Memorias de um Negro/10

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CAPITULO X

UMA TAREFA DIFFICIL


Eu queria que em Tuskegee os alumnos se empregassem na cultura da terra, nos serviços domesticos e nas construcções. Pretendia incutir-lhes os mais aperfeiçoados methodos de trabalho, no interesse da escola, evidentemente, mas tambem com o intuito de insinuar-lhes que essas occupações eram bellas, uteis e dignas. Habituaram-se e deixaram de ver nellas um prolongamento da escravidão. E para animal-os, fixar-lhes esses bons propositos, eu desejava adoptar processos modernos, utilizar as forças da natureza: a agua, o vapor, a electricidade.

Muitas pessoas combateram a minha idéa, acharam absurdo confiar a execução de obras de architectura a individuos incompetentes, mas não me dei por vencido. Admittia que as primeiras construcções não ficariam tão perfeitas como as executadas por operarios habeis; mas não seria uma compensação á falta de conforto e de belleza a convicção que os nossos rapazes adquiriam de poder, em qualquer momento, livrar-se de apuros e contar com as proprias forças? Alleguei aos meus contradictores que os alumnos, em geral criados no algodão, no arroz e na canna de assucar, eram pobres em demasia, tinham sempre habitado casebres miseraveis. Sem duvida seria optimo alojal-os em bellos edificios; parecia-me, porém, mais certo acostumal-os pouco a pouco e começar por ensinar-lhes a maneira de construir as suas proprias moradas. Certamente commetteriamos erros, mas até esses erros nos seriam proveitosos no futuro.

Faz dezenove annos que a escola de Tuskegee funcciona, e não mudei de opinião. Os quarenta edificios aqui existentes foram, com excepção de quatro, feitos pelos estudantes. O resultado é que centenas de pessoas d'aqui sahidas espalharam-se no Sul e vivem das noções praticas recebidas entre nós. Esses conhecimentos facultam-se a todos, de fórma que professores e alumnos são capazes de levantar um predio: traçam o plano, executam as obras, installam os apparelhos electricos, sem que seja necessario chamar nunca um operario de fóra. Em consequencia os alumnos dedicam aos edificios cuidados particulares. E´ commum ouvirmos um veterano dizer ao novato que risca as paredes a lapis:

— Deixa disso. E´ a nossa casa.

O que mais nos custou a principio foi a fabricação de tijolos, que muito necessitavamos. Havia no mercado uma grande procura delles e Tuskegee não tinha olaria. Tentámos fazel-os, depois de organizado o trabalho rural. Mas faltava-nos dinheiro e faltava-nos pratica. Demais o serviço era pesado e sujo, difficilmente obrigariamos alguem a conservar-se muitas horas numa fossa, com lama pelos joelhos. Foi nessa occasião que o espirito de revolta se manifestou com mais intensidade na escola e muitos estudantes nos deixaram.

Experimentámos diversos terrenos, procurando argilla conveniente. Eu sempre havia pensado que a fabricação de tijolos era facil, mas convenci-me de que ella exigia muita pericia, sobretudo na parte relativa á queima. Depois de grande esforço, conseguimos metter na forma cerca de vinte e cinco mil tijolos, que se inutilizaram por falta de forno adequado. Preparámos uma segunda fornada, que igualmente se perdeu. Os alumnos cada vez mais desanimavam. Alguns mestres formados em Hampton nos offereceram os seus serviços e, graças a elles, pudemos levar ao fogo a terceira fornada. A queima durava uma semana. Pois ao cabo desse tempo, quando nos julgavamos de posse de alguns milheiros de tijolos, o forno rebentou e lá se foi tudo embora. Depois do desastre, não me restava um dollar para nova tentativa, e todos achavam que eu devia largar isso. Lembrei-me então de que possuia um relogio: levei-o á cidade proxima de Montgomery, onde havia uma casa de penhores, e recebi por elle quinze dollars, que reanimaram os meus auxiliares e me permittiram a quarta experiencia. Dessa vez fomos felizes. No dia do pagamento não houve dinheiro, é claro, e perdi o relogio, que não me fez falta.

Essa industria prosperou tanto que o anno passado os nossos alumnos fabricaram um milhão e duzentos mil tijolos, producto excellente, que acha comprador em qualquer mercado. Numerosos moços viram ahi uma profissão rendosa, que exercem agora em varias cidades do Sul.

A victoria que alcançámos melhorou consideravelmente as nossas relações com os brancos. Muitos are não nos dedicavam nenhuma sympathia vieram comprar-nos tijolos, quando viram que elles eram bons. Tinhamos evidentemente algum prestimo, e os que não admittiam nenhuma especie de capacidade na raça negra começaram a mudar percebendo que augmentavamos o bem-estar e a riqueza da communidade. O nosso commercio de tijolos nos tornou bastante conhecidos. Estabeleceram-se interesses entre os brancos e nós: demos-lhes o que tinhamos, recebemos o que precisavamos, e assim nos entendemos perfeitamente.

E´ da natureza humana, penso eu, reconhecer e recompensar o merito, seja qual for a pelle que o esconda. Mas o merito que se manifesta de modo concreto e visivel é o que mais poderosamente desvanece os prejuizos. Uma bella casa construida por nós prova mais facilmente a nossa habilidade que uma longa discussão arranjada para demonstrar que somos capazes de construir uma casa. Assim, pensando, fabricámos carruagens, charrettes e fiacres. Possuimos actualmente duzias de vehiculos no serviço da escola e da fazenda, e offerecemos alguns ao commercio. Construindo e concertando carros, fabricando tijolos, fomos uteis aos brancos e aos negros da localidade.

Quem de qualquer modo se torna indispensavel acaba por abrir caminho, qualquer que seja a sua côr.

Se um homem chega a uma cidade com o intuito de ensinar grego, pode não encontrar pessoas dispostas a estudar grego, pode até cahir no meio de individuos que não vejam nenhuma utilidade no grego. E´ certo, porém, que todos precisarão de tijolos, casas e vehiculos. Caso o sujeito que pretende ensinar grego possa, antes de começar, attender ás necessidades materiaes dos outros, é possivel que estes, quando satisfeitos, lhe peçam licções de grego e tirem proveito dellas.

No principio do nosso curso de tijolos tivemos de responder ás objecções muito energicas dos que repugnavam o trabalho manual. Corria em todo o Alabama que os estudantes de Tuskegee, ricos ou pobres, eram forçados a aprender um officio. Choveram cartas de paes indignados contra a obrigação imposta a seus filhos de trabalhar no collegio. Outros vinham reclamar pessoalmente, e os novos alumnos traziam sempre algumas linhas em que se manifestava o desejo de vel-os occupar-se unicamente com o estudo. Quanto mais livros melhor, volumes grossos, pesados, de titulos pomposos.

Não me inquietei com os protestos, mas nas minhas viagens esforcei-me por convencer o povo de que o ensino profissional era uma necessidade. Doutrinava tambem os meus alumnos, e, a despeito da antipathia que toda a gente votava ao trabalho manual, a escola cresceu tanto que, no fim do segundo anno, tinhamos perto de cento e cincoenta rapazes e moças procedentes de todas as partes do Alabama e de alguns Estados vizinhos.

No verão de 1882 miss Davidson e eu nos dirigimos ao Norte afim de obter recursos para a conclusão do novo edificio. Demorei-me um pouco em Nova York e falei a uma personagem influente, que havia conhecido alguns annos antes, pedi-lhe uma carta de recommendação. Não recebi a carta, mas recebi o conselho de voltar para a casa, pois era certo só obtermos a quantia indispensavel ás despesas de viagem. Agradeci o conselho e segui para Northhampton, no Massachusetts, onde estive muitas horas procurando uma familia negra que me quizesse receber. Soube então, com bastante surpresa, que não seria difficil hospedar-me num hotel.

Fomos felizes na viagem: recolhemos a somma sufficiente para, em fim de Novembro do mesmo anno, no dia de acção de graças, celebrar o nosso primeiro serviço religioso na capella de Porter Hall, embora o edificio não estivesse inteiramente concluido. Procurando um prégador para o sermão, tive a sorte de encontrar o homem mais distincto que já vi, o reverendo Robert C. Bedford, branco do Wisconsin, pastor duma pequena igreja negra de Montgomery. Não me conhecia, nem eu o conhecia. Comtudo recebeu de boa vontade o convite e veio a Tuskegee celebrar a cerimonia religiosa, coisa absolutamente nova para os negros. A estréa de Porter Hall tornou esse dia memoravel.

O reverendo Bedford acceitou um lugar de membro do conselho administrativo e ha dezoito annos que ahi se conserva, prestando-nos grandes serviços. Desde que nos conhecemos identificou-se inteiramente comnosco. Encarrega-se ás vezes de casos insignificantes, que outros desdenhariam. A sua abnegação não tem limites; foi a pessoa que já vi approximar-se mais de Jesus.

Pouco depois fizemos uma excellente acquisição: chegou-nos de Hampton um rapaz, o sr. Warren Logan, que ha dezesete annos é thesoureiro do instituto e me substitue quando preciso ausentar-me. Sem elle, estariamos longe do ponto que attingimos. E´ desinteressado, possue admiravel tacto nos negocios, julgamento seguro, grande paciencia e, não obstante complicações financeiras de todo o genero, immensa fé no exito da nossa empresa. Entregando-lhe a escola, posso afastar-me tranquillo, fazer viagens longas, certo de que elle nada esquecerá.

Meio construida a nossa primeira casa, decidimos enchel-a de pensionistas, o que fizemos em meado do segundo anno escolar. Vinham muitos alumnos, e viamos perfeitamente que os nossos esforços seriam vãos se não pudessemos intervir na vida particular delles. Para internato nada tinhamos, porém. Apenas os alumnos com os seus appetites. Não haviamos pensado em installar cozinha e sala de jantar. Felizmente, cavando a terra, ser-nos-ia possivel conseguir duas peças subterraneas que serviriam para isso. Ainda uma vez exigi a boa vontade dos estudantes e, ao cabo de algumas semanas, tinhamos o que necessitavamos, dois buracos de apparencia bem desagradavel, na verdade. Quem os visse hoje difficilmente acreditaria que ali houve sala de jantar.

Tudo era incompleto, insufficiente. Faltava dinheiro para a compra de utensilios. Os generos não nos preoccupavam: poderiamos obtel-os a credito. Confesso que me affligia muitas vezes nesse tempo a confiança que depositavam em mim. Não me considerava digno della.

Impossivel cozinhar sem fogão e comer sem pratos. Voltámos á moda antiga: preparámos a comida em tachos e marmitas postos sobre fogos de lenha ao ar livre. E convertemos em mesas os bancos dos carpinteiros que haviam trabalhado na construcção da casa. Quanto a louça nem é bom falar nella, tão pouca existia.

Os cozinheiros não tinham a minima idéa da regularidade indispensavel ao serviço, e isto me transtornava. Tudo ia mal, uma desordem completa. Nas duas primeiras semanas não tivemos refeição que prestasse. Ora a carne vinha crua, ora vinha queimada, não deitavam sal no pão e esqueciam-se do chá. Um dia, á porta do refeitorio, ouvi queixas mais energicas e mais numerosas que as habituaes. Ausencia absoluta de almoço. Uma rapariga deixou a mesa e, em falta de alimento, foi beber agua no poço, mas achou partida a corda do balde. Não me vendo ali perto, afastou-se murmurando com desanimo:

— Que escola, santo Deus! Nem agua se encontra.

Nunca uma observação me causou tanta magua.

Algum tempo depois o reverendo Bedford, de que já falei, administrador e amigo sincero do instituto, era nosso hospede e occupava um quarto por cima do refeitorio. Certa manhã foi despertado pela discussão calorosa de dois alumnos que disputavam uma chicara de café. Um delles, que estivera tres dias sem beber café, defendeu valentemente os seus direitos e apoderou-se da chicara.

Á custa de muita perseverança, afastámos as difficuldades, sahimos da enorme confusão, o que sempre acontece quando não nos deixamos abater, sejam quaes forem os embaraços que nos appareçam.

Recordando essa phase da nossa historia, não lamento que as coisas se tenham passado como se passaram. Os aborrecimentos e os desgostos nos callejaram, deram força aos alumnos para cavar o refeitorio e a cozinha. Não lamento o desperdicio de energia que nos custou esse local escuro e humido. Se tivessemos começado numa bella sala, talvez nos deslumbrassemos, nos enchessemos de orgulho. Afinal é agradavel lançar os fundamentos duma obra, vel-a desenvolver-se pouco a pouco.

Hoje, quando os nossos antigos alumnos vêm a Tuskegee, o que se dá frequentemente, vêem um bello refeitorio amplo e arejado, alimentos appetitosos, producto dos nossos campos, servidos em mesas limpas, toalhas e guardanapos de brancura perfeita. Flores, cantos de passaros, o serviço realizado com ordem, sem que entre centenas de pessoas haja uma reclamação. E os nossos velhos amigos se declaram satisfeitos, acham bom terem cortido as privações dos primeiros tempos, privações necessarias aos resultados que alcançámos.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.