Memorias de um Negro/9

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CAPITULO IX

DIAS DE ANGUSTIA E NOITES DE INSOMNIA


No fim do anno tivemos ensejo de apanhar certos aspectos da vida do povo no Alabama. A festa de Natal foi annunciada por numerosos ranchos de crianças que, de manhã cedo, nos accordavam gritando:

— Presentes, presentes para o Natal!

Em tres horas tivemos umas cincoenta dessas visitas. E´ um costume que ainda existe em alguns lugares do Sul.

No tempo da escravidão concedia-se aos negros pelo Natal uma semana de folga, que elles aproveitavam cahindo na bebedeira. Essa tradição conservava-se nos arredores de Tuskegee: interrompia-se o trabalho durante sete dias, e homens e mulheres, até pessoas que não gostavam de bebida, tomavam pileques. Em toda a parte ouviam-se gargalhadas, estouros de buscapés, tiros de pistola e de espingarda.

Num desses dias de ferias fui visitar uma fazenda proxima. Os habitantes ahi tinham idéas exquisitas sobre o modo de festejar o nascimento de Jesus. Numa cabana cinco meninos dividiam um pacote de bombas; em outra seis pessoas rodeavam uns bolos minguados; adiante havia dois ou tres pedaços de canna de assucar para uma familia inteira; mais longe o ministro da localidade e sua esposa, junto a um pote de aguardente ordinaria, emborrachavam-se dignamente. Vi sujeitos que se divertiam muito olhando gravuras de reclame. Outros haviam comprado pistolas novas. Nada que nos fizesse pensar no Salvador do mundo. O trabalho suspenso, os campos abandonados, toda a gente passeando pelos caminhos. Á noite havia danças, danças primitivas que, depois de abundante cachaça, findavam em tiros e navalhadas.

Um negro que encontrei nessa visita, velho e pastor, asseverou-me, citando a Biblia, que era peccado trabalhar. Deus, no Eden, havia amaldiçoado o trabalho, razão por que o descanço era recommendavel. Naquelle momento esse honrado pastor se sentia feliz, pois ficava uma semana sem peccar.

Na escola procurámos ensinar aos nossos alumnos outra maneira de celebrar decentemente o Natal. Obtivemos excellente resultado: a festa ganhou para elles uma significação nova. Agora os estudantes empregam a semana de ferias em actos de beneficencia. Como exemplo, menciono a reconstrucção da cabana duma pobre negra enferma, de setenta e cinco annos, trabalho realizado por alguns rapazes. Certa vez annunciei na capella que um estudante passava mal por falta de casaco. No dia seguinte remetteram-me dois casacos para elle.

Já me referi á benevolencia que os brancos de Tuskegee e vizinhança nos dispensaram. Eu desejava que o estabelecimento pertencesse á communidade, que não vissem nelle uma instituição enxertada ali. O facto de haverem contribuido para compra do terreno dava-lhes a idéa de que aquillo em parte era delles. E tornaram-se decididamente favoraveis á escola quando affirmámos que, se prezavamos os nossos amigos brancos de Boston, contavamos tambem com os de Tuskegee e esperava-mos que o nosso trabalho fosse proveitoso a toda a gente.

Posso agora dizer que o instituto de Tuskegee não possue amigos mais sinceros que os brancos, não apenas da cidade, mas de todo o Alabama e em geral dos Estados do Sul.

Sempre recommendei aos estudantes que se approximassem dos seus vizinhos, sem distincção de côr, fossem leaes e direitos. Tambem os aconselhei a, nas eleições, inspirar-se no interesse publico e, não estando em jogo questões de principios, na opinião dos seus camaradas.

Continuános a esforçar-nos para obter a quantia necessaria ao pagamento da propriedade. Em noventa dias conseguimos os duzentos e cincoenta dollars pedidos ao general Marshall, e dois mezes depois, de posse dos quinhentos dollars, assignámos a escriptura e tomámos conta da fazenda. Experimentámos uma enorme alegria, a nossa felicidade foi completa por nos sentirmos ligados a Tuskegee graças á benevolencia de brancos e negros.

Precisavamos agora cultivar a terra. As industrias de Tuskegee se desenvolveram naturalmente, logicamente, de accordo com as necessidades immediatas. Começámos pela agricultura porque deviamos, antes de tudo, pensar na alimentação. Adoptámos um systema de trabalho remunerador, que permitisse aos alumnos fazer as despesas do anno escolar, pois muitos ficavam apenas algumas semanas comnosco, tão pobres eram.

O primeiro animal que adquirimos foi um velho cavallo cego, offerta dos brancos da cidade. Possuimos actualmente duzentos cavallos, gallinhas, burros, vaccas, bois e pouco mais ou menos setecentos porcos, sem falar em muitos carneiros e cabras.

O numero de alumnos cresceu tanto que, paga a fazenda, iniciada a cultura do solo e terminados os concertos das ruinas, tivemos a idéa de levantar uma casa nova. Arranjámos a planta e, feitos os calculos, vimos que ella nos iria custar cerca de seis mil dollars, uma exorbitancia que nos apavorou. Era-nos, porém, indispensavel ir para diante: a instituição seria inutil se não pudessemos internar os estudantes, modificar-lhes a vida familiar. Logo que o meu projecto se espalhou na cidade, recebi uma excellente proposta que me surprehendeu: um branco do Sul, proprietario duma serraria nos arredores de Tuskegee, offereceu-nos a credito a madeira necessaria ás obras, sem garantia, contentando-se com a promessa de pagamento quando isto nos fosse possivel, coisa bem vaga. Confessei-lhe francamente que não tinhamos dinheiro; o homem insistiu e, recolhida uma pequena somma, acceitámos o material.

Miss Davidson poz-se em campo novamente. O enthusiasmo dos negros foi grande. Certo dia em que nos reuniamos para tratar da collecta, um negro velho do tempo da guerra appareceu-nos, trazendo na charrette um porco enorme. Esperou momento favoravel, ergueu-se e declarou que, em falta de dinheiro, offerecia um porco magnifico para as despesas do edificio. Terminou deste modo:

— Todo o negro que se respeita e tem amor á raça deve trazer um porco na proxima reunião.

Muitos, desprovidos de recursos, nos offereceram os seus serviços como operarios.

Exgottadas as fontes em Tuskegee, miss Davidson resolveu partir para o Norte. Fez visitas, falou nas igrejas, nas escolas dominicaes e em outras instituições, empresa difficil, cheia de toda a especie de obstaculos. A nossa escola era desconhecida, mas miss Davidson soube em pouco tempo ganhar a confiança da gente do Norte. O primeiro dinheiro que d´ahi nos veio foi dado por uma senhora de Nova York, em viagem. Conversaram no trem, a nortista ficou satisfeita com a narração da moça e entregou-lhe, na separação, um cheque de cincoenta dollars. Antes e depois do nosso casamento, Olivia Davidson nunca deixou de, em conversas e em cartas, pedir o que necessitavamos. Alem disso desempenhava as funcções de professora e directora em Tuskegee, occupava-se com uma associação protectora de velhos e com os meninos da escola dominical. Sem ser robusta, sacrificava todas as suas forças á causa a que se devotava. Acontecia-lhe ás vezes achar-se á noite cançada a ponto de não poder despir-se. Contou-me uma senhora de Boston que, recebendo um dia a visita della, fôra encontral-a adormecida no salão.

Antes de concluido o nosso primeiro edificio, Porter Hall, assim chamado em honra do sr. A. H. Porter, o nosso maior contribuinte, a pobreza nos apertou horrivelmente. Era-me necessario pagar a um credor exigente quatrocentos dollars, e no dia marcado não havia um nickel em caixa. Achava-me desesperado quando o correio das dez horas me trouxe a importancia precisa, enviada por miss Davidson, offerta de duas senhoras de Boston. Mais tarde, quando os nossos trabalhos se desenvolveram e atravessámos novas difficuldades, essas senhoras nos remetteram seis mil dollars, que nos reanimaram. E desde então as duas excellentes amigas de Boston nos mandam seis mil dollars todos os annos.

Approvado o plano da nova construcção, os nossos alumnos começaram a cavar os alicerces. Mas cavavam depois do trabalho nocturno e não cavavam de boa vontade, porque, como um delles me disse, tinham vindo fazer estudos e não cavar. Pouco a pouco, entretanto, notei que elles mudavam. E o trabalho acabou por se tornar uma honra para todos. Depois de algumas semanas de rude canceira, terminaram-se os alicerces e fixámos o dia para a collocação da primeira pedra.

O lançamento dessa primeira pedra no coração do Sul, em plena Cintura Negra, isto é, na região dos escravos, no lugar onde, dezeseis annos antes, quem ensinasse leitura a um negro era punido pelos rigores da lei ou pela censura publica, causava realmente admiração. O espectaculo que tinhamos diante dos olhos nesse dia de primavera não se realizaria, penso eu, em nenhuma outra parte. O primeiro discurso foi pronunciado pelo sr. Waddy Thompson, director do ensino. Estavam reunidos professores e alumnos, parentes e amigos, funccionarios brancos que alguns annos atraz tinham direito de propriedade sobre os que se achavam agora junto a elles. Todos desejavam deixar uma lembrança na primeira pedra.

Atravessámos horas terriveis antes que a casa estivesse prompta. Mais duma vez desfallecemos, achando-nos absolutamente sem recursos no vencimento duma letra. Ninguem imagina os transes que aquella horrivel penuria nos fez padecer. Não esquecerei nunca os meus primeiros annos de Tuskegee, as noites que passei a rolar na cama sem poder dormir, atormentado pela idéa fixa de arranjar dinheiro. Precisavamos provar que os negros podiam fundar um estabelecimento de instrucção e dirigil-o convenientemente. Se falhassemos, a raça inteira ficaria compromettida. Tudo era contra nós. Ordinariamente pensavam que o exito, natural, certo para os brancos, seria para nós quasi impossivel. Essas considerações pesavam-me na cabeça, tiravam-me o somno.

Devo dizer que, no meio das minhas angustias, das difficuldades permanentes que me acabrunhavam, não me dirigi a branco ou negro sem obter algum auxilio. Muitas vezes recorri a cinco ou seis pessoas para resgatar um titulo de cem dollars. A minha preoccupação constante era salvaguardar o credito da escola, e isto conseguimos. O sr. Jorge W. Campbell, o branco que teve a idéa de chamar-me a Tuskegee, dizia-me:

— Washington, lembre-se de que o credito é capital.

Um dia em que nos achavamos em aperto immenso, escrevi ao general Armstrong expondo-lhe francamente a situação. Sem hesitar, elle me enviou num cheque importancia correspondente a todas as suas economias, facto que se reproduziu mais tarde.

No verão de 1882, ao cabo dum anno de residencia em Tuskegee, casei-me com miss Fanny M. Smith, de Malden. Installámo-nos em principio do outomno, e a nossa casa se tornou um centro de reunião dos professores, agora em numero de quatro. Minha mulher, diplomada em Hampton, occupava-se activamente com a escola. Nunca poude saber, coitada, o desenvolvimento que ella teria para o futuro: morreu em Maio de 1884, deixando-me uma filha, Porcia M. Washington.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.