Memorial de Aires/1888/CXXII

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A marinha está quase pronta. Mana Rita veio encantada da tela, da autora e da dona, porque Fidélia destina a obra a Dona Carmo. Esteve só com as duas amigas; não achou lá Tristão nem Aguiar, e conversaram as três longamente, até que a viúva se despediu e tornou para Botafogo, apesar de instada para jantar no Flamengo; não podia e partiu antes de cair a tarde.

Rita ficou e ainda bem que ficou, porque ouviu a D. Carmo a notícia do amor de Tristão, com um acréscimo que aqui vai para ligar ao que escrevi nestes últimos dias. Esse acréscimo é nada menos que o desejo de D. Carmo é de os ver casados.

— Digo isto só à senhora e peço-lhe que não conte a ninguém, acabou D. Carmo, eu gostaria de os ver casados, não só porque se merecem, como pela amizade que lhes tenho e que eles me pagam do mesmo modo.

Rita achou que D. Carmo dizia verdade, e achou mais que, casando-os, teria assim um meio de prender o filho aqui. A mana é dessas pessoas que não podem reter o que pensam, e confiou logo o achado à amiga. D. Carmo sorriu com expressão de acordo; e foi o que pensou e me disse a própria Rita. Também assim me pareceu, mas eu quis deitar a minha gota de fel do costume, e disse:

— Talvez a terceira razão seja a principal, se não foi única.

Rita acudiu que não. Única não era, não podia ser. Eu, por maldade e riso, teimei que sim, mas dentro de mim acabei concordando com ela. As três razões podiam combinar-se bem naquela senhora. A última, quando muito, daria maior alma às duas primeiras: era natural. Não tardaria a perder o filho postiço, que se vai embora, e a filha de empréstimo pode vir a amar outro e casar, e ainda que não saia daqui, seguirá outra família. Unidos os dois aqui, amados aqui, tê-los-ia ela abraçados ao próprio peito, e eles a ajudariam a morrer. Resumo assim o que pensei e agora confirmo, acrescentando que o confiei também à mana.

— O que eu disse há pouco foi por gracejo; acho que você tem razão. E parece-lhe que ela alcance o que deseja?

— Não afirmo nem nego, mas já me parece difícil; aqui está por quê. Tristão e Aguiar chegaram pouco antes da hora de jantar, e jantamos. Aguiar indagou da pintura, D. Carmo respondeu-lhe, ele ouviu com interesse, e creio que ele e ela olharam alguma vez para o afilhado; Tristão não dizia nada; parecia até não atender ao que eles diziam.

— Talvez fingisse.

— No fim do jantar, antes do café, Tristão declarou aos padrinhos que talvez parta antes do fim do ano...

— Antes?

— Antes.

— E eles não sabiam?

— Parece que não, porque ficaram desconsolados, e o jantar acabou triste.

— Mas como é que ele não dissera isso ao padrinho, vindo com ele de fora?

— Não vieram juntos; Tristão chegou depois do Aguiar. Pensávamos até que jantasse fora de casa. Foi assim; no fim deu notícia da partida. Contou que uma carta atrasada... mas não mostrou a carta; terá mostrado depois que saí de lá.

Pensei comigo, e expliquei:

— Mana, pode ser até que não haja carta nenhuma; ele foge-lhe, não tem esperanças, quer ir quanto antes. Já isso de chegar tarde a casa prova que não quer encontrar a viúva; é o que é. Os dois velhos não procuraram dissuadi-lo da resolução?

— A princípio não disseram nada; ficaram acabrunhados. Depois o Aguiar entrou a dizer alguma coisa, que D. Carmo ouviu e apoiou apenas com os olhos; estava triste, e para me não deixar só, falava comigo; eu respondia apertando-lhe os dedos com piedade sincera. Olhe, mano, até eu cuidei de pedir ao rapaz que se demorasse mais tempo. Ele agradeceu a minha intervenção com um sorriso também triste, mas declarou que não podia; pedem-lhe muito que volte.

— Bem, disse eu rindo, você mostrou aí que se compadeceu da amiga D. Carmo, mas você esquece agora neste mês de dezembro a aposta que fez comigo no princípio de janeiro. Não se lembra do que me disse no cemitério? Não apostou que a viúva Noronha não tornaria a casar? Como é que pediu hoje ao Tristão que ficasse, — com o pensamento íntimo de o ver casar com ela?

Concluí pegando-lhe no queixo e levantando-lhe o rosto para mim, que estava de pé. A mana confessou a contradição e explicou-a. Antes de tudo, o seu pensamento era poupar a tristeza da amiga; seriam alguns dias ou semanas mais que passariam juntos, eles e o afilhado. Mas bem podia ser também que Fidélia, aconselhada por eles, acabasse desposando Tristão; as circunstâncias seriam outras.

— Logo, eu tinha razão naquele dia?

— Inteiramente não; mas tudo pode acontecer neste mundo.

— Neste mundo e no outro.

Quis acabar a conversação notando-lhe que, a despeito do pedido de D. Carmo, quando lhe confiou a intenção recôndita e lhe recomendou segredo, ela acabava de me revelar tudo; mas o coração tolheu-me o remoque, por mais fraternal e inocente que me saísse. Podia ressentir-se, e ela não o merece; ela é boa.

Em resumo, pode ser que Rita tivesse razão no cemitério. Se a viúva Noronha, como lá escrevi há dias, foge a si mesma, é que tem medo de cair e prefere a viuvez ao outro estado.