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Memórias duma Mulher da Época/Um chá da meia-noite, nas avenidas novas

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Um chá da
meia-noite,
nas Avenidas
Novas


 
Salão burguês, banal e confortável. Onze e meia da noite. Algumas senhoras ensossas e uma picante; um escritor modernista, dois militares relusentes e de cabeça ôca, um antigo conselheiro, já corcovado e de cabeleira branca e mais dois vagos sujeitos que ninguem sabe quem são. Ambiente familiar.

A DONA DA CASA (meia-idade, aprumada, falar meigo, em voz baixa á senhora picante) — O conselheiro é muito distinto, não é?

A SENHORA PICANTE (no mesmo tom) — Assim, assim. Os colarinhos é que não estão grande coisa...

A DONA DA CASA — Coitado... Ele é viuvo...

A SENHORA PICANTE — Mas não tem uma governante em casa?

A DONA DA CASA — Parece que sim. Em geral todos os conselheiros viuvos têm governante.

UM DOS MILITARES (que ouviu a frase, desageitadamente e em voz alta) — O primeiro foi o Acácio.

O CONSELHEIRO — Quem é o Acácio?

A DONA DA CASA (atrapalhadamente) — O Acácio Rodrigues, um sujeito que morava ali defronte e morreu a semana passada...

O CONSELHEIRO — Não conheci.

A SENHORA PICANTE — Era bom rapaz...

O Conselheiro espirra com estrondo. O outro militar ampara precipitadamente uma jarra que estremeceu com o espirro e está sobre a mêsa a que o Conselheiro se encosta.

A DONA DA CASA (a um dos sujeitos vagos) — Oh, sr. Menezes, que vento! Era melhor fechar a janela, não acha? (O interpelado vai, pressuroso, fechar a janela).

O OUTRO SUJEITO VAGO (ao escritor modernista) — Você já encontrou aquele fim de capitulo que ia procurando, ontem, á tarde, no Chiado?

O ESCRITOR (com pose) — Sim, já. Foi curioso; encontrei-o precisamente no momento em que um cauteleiro pisava uma senhora que ia a passar. A pobre criatura deu um grito doloroso e ergueu os olhos ao céu; eu, sem querer, ergui tambem os meus e fixei-os num para-raios. Uma inspiração súbita... Até ali, não sabia bem se o capitulo devia terminar com a heroína emmudecida, entregue a um silencioso desespero, ou se devia mostrá-la fisicamente exaltada . Decidi, naquele momento, fazê-la soltar um grande grito...

A DONA DA CASA (com ar de aprovação) — Muito bem pensado... (ao militar que lhe fica mais perto) Olhe, Major, porque não chega a cadeira mais para diante! Vem-lhe frio daí, da fenda da porta... (Para o escritor) Então sempre acabou o capitulo com o tal grito?

O ESCRITOR — Sim, minha senhora, com o grito. (Procurando na memoria) Não me lembro bem de cór...

UMA DAS SENHORAS (num vago receio) — E' muito grande?

O ESCRITOR — Não, minha senhora. Nem eu sei dizer senão as ultimas palavras.

UM DOS SUJEITOS VAGOS (venenosamente) — Diga lá, homem; naturalmente não chegamos a ver isso impresso...

O ESCRITOR (com dignidade, depois de ter para o sujeito vago um rápido olhar de desdem)... E Leonorela...

A SENHORA PICANTE — Leonor quê?!

A MULHER DO ESCRITOR (que tem estado calada até então) — Leonorela. E' assim mesmo; é o nome da protagonista.

A SENHORA PICANTE - Ah!....

O ESCRITOR (continuando) — ...E Leonorela, agitando enlouquecida os braços, os braços longos e flexiveis como bambús, soltou um grito, um grito enorme, perfurante, colorido de rubro. E êsse grito elevou-se nos ares como um aerostato de dôr, ziguezagueou, espiralou, contorceu-se e foi cravar-se, como uma flexa, no infinito...

O CONSELHEIRO — Magnifico!

A DONA DA CASA — E' de um grande efeito.

A SENHORA PICANTE (entre-dentes, para a que lhe fica ao lado) — Que chorrilho de tolices!

UM DOS MILITARES (para a mulher do escritor) — Seu marido é um idealista, minha senhora.

A MULHER DO ESCRITOR (convicta) — Sim, êle lá tem as suas idéas, isso tem...

(Uma criada traz o chá. Todos se servem. A conversação esmoreceu).

A DONA DA CASA (para o conselheiro) — Um pouco mais de assucar, conselheiro.

A SENHORA PICANTE (baixinho, para a confidente de sempre) — Parece impossivel que ainda haja conselheiros; já não são homens, são múmias...

UMA OUTRA SENHORA (para o auditorio) — Está-me a lembrar o chá que tomei, noutro dia, em casa da mulher do Moreira Alves. Sabía a mofo que era um horror!

A SENHORA PICANTE — Eu já lá comi uma vez uns bolos que pareciam petrificados. Comi, não; roí... Tive a impressão de seixos antidiluvianos!

A DONA DA CASA (meigamente) — Coitada! Ela está insuportável, de presunçosa.

A OUTRA SENHORA — Admira não ter aparecido hoje por cá...

A DONA DA CASA — Foi a um concerto; mas é capaz de aparecer ainda, na volta para casa... Aqui entre nós, não faz grande falta; tem, ás vezes, gaffes de abismar...

A SENHORA PICANTE — Aquela vez que ela disse ao conselheiro a sua opinião sobre a idade dos homens...

O CONSELHEIRO — Bem me lembro: disse-me que os homens se tornavam detestáveis a partir dos cincoenta, sem se lembrar de que eu já tenho setenta e oito! Pois não pareço mais novo! Eu não me importei... Ela disse-o; as outras não o dizem, mas pensam-no...

A DONA DA CASA (com ar escandalisado) — O' conselheiro!

TODAS AS SENHORAS (em coro) — Por amor de Deus, senhor conselheiro!

A SENHORA PICANTE — Toda aquela familia é inconveniente; a mãi, as irmãs, as sobrinhas... Mas a Moreira Alves é ainda mais inconveniente do que todas elas juntas... Poucochinho, mas é.

UMA OUTRA SENHORA — Pretenciosíssima...

A DONA DA CASA — Duma afectação irritante...

O CONSELHEIRO (irónicamente) — Em conclusão, uma indesejável...

(M.me Moreira Alves aparece á porta, trivial e sorridente. Todos se levantam; as senhoras com ar alvoroçado).

M.ME MOREIRA ALVES — Fui hoje ao concerto da Maria Moniz, mas não quiz deixar de passar por cá...

A DONA DA CASA (com vivacidade) — E fez muito bem! Estavamos agora, justamente, a lamentar a sua falta...

A SENHORA PICANTE — E' que a M.me Moreira Alves, bem sabe, é insubstituivel nestas reüniõesinhas...

(M.me Moreira Alves sorri, lisongeada. A conversação generalisa-se... Do seu cantinho, o conselheiro sorri, com finura).

 

Lisboa, 1927.