Memorias de um Negro/11

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CAPITULO XI

FABRICAÇÃO DE MOVEIS


Tivemos um dia visita do general J. F. B. Marshall, o homem que nos havia emprestado duzentos e cincoenta dollars para a compra da fazenda. Esteve uma semana comnosco, fez uma inspecção minuciosa, declarou-se contente com o que viu e mandou a Hampton um relatorio optimista cheio de incentivos para nós. Recebemos em seguida miss Mary F. Mackie, a mesma que me havia submettido a um exame de vassoura. Depois foi a vez do general Armstrong.

Na epocha dessas visitas tinhamos varios professores, quasi todos diplomados em Hampton. Com immensa alegria revimos os nossos excellentes amigos, que ficaram bem impressionados com a escola. De muitas leguas de distancia vieram negros ver o general, pois a fama delle corria longe. E os brancos o acolheram com sympathia.

Cada vez mais esse homem extraordinario crescia a meus olhos, as suas disposições para com os brancos do Sul enchiam-me de admiração. Eu suppunha que, tendo-os tido como inimigos, elle os aborrecia e apenas se interessava pelos negros. Não tardei em perceber o meu erro: emquanto aqui esteve, essa grande alma generosa mostrou a mesma solicitude para todos. Não revelou nenhum signal de resentimento contra os antigos adversarios e muitas vezes lhes testemunhou amizade. Esse exemplo foi para mim fecundo e precioso. Os corações nobres cultivam sempre o amor, só os espiritos mesquinhos guardam odio. Comprehendi tambem que o protector dos fracos adquire forças novas e o oppressor dos infelizes enfraquece.

A attitude do general Armstrong inspirou-me essas reflexões, ha muitos annos, livrou-me de rebaixar-me a ponto de odiar alguem. Recalquei a aversão, esqueci o mal que os brancos do Sul fizeram á minha raça. Hoje sinto prazer em ser util a todos os homens e tenho compaixão dos individuos que procuram separal-os. Quanto mais reflicto mais me convenço de que as manobras adoptadas pelos brancos do Sul para inutilizar o voto dos negros são prejudiciaes, não apenas a estes, mas á gente que se esforça por conserval-os em situação inferior. O damno causado ao negro é temporario, mas o attentado á moral do branco é permanente. Observei muitas vezes que, se um sujeito perjura para annullar o voto do negro, acaba por comportar-se deshonestamente em outras circumstancias, molestando o preto ou molestando o branco. O que engana um preto não tarda a enganar um branco, o que infringe a lei lynchando um preto nenhum escrupulo terá em lynchar um branco, se puder. Essas considerações me fazem desejar que a nação inteira intervenha na lucta contra a ignorancia que desgraçadamente reina ainda no Sul.

Convem notar que o systema de educação do general Armstrong cada vez mais ganha terreno. São raros actualmente os Estados do Sul que não têm ensino profissional, para homens e para mulheres.

Installados modestamente os nossos pensionistas, outros se apresentaram, e mais outros, de modo que, durante semanas, desesperadamente nos debatemos buscando meio de alimental-os, dar-lhes roupas de cama e um canto para dormir. Alugámos, em falta de melhor, algumas casas nos arredores da escola, cabanas estragadas onde alojámos diversos estudantes. No inverno passavam mal. Com oito dollars por mez, tudo quanto podiamos exigir dos seus minguados recursos, tinham casa, comida, luz e roupa lavada. Deduziamos nas suas contas a importancia correspondente a qualquer trabalho que fizessem util á casa. As despesas de estudo elevavam-se a cincoenta dollars annuaes, quantia que eram obrigados a arranjar sabe Deus como.

A renda insignificante da pensão não nos permittia formar capital sufficiente para organizar um internato em boas condições. No segundo anno escolar o inverno foi excessivamente rigoroso. Não dispunhamos de bastantes cobertores, durante algum tempo não tivemos lenha para fogo nos quartos e até colchões faltaram.

Muitas vezes não consegui adormecer durante aquelles grandes frios cortantes, pensando no soffrimento dos pobres rapazes. Erguia-me alta noite, ia visital-os nas suas cabanas, confortal-os. Muitos não podiam deitar-se: mal agasalhados, batiam os dentes, agachavam-se em redor do fogo para aquecer-se um pouco. Certa manhã, depois duma noite horrivelmente fria, pedi aos que se imaginavam gelados que levantassem um braço. Tres apenas foram capazes de mover-se. E não se queixavam. Sabendo que nos sacrificavamos por elles, não deixavam de perguntar se podiam, de alguma fórma, diminuir o trabalho dos mestres.

Têm-me dito repetidamente, homens do Norte e homens do Sul, que os negros não se conformam com a auctoridade dum negro. A esta affirmação respondo com um facto: nos dezenoves annos da minha carreira em Tuskegee nunca notei palavra descortez ou acto desrespeitoso de alumno ou de qualquer pessoa ligada ao serviço da escola. Pelo contrario: acanham-me as numerosas gentilezas que me dispensam. Se me vêem com um livro pesado, offerecem-se para transportal-o; em dias de chuva nunca me levanto do bureau sem que um alumno se approxime, decidido a acompanhar-me segurando o guarda-chuva.

Devo dizer que, nas minhas relações com os brancos do Sul, nunca recebi uma affronta pessoal. Em Tuskegee e vizinhança sempre me testemunharam consideração, coisa que algumas vezes muito lhes custa, bem sei.

Ha algum tempo viajei no Texas, de Dallas a Houston. Ignoro como souberam que me achava no trem, mas a verdade é que, em todas as estações, brancos em quantidade, inclusive funccionarios, vieram felicitar-me pela obra que emprehendi no Sul.

Mais tarde, dirigindo-me a Atlanta, cancei-me depois duma longa viagem e tomei um Pullman car. Ahi encontrei duas senhoras de Boston minhas conhecidas, que ignoravam, supponho, os costumes do Sul e innocentemente me convidaram a sentar-me ao lado dellas, o que fiz meio encabulado. Logo uma das senhoras pediu a ceia para tres. Isto augmentou a minha perturbação. Muitos brancos pejavam o carro e não tiravam os olhos de cima de nós. Ouvindo aquella historia de ceia, arranjei um pretexto para me afastar, mas obrigaram-me a ficar onde estava. Resignei-me, dizendo cá por dentro:

— Bonito. Estou agarrado.

O geito que tive foi cear. Depois uma das senhoras se lembrou de que trazia no sacco de viagem um chá maravilhoso, desejou que o experimentasse-mos e, não confiando na cozinha do trem, preparou-o com arte e serviu-o. Bebi o chá. E como tudo tem fim, a refeição terminou, a mais longa da minha vida. Ancioso por livrar-me daquella situação penosa, pedi licença para entrar no compartimento vizinho, fumar um cigarro e olhar a paizagem. Ahi chegando, vi que me haviam reconhecido e fiquei assombrado: quasi todos os cavalheiros que ali se achavam, na maioria cidadãos da Georgia, vieram apertar-me a mão, agradecer-me o que eu fazia no Sul. E não era lisonja, que nenhum esperava nada de mim.

Sempre me esforcei por demonstrar aos alumnos que Tuskegee não é coisa minha, mas de todos os que aqui vivem. Aconselho-os a interessar-se pelos negocios da casa tanto quanto os administradores e os professores, a não considerar-me censor, mas amigo. Quero que me falem sem rodeios, com toda a franqueza, peço-lhes que me escrevam, duas ou tres vezes por anno, expondo criticas, reclamações, propostas relativas á organização e ao regimen da escola. Em falta de escriptos, reuno os estudantes na capella e discutimos sem rebuço. Gosto dessas palestras, fecundas em suggestões proveitosas: revelam-me dedicações, alliviam as responsabilidades que pesam sobre mim.

Quando leio a noticia duma greve, digo commigo que as divergencias entre patrões e operarios desappareceriam se os primeiros fossem accessiveis, consultassem os segundos antes de tomar uma deliberação e tentassem provar-lhes que os interesses das duas partes são communs. A confiança gera a confiança. Tratando-se de negros, isto é um facto que não admitte contestação. Convencidos de que nos interessamos por elles, tornam-se doceis em extremo.

Eu desejava que os alumnos fizessem, não sómente as casas de Tuskegee, mas os moveis. Hoje admiro a paciencia daquelles rapazes que dormiam no chão ou em taboas duras, esperando que lhes fabricassem camas grosseiras ou um arremedo de colchões. No começo raros tinham pratica de marcenaria, e os leitos improvisados nesse tempo eram pouco seguros e rudimentares. Acontecia-me frequentemente, na inspecção da manhã, achar alguns desmantelados. Os colchões nos atrapalharam muito. Afinal vencemos a difficuldade comprando fazenda barata que transformámos em grandes saccos. Os pinheiros da floresta vizinha nos forneceram o enchimento delles. Agora as nossas alumnas fazem aqui optimos colchões, iguaes aos que se vendem no armazem.

E´ superfluo dizer que havia falta de cadeiras. Para substituil-as, usavamos tamboretes feitos com tres pedaços de taboa tosca, mal pregados. A mobilia dos quartos era bem summaria: a cama, tamboretes, algumas vezes uma pequena mesa sem verniz. Naturalmente continuamos a fabricar os nossos moveis, que agora são numerosos e resistem á critica dos entendidos.

O que sempre exigi em Tuskegee foi limpeza. Martelei sem cessar que tudo nos perdoariam lá fóra, a pobreza, a falta de conforto, não a porcaria. Indispensavel a escova de dentes. “O evangelho da escova de dentes”, como dizia o general Armstrong, aqui se professa. Para alguem ficar em Tuskegee precisa possuir uma escova de dentes e usal-a. Já nos chegaram alumnos que, em materia de bagagem, trouxeram uma escova de dentes. Tinham tido noticia da exigencia e, com o fim de causar boa impressão, muniam-se do objecto indispensavel. Um dia, fiscalizando com a directora o alojamento das moças, entrámos num quarto onde se reuniam tres novatas. Quando perguntei se tinham escovas de dentes, uma dellas respondeu:

— Sim, senhor, comprámos uma hontem.

Foi necessario explicar-lhe que faltavam duas.

Recommendámos tenazmente aos alumnos que não se descuidassem da hygiene. Acostumaram-se ao banho. E antes que pudessemos offerecer-lhes banheiros, já se lavavam tão regularmente como se sentavam á mesa. Os que vinham dos districtos agricolas não sabiam deitar-se em cama. Tiveram de aprender a usar lençoes, não no começo, evidentemente: impossivel obrigar o estudante a metter-se entre dois lençoes, pois só lhe podiamos dar um. Precisavamos tambem ensinal-os a vestir uma camisa á noite.

Difficil foi habitual-os a repregar os botões cahidos, coser os rasgões e tirar da roupa as nodoas de gordura. Comtudo tanto repisámos essas necessidades de ordem que elles se modificaram e corrigiram o desleixo dos que vieram depois. Hoje, na revista diaria, que se realiza quando sahimos da capella, ordinariamente não falta um botão.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.