e transparente, ao vidro de uma janela: a gente ólha distraidamente para a rua através desse vidro, sem sequer pensar nêle, nem considerar a sua utilidade.
— Mas olhe que se o vidro quebra e entra a nortada...
— Não me parece provável.
— Isso depende da temperatura que haja em casa. Nunca fiando, meu amigo.
— Eu confio absolutamente. Em minha mulher, tudo é calmo, simples, natural. Não há, no seu modo de sêr, nada que me estimule, que me perturbe, que me dê essa efervescencia cerebral que me é indispensável na vida, no amor... Muitas vezes me tenho lembrado de si, Camila, dos seus caprichos, dos seus silencios misteriosos, dos seus relampagos de nervosa alegria, das suas ironias aceradas, dos seus assomos de paixão...
— Prodigiosa memória!
— Não ria assim, Camila. Veja que não consegui abafar por mais tempo o desejo de tornar a vê-la. Bem sei que fui ingrato para consigo, mas...
— Acho bem que tenha vindo vêr-me, mas suponho que não lhe passará pela cabeça a idéa de reatar...
— Porque não?
— Você está mais doente do que eu pensava, Filipe! O cerebro turvou-se-lhe. Então não sabe que amôr uma vez deixado é amôr envenenado? Eu não poderia voltar a sêr para si o que já fui. Teriamos ambos a sensação de tomar um licôr dessorado, um licôr que houvesse perdido tudo: a força, a côr, o perfume... Não, Filipe, não! Além do quê, você é casado; deve-se a sua mulher.
— Mas oiça, Camila...
— E' assim, acredite, é assim! Demais, visto que você apareceu, julgo ter o dever de avisá-lo de uma coisa...
— De quê?
— Disto, que eu penso poder ser grave para si: há, entre os meus amigos, alguem que está apaixonado por sua mulher.
— ?!
— E' verdade. Um homem novo, interessante de fisico e de espirito, que pensa nela há muito tempo já.
— Quem é ?
— Não posso, evidentemente, dizer-lhe o nome. Compreende, decerto, que dêvo ser discreta. O que posso dizer-lhe mais é isto: sua mulher sabe que êsse homem a ama.
— Sabe?
— Sabe, sim. Êle declarou-lhe o seu afecto, quatro ou cinco mêses antes dela casar consigo. Simplesmente, já estava noiva e cumpria-lhe esquivar-se.
— Está bem certa do que diz, Camila ?
— Absolutamente certa. Bem vê, se o não estivesse não ousaria falar-lhe no assunto. Ora, aqui entre nós, Filipe, parece-lhe coisa de espantos que se você traísse o seu estado de espirito junto de sua mulher, ela se recordasse de que há um homem que a adora e pensasse que, se o tivésse desposado, seria talvez mais feliz?
— Mas ela não póde adivinhar o que eu penso. Exteriormente, continúo sendo o mesmo.
— As mulheres adivinham sempre essas coisas, meu ingénuo Filipe. Por exemplo: Você supoz, quando me anunciou o nosso rompimento, que essa noticia vinha colher-me desprevenida? Não vinha, não. Eu tinha já pressentido em redor de nós qualquer coisa de vago, de indefinido, de dolorosamente impalpável, mas que existia. Somos assim, que quere?
— Pois julga que minha mulher?
— Julgo, julgo! E julgo mais que não há mulher alguma que não sinta prazer em sêr amada, mesmo de longe. E julgo ainda que, nesta época de facilidades sentimentais e práticas, do descontentamento ao divorcio vai um passo. E do divorcio a novo casamento...
— Você tornou-se má, Camila!
— Eu?! Que idéa, meu amigo!
A perspectiva afunilada daquela rua solitária era cinzenta, tristonha, fechada por nuvens côr de chumbo. As casas burguesas, de ar tranquilo, dir-se-iam todas semelhantes e as cortinas das suas triplices filas de janelas pareciam iguais. O «taxi» corria, corria pelo empedrado fóra. E logo outro surgiu em sentido inverso. Filipe debruçou da portinhola a cabeça suspeitosa. «O outro, êsse que amava sua mulher, saberia onde êles residiam? Quem sabe se se atreveria a vir rondar a casa?... Ou seria tudo mentira da Camila? Ela estava mudada. Dantes parecia adorá-lo. Agora... As mulheres, as mulheres ! Sabe-se lá, nunca!»
Á luz baça do crepusculo, Filipe desceu do «taxi» e transpôz a larga porta de sua casa. Encontrou sua mulher bordando Richelieu, plácidamente, sem pó de arros, um anel de cabelo caído na testa erguida para o beijo habitual.
— Já?
— Já, sim. Passei uma tarde fastidiosa. O mundo exterior fatiga-me cada vez mais... Paz, só junto de ti, na nossa casa. Vais vêr que, de hoje em diante, voltarei sempre cêdo.
Cá fóra chuviscava. Filipe acercou-se da janela e atentou nos vidros, embaciados por dentro, salpicados por fóra. Volveu depois os olhos para sua mulher, cuja cabeça juvenil, inclinada sobre o bordado, lembrava uma flôr pendida. Começou, involuntariamente, a vê-la sob um aspecto novo, vagamente inquietante. Aquele cerebrosinho calmo, vulgar, que êle supunha conhecer tão bem, seria, afinal, susceptivel de raciocinios complicados? Recordou as palavras de Camila. E, pela primeira vez, o acicatou o receio de, num momento infeliz, surpreender embaciada, salpicada como os vidros da janela, aquela alma simples e transparente, através da qual ele costumava olhar, entediadamente, para o mundo...
— Está lá?
— Sou eu, querido! Camila... Como vais? Tenho, tenho muitas saudades. Vens, dentro de cinco minutos?... Sim, podes vir. Esteve aqui até há pouco uma visita um tanto incómoda. Vi-me obrigada a inventar uma história qualquer, para afugentar o importuno...
— ......
— Deu resultado, deu. Teve infinita graça...
— Sim, logo te conto. Não te demores, meu amôr.
Lisboa, 1928.