Memórias duma Mulher da Época/Clotilde, Clarinha, Clarisse
CLOTILDE — E a «Mademoiselle» ainda está rabujenta?
CLARISSE — Ai, menina! Cada vez pior! Agora até diz coisas feias, quando a D. Aurora não póde ouvi-la. No último dia que lá estivemos lhe ouvi eu dizer, por entre dentes: — Sacredieu!
CLOTILDE (escandalisada) — Ah!
CLARISSE — E não quere, agora, nem por sombras , que a gente chegue á janela, nem mesmo do lado do jardim! Está insuportável!
CLARINHA — Sim, ela não quere que nós cheguemos á janela, mas morre por espreitar a filha do Moreira, quando o namorado, á noitinha, se põe aos beijos a ela...
CLOTILDE (interessada) — Quem é o namorado da filha do Moreira?
CLARISSE — E' um estudante da Politécnica, chamado Valente...
CLOTILDE — Valente? Espera lá; é um alto, muito trigueiro?
CLARISSE — Sim, sim! Tem cabeça de bico!
CLOTILDE — Bem sei quem é. Dansei com êle um cotillon, o ano passado, nas Caldas.
CLARINHA — Tem um ombro mais alto do que outro.
CLOTILDE — Para pôr defeitos em cada um ainda não vi como vocês! Pois eu acho-o muito simpático e muito bem educado. O que eu não sabia é que êle namorava aquele pão sem sal da filha do Moreira.
CLARISSE — Eu não dava um passo por êle. Tem uma cabeça assim... não sei como... muito exquisita. Eu só gostaria dum rapaz bem parecido, que vestisse bem e não tivesse mau génio...
CLOTILDE — Naturalmente eras capaz de gostar dum manequim de cêra, como o Luiz Lopes.
CLARISSE (picada) — Chama-lhe manequim de cêra... Tomáras tu que êle te fizesse a côrte...
CLOTILDE (desdenhosa) — Eu?! Eu não gosto de bonecos de montra. A gostar, era dum homem de carne e ôsso!
CLARISSE (trocista) — E de cabeça de bico!
CLARINHA (conciliadora) — Acabem lá com isso. Olhem: o que eu acho é que em a gente tendo de gostar, gosta, pronto! Seja feio ou seja bonito! Eu, por exemplo, não gosto de homens baixos nem de homens loiros, mas tenho a certeza de que se me aparecêsse um, baixo e loiro, que soubesse cativar-me e convencêr-me, caía no laço, sem querer saber de mais nada!
CLOTILDE — Eu gosto dos homens muito magros e muito trigueiros...
CLARISSE — Mas é o teu tipo... Não devias gostar...
CLOTILDE — Mas gósto. Gósto assim como o doutor Girão.
CLARINHA — Quem é o doutor Girão?
CLOTILDE — É um amigo do padrinho, que vem ás vezes cá á quinta.
CLARISSE — Que idade tem êle ?
CLOTILDE — Já passa dos trinta.
CLARISSE — Ih! Trinta anos! É quási velho!
CLOTILDE (irritada) — Tu não sabes o que dizes! Só queria que o visses — ainda hás-de vê-lo — e que me dissésses depois se dava ou não dava um marido ideal!
CLARISSE — Ora! Nós, em solteiras, sabemos lá se um rapaz é ou não é um marido ideal! Só depois de casar é que essas coisas se sabem. Antes disso... Eles enganam a gente, com aquelas palavrinhas sentimentais! O Valente, que está sempre a rir e aos beijinhos á namorada, é capaz de se tornar sêco e mal humorado, se viér a casar com ela... Foi o que sucedeu ao marido da tia Amélia, disse-mo ela mesma.
CLARINHA — A filha do Moreira fez mal em dar aquela confiança ao rapaz. Eu é que não consentia uma coisa daquelas... Até me arripio toda!
CLARISSE — Eu tambem não admitia aquilo. É de mais!
CLOTILDE — Vocês não admitiam?! Eu sempre queria vêr... Gostando-se muito dum rapaz, faz-se tudo quanto êle quere... A não sêr assim não é amor a valêr...
CLARINHA — Pois tu deixavas um homem dar-te um beijo antes de casar?!
CLOTILDE — Porque não? É uma coisa tão natural!...
CLARISSE — Ó Clotilde, pois tu não tens vergonha de dizer isso?!
CLOTILDE (rindo a bom rir) — Eu, não! (Clarinha e Clarisse riem tambem).
CLARINHA (baixando a voz) — Querem vêr que já experimentaste?!
CLOTILDE (muito vermelha) — Schiu!
CLARINHA (cheia de curiosidade) — Pódes contar, que nós não dizemos nada a ninguem.
CLOTILDE (que está morrendo por fazer as suas confidencias) — Nada, nada!
CLARINHA (quási suplicante) — Conta!... Conta lá! Nós não dizemos nada seja a quem fôr!
CLOTILDE — Vocês juram?
CLARINHA e CLARISSE (em côro) — Juramos!
CLOTILDE (baixinho) — Pois é verdade. Já experimentei...
CLARINHA (no mesmo tom) — Quem foi? Foi o tal doutor Girão? (Clotilde meneia afirmativamente a cabeça) — Eu já calculava! Como foi?
CLOTILDE — Ora, foi ao pé do muro, ali adiante, junto da nespereira... Êle tinha vindo visitar o padrinho e eu ía acompanhá-lo até ao portão.
CLARISSE — E como foi que êle fez?
CLOTILDE — Foi de repente... Eu tinha parado, a olhar para o céu... a vêr um bando de passarinhos... e êle, zet! Deu-me um beijo na face esquerda...
CLARINHA — Eu faço idéa do susto que tivéste!
CLOTILDE — Qual história! Não tive susto nenhum. Ele é muito simpático. Foi só uma certa confusão...
CLARISSE — E já tornou a fazer o mesmo?
CLOTILDE — Só na segunda-feira é que volta cá; isto foi na quinta. Agora, que vocês cá estão, não póde sêr, mas depois é natural que sim... O que teve graça é que eu, com a surpreza, deixei caír uma rosinha que levava na mão; êle abaixou-se para ma apanhar mas — não sei como aquilo foi — saltou-lhe do bolso um postal com o retrato duma rapariga com tipo de estrangeira. Eu, para disfarçar a confusão em que tinha ficado, preguntei-lhe quem era. — Fez-me lêr: Un bon souvenir de votre amie Margueritte — e disse que era uma rapariga com quem costuma passear muito, quando vai á Belgica... Parece que é professora, não sei bem... Tambem me disse que eram simples camaradas e que nunca lhe tinha dado um beijo. — Nunca lhe deu um beijo? — preguntei-lhe eu. E êle respondeu-me, assim muito frio: — Não. Para quê?!
CLARINHA — Ah! E tu?
CLOTILDE — Eu fiquei intrigada e disse-lhe: — Então... e agora em mim... para quê?!
CLARISSE — Ah! E êle?
CLOTILDE — Sorriu... e não respondeu.
Lisboa, 1923.