Memorias de um Negro/13

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CAPITULO XIII

UM DISCURSO DE CINCO MINUTOS


Pouco depois da abertura do internato, grande numero de pessoas, homens e mulheres, realmente capazes, mas tão pobres que não podiam satisfazer as modicas despesas escolares, pretenderam matricular-se no instituto. Era uma lastima recusal-os. Assim, em 1884, estabelecemos para alguns delles um curso nocturno, semelhante ao que haviamos organizado em Hampton.

Inscreveram-se doze candidatos. Dez horas de trabalho diario nas officinas e duas horas de estudo á noite. Começada tão modestamente, a classe nocturna progrediu e hoje conta quatrocentos e cincoenta e sete alumnos. Tem para mim grande importancia, pois ahi experimentamos a resistencia e o valor dos nossos moços. Quem trabalha dez horas seguidas fabricando tijolos ou lavando roupa, um anno, dois annos a fio, para conquistar o direito de consultar os livros, tem boa tempera, e é justo que nos interessemos pela sua educação.

Deixando a escola nocturna, o alumno passa aos cursos ordinarios e estuda quatro dias por semana. Reserva dois para o seu officio, a que em geral dedica tambem os tres mezes de verão. Em regra o individuo que resiste á prova da escola nocturna acha meio de instruir-se. Aqui nenhum estudante, embora rico, se furta ás occupações manuaes, que hoje são tão populares como os cursos de letras. Algumas das pessoas mais competentes sahidas de Tuskegee começaram pela escola nocturna.

Insistindo no trabalho e na industria, não esquecemos a religião e o espirito. A escola, sem se filiar a nenhuma seita, é absolutamente christã. Não descuidamos as prégações, as aulas dominicaes, as preces.

Em 1885 casei-me com Olivia Davidson, já mencionada, uma das obreiras mais energicas do instituto. A vida familiar não lhe perturbou a actividade: permaneceu no trabalho, ora em Tuskegee, ora em viagens de collectas pelo Norte. Morreu em 1889, depois de oito annos de labor penoso, literalmente gasta no serviço aspero a que se consagrava. Deixou-me dois filhos bellos e intelligentes: Baker Taliaferro e Ernesto Davidson. O mais velho, Baker, já entrou na fabricação do tijolo.

Muitas vezes me perguntaram como principiei a falar em publico. Direi em resposta que nunca tencionei empregar o meu tempo em palavras. Sempre achei mais util fazer algumas coisas que falar sobre a necessidade de fazel-as. Parece que na minha tournée de conferencias pelo Norte, em companhia do general Armstrong, o sr. Thomas W. Bicknell, presidente da Associação da Instrucção Publica, me ouviu falar. Poucos dias depois da viagem esse cavalheiro me convidou para fazer um discurso na proxima assembléa da associação, que se devia reunir em Madison, no Wisconsin. Acceitei o convite. Para bem dizer, foi ahi que iniciei a minha carreira de orador. Havia umas quatro mil pessoas na sala, entre ellas muitas do Alabama e algumas de Tuskegee. Varios conhecidos meus me disseram com franqueza depois que tinham ido á reunião esperando ouvir-me atacar violentamente o Sul. Ficaram surprehendidos: não fui aggressivo e fiz justiça aos sulistas referindo-me ás coisas louvaveis realizadas por elles. Uma senhora, branca, professora num collegio de Tuskegee, escreveu ao jornal da terra declarando-se espantada e contente por notar que eu agradecia aos brancos o auxilio que elles me haviam prestado na fundação da escola. Esse discurso de Madison foi o primeiro que fiz relativamente ao problema das raças. O auditorio concordou commigo, supponho.

Ao chegar a Tuskegee, eu havia decidido estabelecer-me ahi, acceitar a minha parte de humilhação ou de orgulho pelo mal ou pelo bem que no lugar houvesse, tornar-me emfim um cidadão do Alabama. Resolvi não dizer publicamente aos nortistas o que não estivesse disposto a dizer aos sulistas.

Cedo me capacitei de que é bem difficil converter um individuo injuriando-o: em vez de martelar unicamente nos seus defeitos, devemos louvar-lhe as boas acções.

Assim procedendo, nunca deixei de, sendo necessario, chamar a attenção do publico, em termos inequivocos, para as faltas que aqui se commettem. Percebi que muitos cidadãos acceitam de boa vontade as criticas honestas. Se é preciso atacar o Sul, não devemos ir a Boston para isto: é no Sul que devemos falar. Um sujeito de Boston que viesse censurar esta cidade no Alabama teria exito menor que se se dirigisse aos habitantes de Boston.

No discurso de Madison affirmei que, em vez de atiçar discordias entre as duas raças, deviamos tentar approximal-as. Sustentei que, ao votar, o negro acabaria levando em consideração o lugar onde vive e produz, não o interesse de politicos distantes que ignoram a existencia do eleitor e as suas necessidades. O futuro do negro dependia, affirmei, de elle se tornar, pela habilidade ou pela intelligencia, tão util que a sociedade não o pudesse dispensar. Se um homem se habituava a fazer qualquer coisa melhor que os outros, se fazia coisas ordinarias de maneira pouco ordinaria, estava seguro na vida. Assim, o negro seria acatado se produzisse objectos indispensaveis á collectividade. Citei o caso dum dos nossos alumnos que chegara a colher duzentos e setenta alqueires de batatas em meio hectare numa terra onde a producção média era apenas de noventa e oito alqueires por hectare. Conseguira esse resultado graças ao conhecimento dos adubos chimicos e á applicação de methodos aperfeiçoados de agricultura. Os lavradores de raça branca vinham pedir-lhe conselhos a respeito do cultivo das batatas. E honravam-no porque, pela habilidade e pelo saber, esse homem augmentara a riqueza do lugar onde vivia.

Evidentemente eu não desejava que o preto se limitasse a produzir batatas de boa qualidade e em grande quantidade, mas se elle soubesse plantar batatas, lançaria as bases duma fortuna que daria a seus filhos e netos o direito de aspirar a situações elevadas.

Foram essas, em resumo, as idéas que sustentei no discurso de Madison. E desde esse tempo nada achei que me fizesse mudar de opinião.

Antigamente eu me enchia de colera, odiava os que, diffamando o negro, exigiam contra elle o rigor, a oppressão, medidas que lhe surripiassem os meios de evolução, patrimonio de todos os homens. Hoje o sujeito que tenta por qualquer modo entravar o desenvolvimento dos outros não me inspira senão piedade. É um individuo que se retarda e gasta forças em vão, pois o progresso da humanidade é continuo.

O discurso de Madison constituiu para mim uma apresentação regular ao grande publico nortista. E numerosos discursos vieram depois.

Desejava, porém, dirigir-me a um auditorio do Sul. Tive opportunidade para isto em 1893, quando se reuniu em Atlanta, na Georgia, o grande meeting internacional de trabalhadores christãos. Ao receber o convite, achava-me tão occupado em Boston que a viagem me pareceu impossivel. Comtudo, examinando cuidadosamente a lista de conferencias e de visitas a cidades, achei que poderia sahir de Boston, chegar a Atlanta meia hora antes da reunião e uma hora depois della retomar o trem de Boston. O convite dava-me cinco minutos para o discurso, e isto era o diabo. Que poderia eu metter num discurso de cinco minutos? Talvez nem valesse a pena fazer a viagem.

Grande parte do auditorio se comporia de pessoas influentes. Era uma boa occasião de mostrar o que tentavamos fazer em Tuskegee e ao mesmo tempo falar das relações entre as duas raças. Decidi emprehender a viagem. Arenguei cinco minutos a um publico de duas mil pessoas, na maioria brancos do Norte e do Sul, e o discurso agradou. No outro dia os jornaes commentaram-no com benevolencia em differentes pontos do paiz. Alcancei pouco mais ou menos o meu objectivo, ser escutado pela classe dominante no Sul.

D’ahi em diante os discursos tornaram-se frequentes e dediquei a elles o tempo que pude economizar ao meu trabalho em Tuskegee. Os que pronunciei no Norte quasi todos se destinaram á acquisição de recursos para a escola; á gente de côr expliquei as vantagens da educação technica, complemento necessario da instrucção religiosa e literaria.

Vou agora narrar um incidente que excitou curiosidade e contribuiu para dar-me uma reputação que posso considerar como nacional. Refiro-me ao discurso que fiz na Exposição internacional dos Estados productores de algodão, em Atlanta, a 18 de Setembro de 1895. Falaram tanto sobre elle, fizeram-me tantas perguntas que os leitores me perdoarão talvez alguns pormenores. O primeiro discurso, o de cinco minutos, originou o segundo.

Na primavera de 1895 varios cidadãos influentes de Atlanta me telegrapharam pedindo-me que acompanhasse os representantes que essa cidade mandava a Washington com o fim de solicitar, perante uma commissão do congresso, o auxilio do governo á Exposição. Os mandatarios de Atlanta eram uns vinte e cinco cidadãos importantes da Georgia, todos brancos, excepto o bispo Grant, o bispo Gaines e eu. Diversos brancos e os dois bispos negros fizeram-se ouvir diante da commissão. O ultimo nome da lista dos oradores era o meu. Nunca me havia achado em frente a semelhante publico, nunca falara na capital dos Estados Unidos, não sabia direito o que ia dizer e duvidava que as minhas palavras fossem bem recebidas. As recordações que guardo desse dia são confusas. Lembro-me de haver dito que, se o congresso desejava livrar o Sul da questão negra e estabelecer harmonia entre os dois povos, devia estimular por todos os modos o progresso material e moral de ambos. Na Exposição de Atlanta as duas raças teriam ensejo de mostrar o que haviam realizado depois da abolição e ganhariam incentivo para desenvolver-se ainda mais. Affirmei que, embora fosse um crime arrancar ao negro por meios fraudulentos o direito de voto, não era comtudo a agitação politica que poderia salval-o. Para completar o direito de voto seria necessario que elle possuisse alguma coisa, tivesse habilidade, energia, intelligencia e caracter. Se o congresso concedesse o credito pedido, faria alguma coisa util e duravel pelas duas raças. E aquella era a primeira occasião que se apresentava para isso depois da guerra civil.

Finda a allocução, que durou uns quinze ou vinte minutos, recebi com surpresa felicitações calorosas dos homens da Georgia e dos congressistas. A commissão unanime assignou um relatorio favoravel e ao cabo de poucos dias foi votado o credito para a Exposição de Atlanta.

Pouco depois da viagem a Washington os directores da Exposição resolveram construir um grande e bello edificio destinado a patentear o desenvolvimento do negro. O plano seria traçado por um architecto negro e operarios negros se encarregariam da construcção. Realizou-se o projecto. E o pavilhão negro, em belleza e acabamento, nada ficou a dever aos outros. Quizeram confiar-me a direcção delle, mas alleguei as minhas occupações em Tuskegee e propuz a nomeação do sr. J. Garland Penn, de Lynchbourg, na Virginia. A exposição negra nos fez honra, especialmente as secções de Hampton e Tuskegee.

Approximando-se o dia da abertura, a administração elaborou o programma de inauguração. E achou que devia inscrever entre os oradores um representante da raça negra, já que se havia dado aos negros lugar tão importante na Exposição. Era um meio excellente de se evidenciarem as boas relações que pareciam estabelecer-se entre as duas raças. Naturalmente essa idéa foi combatida, mas a commissão, composta de liberaes, admittiu o orador negro e tratou de escolhel-o. Discutiu varios dias, afinal resolveu chamar-me.

Ser-me-ia difficil explicar a quem nunca se achou em situação analoga á minha a confusão que senti ao receber o convite official. Lembrava-me de ter sido escravo, de ter passado a infancia em pobreza e ignorancia profundas. Não me julgava preparado para aguentar semelhante responsabilidade. Alguns annos antes qualquer branco do auditorio teria podido reclamar-me como escravo. E talvez houvesse ali alguns dos meus antigos senhores.

Era a primeira vez que se convidava um membro da minha raça a falar na mesma tribuna que homens brancos occupavam, em hora de solennidade, perante a riqueza e a cultura da região, os meus amos de outr’ora. Alem de brancos do Sul, haveria brancos do Norte e um numeroso contingente de pretos.

Eu estava decidido a falar a verdade, lealmente. O convite nada continha a respeito do que devia ser dito ou omittido, e isto provava a confiança da commissão directora, pois ahi não se ignorava que, por uma palavra inconveniente, eu poderia comprometter o exito da Exposição. Ao mesmo tempo uma idéa me affligia: conservando-me fiel ao meu povo, arriscava-me a commetter incivilidades funestas que teriam como consequencia nenhum negro ser chamado outra vez para reuniões daquella natureza. Aliás era preciso fazer justiça ao Norte e aos elementos bons do Sul.

Os jornaes exploraram longamente o meu futuro discurso, e á medida que elle se approximava os debates tomavam proporções consideraveis. Nas folhas do Sul não faltava quem malsinasse a resolução de se dar a palavra a um negro. Por outro lado os pretos me offereciam conselhos abundantes a respeito do que eu deveria dizer. Nas vizinhanças de 18 de Setembro senti o coração apertar-se, temi um desastre completo.

O convite chegara no inicio do anno escolar, num momento em que os trabalhos me absorviam. Compuz o discurso, li-o a minha mulher, que o approvou. A 16 de Setembro, vespera da viagem a Atlanta, os professores de Tuskegee exprimiram o desejo de conhecel-o. Finda a leitura, pareceu-me que todos estavam satisfeitos.

A 17 pela manhã parti para Atlanta com a mulher e os tres filhos. Sentia pouco mais ou menos a impressão que deve sentir um sujeito que marcha para a forca. Ao sahir de Tuskegee topei um lavrador branco do suburbio, que me disse rindo:

— Washington, até agora você falou a brancos do Norte, a pretos do Sul e a nós outros camponezes brancos do Sul. Mas amanhã vai arranjar-se com brancos do Norte, brancos do Sul e pretos, tudo junto. Mau negocio.

Essa franqueza não diminuiu a minha perturbação.

Na viagem de Tuskegee a Atlanta, brancos e negros em quantidade vieram ás estações, falar-me sobre o que iria acontecer no dia seguinte. Em Atlanta muitos brancos foram receber-me. E, ao descer do trem, ouvi estas palavras dum negro velho:

— Está ahi o homem da minha raça que amanhã vai fazer um discurso na Exposição.

A cidade estava repleta. Viera gente de toda a parte, havia representantes de paizes extrangeiros e deputações militares e civis. Os jornaes vespertinos exhibiram manchettes enormes. A minha inquietação crescia. Á noite não consegui dormir. No outro dia muito cedo repassei cuidadosamente o discurso e, segundo o meu costume, ajoelhei-me e rezei. Habituei-me a fazer uma preparação especial quando falo. Dois auditorios nunca são absolutamente semelhantes, e o meu desejo é impressionar todos os ouvintes. Pouco importa o effeito que o discurso vai produzir no jornal ou num meio differente do que me escuta. Neste concentro o pensamento e a energia.

No dia 18 pela manhã vieram buscar-me, levar-me ao cortejo que ia dirigir-se ao recinto da Exposição. Havia negros importantes em carruagens e diversas commissões militares de côr. Notei que se esforçavam para que os negros fossem bem tratados. Gastámos tres horas, sob um sol ardente, para alcançar o terreno da Exposição. O calor infernal augmentava-me a excitação nervosa, acovardava-me. Julguei um instante que ia desfallecer, succumbir, arrasar-me. Ao chegarmos ao local da festa, percebi num golpe de vista a sala immensa completamente cheia. E no exterior apinhavam-se milhares de pessoas que não tinham conseguido entrada.

Ao apparecer fui recebido com applausos vigorosos dos negros e um fraco sussurro dos brancos. Destes, segundo me haviam communicado, alguns sympathizavam commigo, outros estavam ali por curiosidade e muitos, o maior numero, desejavam assistir ao meu embaraço, ter o direito de amofinar a commissão directora: “Eu não dizia?”

Um dos membros do conselho administrativo do instituto de Tuskegee, meu amigo pessoal, o sr William H. Baldwin Junior, director geral da estrada de ferro do Sul, achava-se por acaso em Atlanta nesse dia. Inquietavam-no tanto as consequencias do meu discurso que não se animou a entrar na sala: passeou pelos arredores esperando o fim da cerimonia.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.