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Memórias duma Mulher da Época/O tutor

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O tutor


 

Antes de sair do quarto, naquela noite inolvidável, demorei-me muito tempo em frente do espelho. Recordo-me de ter ageitado a gravata e alisado com a mão os meus cabelos grisalhos. Encontrei poucas rugas no meu rosto; verdade seja que o quebra-luz, côr de laranja e preto, era muito benevolo e pouco transparente...

Minha irmã, saíra, havia pouco tempo. No outro extremo da casa, sózinha no salão de música, Lídia tocava piano. Pareceu-me que executava a «Marcha Heroica»; marcha de acordes vibrantes, intensivos, que animava os meus nervos doentes, excitando-me, electrizando-me. Caminhei para a porta, resoluto. Brotavam-me no cerebro, espontaneamente, todas as palavras que, dali a alguns minutos, deveria dizer: — «Ouve, Lídia: tu tens visto em mim, até hoje, apenas o teu tio e tutor. Vais fazer vinte anos e há oito que vives nesta casa. Pela tua cabecinha inexperiente nunca passou a ideia de que eu sou um apaixonado da graça e da beleza e que, ao vêr que te metamorfoseavas de criança gentil em mulher adorável, tinha forçosamente de transformar-se em paixão exaltada o meu antigo afecto calmo, quási paternal. Ha meses que penso fazer-te esta confidencia, submetendo-te o meu destino, tornando juiz desta paixão outonal a tua mocidade radiosa. Resolvo, hoje, dizer-te tudo. Que irá suceder? Serei sempre, para ti, o tutor que já fez quarenta anos, que te conheceu pequenina, que tem alguns cabelos brancos, algumas rugas e não poucos desenganos do mundo? Ou quererás lembrar-te de que, fazendo-me a dádiva inebriante da tua alma em flôr, serias, ao mesmo tempo, uma rainha a quem eu beijaria os pés em horas de comoção profunda, uma boneca com quem eu brincaria, infantilmente, ás vezes; um idolo a quem eu adoraria de joelhos, em momentos de amorosa devoção? A minha idade dobra a tua, é certo; mas tambem é verdade que devo morrer muito antes de ti. Poderias, talvez, depois de haver feito a ventura suprema dos meus ultimos anos, gozar ainda uma segunda vida, conhecer novos amores. Não sou, bem vês, muito egoista... Seja o que fôr que penses, peço-te que mo digas com a tua ingénua e habitual franqueza, porque eu aceitarei sem discutir, esmagado pela dôr ou entontecido pelo júbilo, a sentença que tu proferires».

Dispunha-me a dizer tudo isto...

Deslizei pelo corredor; entrei no salão de música. Lídia já não tocava a «Marcha Heroica». As suas longas mãos premiam o teclado, plangentemente, numa canção russa, melancólica e derrotista. Fraquejou-me o ânimo, ao ouvi-la... Fechei devagarinho a porta; Lídia não me vira entrar.

Avancei, pé-ante-pé, e coloquei-me quási por tráz dela; continuava a tocar, sem dar por mim. Quiz interrompê-la, obrigá-la a cessar aquela música depressôra, que gelava todo o meu entrain inicial. Mas não logrei pronunciar uma palavra e conservei-me imóvel, fitando imbecilmente uma jarra de velho Japão, que luzia as exóticas pinturas sobre uma estante baixa, entre duas janelas. Consegui desviar dali os olhos, que se fixaram logo, sem razão aparente, no fecho de platina que segurava, na delicada nuca de Lídia, as duas pontas do seu colar predilecto. Tornei, depois, a olhar para o jarrão; pareceu-me que as figuras que o adornavam iam crescendo, aumentando, até tomarem proporções inverosimeis. O quimono de uma delas já excedia, em muito, a superficie da jarra...

Lídia voltou a página. Fitei, de novo, o fecho do colar; de pequenino e cilíndrico tornara-se volumoso, irregular, de formas extravagantes... E eu não estava ébrio; o que me alucinava era o desespero íntimo de sentir que a minha resolução de falar se desvanecia numa onda de cobarde timidez. Compreendi que se não falasse naquela noite não falaria nunca — e teria de perder Lídia, a imperatriz dos meus sonhos, que dentro em pouco abriria às tentações do mundo a sua alma a florir.

Os meus olhos subiram da nuca de Lídia ao jarrão; o quimono, de uma atenuada côr de rosa, tornára-se de um vermelho-sangue...

Lídia cantava agora uns versos franceses, adaptados à canção do Volga. E eu tive, então, a certeza enlouquecedora de que não falaria — nem naquela noite nem nunca —, de que Lídia seria de outro, sem suspeitar, em toda a sua vida, do amor insensato que eu lhe tinha. Fiz um esforço supremo, adiantei um passo — e entreabri os lábios. O meu olhar encontrou, nesse segundo, o espelho oval da parede fronteira. A luz do salão não era mentirosa, como a do meu quarto... Vi numerosas rugas em tôrno dos meus olhos, vi como a fadiga me vincára as feições. Nunca tinha visto tão nitidamente, nem mesmo nos dias de mais claro sol, a devastação irremediável que me desesperava agora... Soltou-se-me dos lábios um gemido; fugi para o meu quarto, como louco. Ouvi ainda um grito da assustada Lídia.

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Não falei nunca — e Lídia vai casar. Envelheci ainda mais, tornei-me misantropo. Ela própria acha-me insuportável. Rasguei o quebra-luz côr de laranja e preto que havia no meu quarto. Trago o meu coração prêso às grilhetas do raciocínio e quando êle, insubmisso e revolucionário, se debate, corro ao espelho. Logro, assim, dominar este escravo com alma de Espartaco que mora no meu peito. O espelho é, hoje, o meu fiel, o meu único amigo...

 

Lisboa, 1929.