Memorial de Aires/1888/XVII

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Ontem, indo jantar a Andaraí, contei a mana Rita o que ouvi ao desembargador.

— Ele não disse nada da sobrinha?

— Todo o tempo foi pouco para falar da gente Aguiar.

— Pois eu soube o que me faltava de Fidélia; foi a própria D. Carmo que me contou.

— Se a história é tão longa como a dela...

— Não, é muito mais curta; diz-se em cinco minutos.

Tirei o relógio para ver a hora exata, e marcar o tempo da narração. Rita começou e acabou em dez minutos. Justamente o dobro. Mas o assunto era curioso, trata-se do casamento, e a viúva interessa-me.

— Conheceram-se aqui na Corte, disse Rita; na roça nunca se viram. Fidélia passava uns tempos em casa do desembargador (a tia ainda era viva), e o rapaz, Eduardo, estudava na Escola de Medicina. A primeira vez que ele a viu foi das torrinhas do Teatro Lírico, onde estava com outros estudantes; viu-a à frente de um camarote, ao pé da tia. Tornou a vê-la, foi visto por ela, e acabaram namorados um do outro. Quando souberam quem eram, já o mal estava feito, mas provavelmente o mal se faria, ainda que o soubessem desde princípio, porque a paixão foi repentina. O pai de Fidélia, vindo à Corte, teve notícia do caso pelo próprio irmão, que cautelosamente lhe disse o que desconfiava, e insinuou que era boa ocasião de fazerem as pazes as duas famílias. O barão ficou furioso, pegou da moça e levou-a para a fazenda. Você não imagina o que lá se passou.

— Imagino, imagino.

— Não imagina.

— Pô-la no tronco?

— Não, protestou Rita; não fez mais que ameaçá-la com palavras, mas palavras duras, dizendo-lhe que a poria fora de casa, se continuasse a pensar em tal atrevimento. Fidélia jurou uma e muitas vezes que tinha um noivo no coração e casaria com ele, custasse o que custasse. A mãe estava do lado do marido, e opôs-se também. Fidélia resistiu e recolheu-se ao silêncio, passava os dias no quarto, chorando. As mucamas viam as lágrimas e os sinais delas, e desconfiavam de amores, até que adivinharam a pessoa, se não foi palavra que ouviram aos próprios senhores. Enfim, a moça entrou a não querer comer. Vendo isto, a mãe, com receio de algum acesso de moléstia, começou a pedir por ela, mas o marido declarou que não lhe importava vê-la morta ou até doida; antes isso que consentir na mistura do seu sangue com o da gente Noronha. A oposição da gente Noronha não foi menor. Ao saber da paixão do filho pela filha do fazendeiro, o pai de Eduardo mandou-lhe dizer que o deixaria na rua, se teimasse em semelhante afronta.

— Como inimigos eram dignos um do outro, observei.

— Eram, concordou Rita. O desembargador soube o que se passava e foi à fazenda, onde viu tudo confirmado, e disse ao irmão que não valia opor-se, porque a filha, chegada à maioridade, podia arrancar-se de casa. Ninguém obrigava a humilhar-se diante da gente Noronha, nem a fazer as pazes com ela; bastava que os filhos casassem e fossem para onde quisessem. O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte, sem continuar a comissão que se dera a si mesmo, quando Fidélia adoeceu deveras. A doença foi grave, a cura difícil pela recusa dos remédios e alimentos... Que sorriso é esse? Não acredita?

— Acredito, acredito; acho romanesco. Em todo caso, essa moça interessa-me. A cura, dizia você, foi difícil?

— Foi; a mãe resolveu pedir ao marido que cedesse, o marido concedeu finalmente, impondo a condição de nunca mais receber a filha nem lhe falar; não assistiria ao casamento, não queria saber dela. Restabelecida, Fidélia veio com o tio, e no ano seguinte casou. O pai do noivo também declarou que os não queria ver.

— Tanta luta para não serem felizes por muito tempo.

— É verdade. A felicidade foi grande, mas curta. Um dia resolveram ir à Europa, e foram, até que se deu a morte inesperada do marido, em Lisboa, donde Fidélia fez transportar o corpo para aqui. Você lá a viu ao pé da sepultura; lá vai muitas vezes. Pois nem assim o pai, que também já é viúvo, nem assim quis receber a filha. Quando veio à Corte a primeira vez, Fidélia foi ter com ele, sozinha, depois com o tio; todas as tentativas foram inúteis. Nunca mais a viu nem lhe falou. Eu, mais ou menos, já contei isto a você; só não conhecia bem as particularidades da resistência na fazenda, mas aí está. Agora diga se ela é viúva que se case.

— Com qualquer, não; pelo menos, é difícil; mas, um sujeito fresco, — continuei enfunando-me e rindo.

— Você ainda pensa?...

— Eu, mana? Eu penso no seu jantar, que há de estar delicioso. O que me fica da história é que essa moça, além de bonita, é teimosa; mas a sua sopa vale para mim todas as noções estéticas e morais deste mundo e do outro.

Ao jantar, contei a Rita o que me dissera o desembargador sobre haver ido a sobrinha passar alguns dias ao Flamengo, e perguntei-lhe se era assim a intimidade na casa.

— Certamente que é. Já uma vez Fidélia adoeceu no Flamengo e lá se tratou. Tendo perdido a esperança do filho postiço, o Tristão, que os esqueceu inteiramente, ficaram cada vez mais ligados à viúva. D. Carmo é toda ternura para ela. Você lembra-se das bodas de prata, não? Aguiar não lhe chama filha para não parecer que usurpa esse título ao pai verdadeiro; mas a mulher, não tendo ela mãe, é o nome que lhe dá. Nem Fidélia parece querer outra mãe.