Memorial de Aires/1888/CXII
Mana Rita foi hoje ao cemitério levar flores aos nossos.
— Você não imagina; acordei às cinco e meia para me vestir e estar cedo em São João Batista. Cheguei às oito e pouco; achei muita gente, não tanta, porém, como há de ser logo, à tarde. Não vim buscar você, porque sei que não iria.
— Pois eu fui à missa da Glória.
— A igreja é perto.
— Talvez fosse ao cemitério. Muitas sepulturas bonitas?
— Bastantes; entre elas a do marido de Fidélia. As coroas e flores que ela encomendou há dias lá estavam bem dispostas e faziam grande efeito; parece que o desembargador mandou também o seu ramo; estava escrito numa fita.
— Vocês falaram-se?
— Não; ela já tinha saído.
— Como sabe você que ela é que foi levar as flores e coroas?
— Adivinha-se pela disposição.
— Sim?
— Decerto, mano. A disposição, o arranjo, a combinação, tudo era de mulher. Há dessas coisas que mão de homem não faz; mão de homem é pesada ou trapalhona, e mais se é de desembargador, como ele. Por exemplo, o nome do marido, o nome próprio só, não todo, estava cercado de perpétuas; isto é coisa que só uma senhora inventa e faz. As outras flores, rosas e papoulas, distribuíam-se com tal simetria que pediu tempo e gosto. Um homem chegava ali, pegava das flores e espalhava-as à toa.
— Admira que você a não visse.
— É que foi muito cedo.
— Mas num dia como o de hoje, tendo tanta coisa que arranjar. Daquela vez que a encontramos era mais tarde.
— Era, mas o dia era outro; hoje havia muita gente, não quis que a vissem, é o que foi.
Mana Rita desenvolveu esta idéia, que achei aceitável; depois falou de outros jazigos. Como dos jazigos passamos ao ministério e a D. Cesária não me lembra, mas falamos dele e dela com interesse, e a mana com graça. Tinham estado juntas as duas, ontem à tarde; Rita desculpara-se de não ter lá ido no dia 28. Contou-me parte do que lhe ouviu acerca de duas pessoas que lá estiveram...
— Que lá estiveram?
— Parece que sim.
E entrou a repetir uma série de anedotas e ditos, que ouvi durante uns dez minutos, com atenção. A maledicência não é tão mau costume como parece. Um espírito vadio ou vazio, ou ambas estas coisas acha nela útil emprego. E depois, a intenção de mostrar que outros não prestam para nada, se nem sempre é fundada, muita vez o é, e basta que o seja alguma vez para justificar as outras. Disse isto a Rita por palavras graciosas, que ela reprovou e deitou à conta da minha perversidade.