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Memorias de um Negro/17

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CAPITULO XVII

ULTIMAS PALAVRAS


Antes da viagem á Europa succederam coisas bem extranhas. Na verdade a minha vida sempre se compoz de surpresas, e supponho que felizes acontecimentos inesperados surgem de ordinario ao sujeito disposto a sacrificar o maximo de energia a uma obra desinteressada e ntil.

Um anno depois do ataque de paralysia que o victimou, o general Armstrong exprimiu o desejo de visitar ainda uma vez Tuskegee. Como não podia servir-se das pernas, foi necessario transportal-o. Os proprietarios da estrada de ferro local, cidadãos de raça branca, arranjaram-lhe de graça um trem especial que o conduziu da estação de Chehaw aos terrenos da escola, onde o nosso grande amigo chegou ás nove horas da noite. Alguem suggeriu uma recepção com muitas luzes, o que executámos: approximando-se do estabelecimento, o trem passou entre duas filas de tochas de pinheiro que mil estudantes e mestres seguravam. Um effeito deslumbrante.

O general ficou dois mezes comnosco, e embora quasi não pudesse falar nem mexer-se, empregou esse tempo combinando planos em beneficio do Sul. Repetidamente me affirmou que o paiz tinha o dever de melhorar, não apenas a condição do negro, mas a do pobre de raça branca. Prometti a mim mesmo dedicar-me com mais vigor á tarefa que me havia imposto. Se um homem tão acabado era capaz de pensar bem e trabalhar bem, eu, criatura robusta, não podia ser menos esforçado.

Semanas depois da visita que nos fez, o general Armstrong morreu. E por isso me relacionei com um nobre caracter, uma das pessoas mais encantadoras que já conheci: o reverendo dr. Hollis B. Frissell, hoje director do instituto de Hampton. Sob a sua direcção, a escola continuou a prosperar, mas parece que o desejo desse homem capaz e modesto é conservar-se na sombra, tudo imputar ao seu illustre antecessor.

Alguem me perguntou um dia qual foi a maior surpresa que experimentei. Certamente foi uma carta recebida um domingo pela manhã, na minha casa em Tuskegee, quando parolava com a familia na varanda:

”Universidade Harvard (Cambridge),

28, Maio, 1896.

Illmo. Sr. Booker T. Washington.

Prezado senhor:

A Universidade Harvard tem a intenção de conferir-lhe, na cerimonia do começo do anno, um titulo honorifico. Ora, conforme a praxe aqui estabelecida, as pessoas que alcançam essa distincção devem comparecer á solennidade. E’, pois, necessaria a sua presença nesta Universidade a 24 de Junho, de meio-dia ás cinco horas. Ser-lhe-á possivel estar em Cambridge nesse dia?

Saudações.

Charles W. Eliot”.

Era uma terrivel consagração. Nunca me havia passado pela cabeça a idéa de pretender um diploma duma das mais antigas e mais celebres universidades da America. Sentado á varanda, com o papel nas mãos, fiquei estarrecido, os olhos cheios de lagrimas. A minha vida inteira, a escravidão na fazenda, trabalho duro e sujo na mina, dias sem alimento e sem roupa, noites mal dormidas numa calçada, a lucta norrivel pela educação, a angustia e as insomnias nos primeiros annos em Tuskegee, o ostracismo e algumas vezes a oppressão da minha raça, tudo me passava diante dos olhos e me apertava o coração.

Nunca havia procurado fama. Realmente não me preoccupei com ella: sempre a considerei uma coisa de que nos devemos servir para fazer bem aos outros. Digo frequentemente aos meus amigos que, se consigo tornar util a reputação que por acaso obtenho, sou um sujeito feliz. Se a notoriedade e a riqueza não tivessem esse prestimo, nada valeriam.

Quanto mais me ponho em contacto com os ricos mais me convenço de que elles tendem a julgar a fortuna um instrumento que Deus lhes confiou para beneficiar os homens. Quando saio do escriptorio do sr. John D. Rockefeller, que muitas vezes tem sido generoso com a nossa escola, penso nisso. John Rockefeller investiga minuciosamente, quer saber o emprego exacto de todos os dollars que nos dá, e a indagação é seria demais, tão seria como se elle tratasse de collocar dinheiro numa empresa.

No dia 24 de Junho, ás nove horas da manhã, dirigi-me á Universidade Harvard e incorporei-me á comitiva que d’ahi seguiu para o theatro Sanders, onde ia effectuar-se a entrega dos diplomas. Collocámos-nos em fila, na dianteira o presidente Eliot e o governador do Massachusetts, em seguida o comité dos inspectores, depois os cidadãos convidados para receber titulos: o general Nelson A. Miles, o dr. Bell, inventor do telephone Bell, o bispo Vincent, o reverendo Minot J. Savage e varios outros, entre os quaes eu me achava. Fechavam o prestito numerosos professores e funccionarios. Nessa ordem chegámos ao theatro Sanders. E finda a distribuição dos diplomas, realizou-se a collação dos graus honorarios, solennidade que provoca enorme interesse em Harvard. Como não se publicam os nomes dos que vão receber a grande honra, só naquelle momento elles são conhecidos. Os estudantes acclamam-nos, e quando surgem figuras populares, ha vivo enthusiasmo e ovações freneticas.

Deram-me o titulo de licenciado em letras. Terminada a cerimonia, o presidente convidou-nos para almoçar. Depois do almoço, formámos de novo em procissão e, escoltados pelo bispo William Lawrence, entrámos na Universidade. Ahi recebemos, em muitos lugares, os vivas dos rapazes e afinal desfizemos o cortejo, no Memorial Hall, onde estava servido o jantar dos antigos alumnos. Era realmente um espectaculo singular a reunião dum milheiro de homens que representavam a Igreja, o Estado, os negocios e o ensino, cheios de ardor, enthusiasmo e orgulho, caracteristicos dos moços universitarios.

Fizeram-se ouvir ao jantar diversos oradores: o presidente Eliot, o governador Roger Wolcott, o general Miles, o reverendo Minot J. Savage, o sr. Henry Cabot Lodge. Reproduzo uma parte do meu discurso:

”Se me considerasse digno da honra que agora recebo, haveria até certo ponto uma compensação para este grande embaraço. Não me compete explicar as razões por que me arrancaram do fundo da Cintura Negra, do meio da minha humilde familia, para tomar parte na festa de hoje. Comtudo está ahi uma das questões essenciaes da vida americana: pôr os fortes, os ricos e os sabios em relação com os fracos, os pobres e os ignorantes, fazer sentir a uns a influencia dos outros. De que modo apresentaremos aos habitantes da rua Beacon as necessidades dos que vivem em cabanas miseraveis nos algodoaes do Alabama ou nos cannaviaes da Luisiana? Harvard tenta resolver esse problema, não rebaixando-se, mas elevando as massas.

Se, no passado, contribui de algum modo para avizinhar dos brancos a gente negra, asseguro que de agora em diante redobrarei os meus esforços.

Neste mundo de Deus existe apenas uma regra para os homens e para as raças. E acha a nação americana que devemos todos ser julgados segundo a regra americana. Saberemos se os negros sobem ou descem. Em ultima analyse os sentimentos não interessam. Nestes proximos cincoenta annos, talvez durante mais de cincoenta annos, a minha raça será submettida á prova severa dos principios americanos. Experimentarão a nossa paciencia, a nossa firmeza, a nossa resistencia ás desgraças e ás tentações. Verão que somos capazes de economizar, adquirir habilidade nas artes, na industria e no commercio; desdenhar a apparencia e buscar a substancia; ser grandes sem deixar de ser pequenos, instruidos permanecendo simples; mandar conservando-nos servidores de todos”.


Era a primeira vez que uma universidade da Nova Inglaterra conferia titulo honorifico a um negro, e a imprensa do paiz commentou largamente o facto novo. Um jornalista de Nova York escreveu estas linhas:

“Quando Booker T. Washington se levantou para receber o diploma, houve uma enorme salva de palmas, só igualada pela que acolheu o popular soldado e patriota general Miles. Não eram applausos convencionaes, eram manifestações de sympathia, enthusiasmo sincero. A platéa inteira vibrou, e em toda a parte havia rostos illuminados, acclamações ao antigo escravo e ao trabalho que elle realiza.”

Um jornal de Boston publicou o seguinte:

“Conferindo o titulo honorario de licenciado em letras ao director do instituto de Tuskegee, a Universidade Harvard, engrandecendo-o, engrandeceu-se. O que o professor Booker T. Washington fez pela educação do povo no Sul com certeza lhe dá o direito de exigir um lugar entre os bemfeitores nacionaes. A Universidade, reclamando-o como um dos seus filhos, deve sentir orgulho.

Já se disse que o sr. Booker Washington foi o primeiro negro a quem uma universidade da Nova Inglaterra concedeu um titulo honorario. E’ uma distincção, e consideravel, sem duvida. Mas o titulo não foi conferido por ser o sr. Booker Washington homem de côr e ex-escravo, mas por haver mostrado, dirigindo um estabelecimento na Cintura Negra, talento verdadeiro, proprio das pessoas realmente grandes”.

De outro jornal de Boston:

“Uma universidade da Nova Inglaterra deu titulo honorifico a um homem de côr. Os que acompanham a historia de Tuskegee admiram a coragem, a perseverança e o bom senso de Booker T. Washington. Harvard procedeu bem distinguindo o antigo escravo. Os serviços que elle prestou ao seu povo e ao seu paiz só poderão ser reconhecidos pela historia.”

O correspondente do New York Times escreveu:

“Todos os discursos foram acolhidos com enthusiasmo, mas o negro alcançou victoria completa: ao findar o seu discurso, rebentaram applausos calorosos e prolongados”.

Ao estabelecer-me em Tuskegee, eu havia formado o projecto de fundar uma escola tão util ao paiz que um dia o presidente dos Estados Unidos a visitaria. Era uma idéa bem temeraria. E por isso guardei-a muito tempo no fundo do meu coração.

Em Novembro de 1897 dei um passo para a realização desse desejo: consegui que um membro do gabinete do presidente Mac Kinley, o sr. J. Wilson, secretario da agricultura, viesse a Tuskegee inaugurar o edificio Slater-Armstrong, o primeiro que fizemos com o intuito de ministrar ensino agricola aos nossos alumnos.

No outomno de 1898 disseram-me que o presidente Mac Kinley assistiria ás cerimonias que se realizariam em Atlanta, para celebrar o fim da guerra hispano-americana. Fazia dezoito annos que eu trabalhava na escola. E decidi esforçar-me por attrahir o presidente e o seu gabinete. Fui a Washington, dirigi-me á Casa Branca, mas, ahi chegando, encontrei as salas de espera cheias e perdi a esperança de avistar-me com o presidente. O secretario, sr. John Addison Porter, teve, porém, a gentileza de levar-lhe sem demora o meu cartão e ao cabo de alguns minutos me veio dizer que o sr. Mac Kinley me receberia.

Não sei como um homem pode acolher toda a especie de individuos, ouvir toda a especie de solicitações, trabalhar de rijo e conservar-se calmo e paciente como o sr. Mae Kinley. Vendo-me, agradeceu amavel o que faziamos em Tuskegee. Expuz-lhe com franqueza o objecto da minha viagem: disse que uma visita do chefe da nação, alem de animar estudantes e professores, seria util a toda a raça negra. Elle pareceu interessar-se pela proposta, mas não fez nenhuma promessa, pois a ida a Atlanta ainda era coisa incerta. Pediu-me que voltasse ao assumpto algumas semanas mais tarde.

No meado do outro mez o presidente resolveu assistir ás festas da paz em Atlanta. Encaminhei-me novamente a Washington, dessa vez acompanhado pelo sr. C. W. Hare, um branco de Tuskegee, que reforçou o meu pedido convidando o presidente em nome dos homens de raça branca.

Pouco antes da segunda viagem a Washington haviam surgido graves perturbações, rixas numerosas entre as duas raças em differentes lugares do Sul. Ao avistar-me com o presidente, notei que essas desordens o impressionavam muito. Não obstante estar cheio de occupações, reteve-me algum tempo, discutiu, affirmou repetidamente a sua intenção de mostrar, não com palavras, mas com actos, que se interessava pelos negros. Quando observei que naquelle momento nada poderia dar-nos esperança e coragem como a certeza de que elle decidia torcer caminho, viajar quarenta leguas para ver de perto uma instituição de negros, pareceu profundamente commovido.

Emquanto falavamos, um cidadão de Atlanta, democrata e antigo senhor de escravos, entrou na sala, e como o presidente o interrogasse a respeito da viagem a Tuskegee, respondeu sem hesitar que ella era conveniente. Essa opinião foi corroborada pela do dr. J. L. M. Curry, grande amigo da raça negra.

O sr. Mac Kinley prometteu que visitaria a nossa escola a 16 de Dezembro.

Desde que tiveram conhecimento da promessa, os brancos de Tuskegee mexeram-se tanto como os negros. Fizeram-se os preparativos, embandeiraram-se as ruas, formaram-se comités que funccionaram junto á administração da escola para que o illustre hospede tivesse uma recepção condigna. Eu ainda não havia reparado na importancia que o instituto adquirira aos olhos dos brancos de Tuskegee e vizinhança. Emquanto arranjavamos os festejos, dezenas e dezenas de pessoas vieram ver-me, affirmando que não desejavem tomar a dianteira, mas que teriam prazer em ajudar-me. Nesses dias causou-me forte impressão, quasi tão grande como a visita do presidente, o orgulho que o instituto parecia inspirar a todas as classes do Alabama.

Na manhã de 16 de Dezembro a cidadezinha de Tuskegee regorgitou. Com o presidente vieram a sra. Mac Kinley e os membros do gabinete, com excepção de um. Quasi todos vinham acompanhados de pessoas das suas familias. Figuravam na comitiva diversos militares famosos, entre elles os generaes Shafter e Joseph Wheeler, que voltavam da guerra hispano-americana.

Formigavam os correspondentes de jornaes. A assembléa do Alabama, naquelle momento reunida em Montgomery, resolveu adiar os trabalhos e, pouco antes da chegada do presidente, appareceu em Tuskegee com o governador do Estado e numerosos funccionarios.

Tinha-se ornamentado o caminho da cidade ao estabelecimento. Ahi, diante dos sr. Mac Kinley, os alumnos desfilaram consuzindo cannas de assucar enfeitadas de capulhos de algodão abertos. Em seguida houve a revista dos trabalhos de todas as secções da escola, exhibidos em carros puxados por mulas, cavallos e bois. Não apresentámos apenas o trabalho actual, procurámos expor a differença entre os methodos antigos e os modernos. Mostrámos a leiteria velha, os instrumentos agricolas de que nos servimos nas primeiras experiencias, os tachos e marmitas da cozinha primitiva, tudo isso junto aos apparelhos ultimamente adoptados no serviço. A passagem dos carros durou hora e meia.

No discurso que pronunciou na capella nova, o presidente disse:

”Tenho na verdade grande satisfação em ver de perto o que se faz aqui. O instituto normal e industrial de Tuskegee é perfeito: conseguiu invejavel fama no paiz e não o desconhecem no exterior. Felicito os que se associaram nesta empresa pelos bons resultados que obtêm modelando vidas honradas e uteis, concorrendo para o progresso duma raça inteira.

Acho que não se encontraria em nenhuma parte sitio mais apropriado a esta singular tentativa, que chamou a attenção e ganhou a confiança dos philanthropos do paiz.

Seria impossivel falar de Tuskegee sem fazer uma referencia especial a Booker T. Washington. Devemos a elle este admiravel estabelecimento e a elle pertence a gloria alcançada. O seu enthusiasmo e o seu espirito emprehendedor tornaram possivel o progresso continuo da escola. Booker Washington conquistou reputação merecida e é um dos grandes chefes da sua raça, conhecido e respeitado aqui e no estrangeiro como educador illustre, orador notavel, verdadeiro bemfeitor.”

O sr. John D. Long, secretario da marinha, expressou-se desta fórma:

”Não posso fazer um discurso. Tenho o coração muito cheio, cheio de esperança, de admiração aos homens do Norte e aos homens do Sul, brancos e negros.

Terei de agora em diante confiança no vosso progresso e na solução do problema que vos propuzestes.

Na verdade elle já está resolvido. Temos diante dos olhos um quadro que deveria figurar na tela e, junto aos retratos e Washington e Lincoln, ser transmittido ás gerações futuras, um quadro que a imprensa exhibirá com certeza á nação: o presidente dos Estados Unidos em pé numa plataforma, tendo a um lado o governador do Alabama e no outro, completando a trindade, um representante da raça que, ha alguns annos apenas, vivia na escravidão, o director negro do instituto normal e industrial de Tuskegee.

As bençams de Deus cahirão sobre o presidente, que mostra semelhante scena ao povo americano, sobre o governador do Alabama, sobre o orador, o educador, o grande negro Booker T. Washington”.

O secretario do correio terminou o seu discurso com as seguintes palavras:

”Fomos testemunhas de varios espectaculos nestes ultimos dias. Vimos a grandeza e os magnificos successos duma das mais importantes metropoles do Sul. Vimos os heroes da guerra desfilar em cortejo. Vimos batalhas de flores. Mas estou certo de que os meus collegas pensarão commigo que nada nos impressionou mais que o espectaculo desta manhã”.

Alguns dias depois do regresso do presidente, recebi esta carta:

“Washington, 23 de Dezembro de 1899.


Professor Booker T. Washington,

Tuskegee — Alabama.


Caro senhor:

Com muito prazer, remetto-lhe, em copias, o documento commemorativo da visita do presidente a esse instituto. Vão nas folhas autographos do presidente e dos membros do gabinete que o acompanharam.

Permitta-me que aproveite esta occasião para felicital-o sinceramente pelo exito das festas realizadas quando estivemos em Tuskegee. Todos os pormenores do programma foram executados de maneira irreprehensivel, e os visitantes que nelle tomaram parte, como actores ou como espectadores, ficaram encantados. A apresentação dos estudantes occupados nos seus officios teve um effeito, não apenas artistico, mas extremamente commovedor. Não foi, pois, exaggerada a demonstração publica de sympathia dada pelo presidente e pelo gabinete ao instituto de Tuskegee.

Não termino sem lhe dizer que a sua modestia foi commentada nos termos mais lisonjeiros por todos os membros da comitiva.

Desejando ardentemente o progresso da sua generosa empresa, aqui lhe manifesto a minha admiração e votos de felicidade no novo anno.

John Addison Porter,
Secretario do presidente”.

Vinte annos se passaram desde que fiz a minha primeira tentativa em Tuskegee, numa cabana desmantelada e num gallinheiro velho. Hoje possuimos mil cento e cincoenta hectares de terra, dos quaes setecentos estão cultivados, e temos quarenta edificios. Emquanto os alumnos trabalham no campo ou levantam casas, professores competentes lhes ensinam os mais recentes processos de agricultura e os officios relativos á construcção.

Juntamente com a educação literaria, scientifica e religiosa, damos aos jovens, homens e mulheres, em vinte e oito classes industriaes, os conhecimentos necessarios para que elles possam, deixando-nos, arranjar collocação immediata. A difficuldade é que os nossos diplomas são tão reclamados que só podemos attender á metade dos pedidos que nos chegam. Por outro lado não temos accommodações nem dinheiro sufficientes para admittir mais de metade dos moços que desejam matricular-se.

No ensino industrial fazemos questão de tres coisas: primeiramente queremos que os estudantes se eduquem de fórma a adaptar-se ás condições actuaes do meio onde vivem, isto é, que sejam capazes de fazer com exactidão o que exigem delles; em segundo lugar desejamos que tenham habilidade, intelligencia e caracter indispensaveis para ganhar a vida e sustentar familia; afinal procuramos leval-os a amar o trabalho, não a eximir-se delle. Os rapazes labutam no campo, as moças exercitam-se na economia domestica, jardinam, cultivam flores, fabricam manteiga, dedicam-se á apicultura e á avicultura.

Embora a instituição não tenha caracter religioso, nella funccionam as classes a que damos o nome de escola biblica de Phelps Hall. Ahi varios rapazes, especialmente os que se destinam aos districtos ruraes, estudam as disciplinas necessarias ao ministerio e a outras fórmas de actividade christã. Trabalham na lavoura e na officina, como os outros, e assim poderão lá fóra dar um exemplo de energia ao publico.

Actualmente o valor da nossa propriedade eleva-se a mais de trezentos mil dollars. Se arrolar-mos os ultimos melhoramentos, teremos, sem falar no dinheiro existente em caixa, um capital não inferior a meio milhão de dollars. As despesas annuaes sobem pouco mais ou menos a oitenta mil dollars, quantia que obtenho com peditorios. A propriedade, isenta de hypothecas, é administrada por um comité.

Tinhamos no começo trinta alumnos. Agora temos mil e cem, provenientes de vinte e sete Estados, da Africa, de Cuba, de Porto Rico, da Jamaica e de outros paizes extrangeiros. Vivem comnosco oitenta e seis funccionarios e professores. E se contarmos as familias desses homens, arredondaremos na escola e na vizinhança uma população constante de mil e quatrocentas pessoas.

Perguntam-me ás vezes como, em meio de tantas cabeças, mantenho no estabelecimento ordem e moralidade. Tenho duas respostas: primeiramente os homens e as mulheres que nos chegam são criaturas serias, em segundo lugar toda a gente aqui vive occupada. O quadro seguinte revela de que modo empregamos o tempo: 5 horas da manhã, toque para despertar; 5 h. 50, primeiro signal para o almoço; 6 horas, chamada ao almoço; 6 h. 20, fim do almoço; 6 h. 20 a 6 h. 50, limpeza dos quartos; 6 h. 50, chamada ao trabalho; 7 h. 30, estudo; 8 h. 20, chamada ás aulas; 8 h. 25, inspecção da roupa dos alumnos; 8 h. 40, serviço religioso na capella; 5 h. 55, recreio de cinco minutos; 9 horas, começo das aulas; 12 horas, fim das aulas; 12 h. 15, jantar; 1 hora da tarde, chamada ao trabalho; 1 h. 30, nova chamada ás aulas; 3 h. 30, fim das aulas do segundo turno; 5 h. 30, fim do trabalho; 6 horas, ceia; 7 h. 10, rezas; 7 h. 30, estudo; 8 h. 45, fim do estudo; 9 h. 30, cama.

Não nos esquecemos de que julgam a escola em conformidade com o numero de diplomas fornecidos. Contando os alumnos que terminaram o curso e outros que arranjaram conhecimentos bastantes para cavar a vida lá fóra, até hoje umas tres mil pessoas sahiram de Tuskegee e espalharam-se no Sul. Têm um bom senso e uma firmeza que forçam o branco a acceital-as. Onde chegam os nossos estudantes notaveis mudanças começam logo a apparecer: compram-se terras, concertam-se casas, o espirito de economia e o nivel de moralidade sobem. Povoações inteiras são revolucionadas por elles.

Ha dez annos organizei em Tuskegee a primeira conferencia negra, uma assembléa annual de oitocentos a novecentos homens e mulheres, da melhor gente da raça, que passam um dia estudando, formando projectos para melhorar as condições do negro. D’ahi sahiram muitas conferencias locaes, fecundas em boas obras. Ultimamente um delegado affirmava que no seu districto dez familias tinham adquirido propriedades. Findas as discussões da conferencia negra, reune-se a conferencia dos trabalhadores, composta de professores empregados nas grandes instituições do Sul.

No verão de 1900, auxiliado por homens importantes da raça negra, como o sr. T. Thomas Fortune, fundei a Liga nacional dos commerciantes negros, que funccionou pela primeira vez em Boston com os representantes de trinta Estados. Essa reunião originou as ligas locaes e as ligas estaduaes.

Apesar das minhas occupações de administrador de Tuskegee e das collectas que faço para arranjar o dinheiro preciso á manutenção da escola, sou forçado a attender pelo menos a uma parte dos convites para discursos que me chegam do Sul e do Norte. Transcrevo uma noticia dum jornal de Buffalo, relativa ao discurso que fiz numa sociedade de educação:

“Booker T. Washington, o mais eminente educador negro do mundo, chegou hontem do Oeste, saltou no melhor hotel da cidade e teve uma noite cheia. Deram-lhe apenas o tempo necessario para escovar a roupa e cear. Nos salões do hotel offereceram-lhe uma recepção em que tomaram parte mais de duzentos professores de todos os lugares dos Estados Unidos. Pouco depois das oito horas, conduziram-no em carruagem ao Music Hall, onde em hora e meia fez sobre a educação negra dois vibrantes discursos para um auditorio de cinco mil pessoas. Depois o sr. Washington foi monopolizado por uma commissão de pretos chefiados pelo reverendo Watkins e levado á pressa a uma pequena reunião organizado em sua honra”.

Não me eximo de chamar a attenção do paiz para os assumptos que interessam ás duas raças. E’ o que faço a respeito do odioso costume do lynchamento. Quando a convenção constitucional da Luisiana se reuniu, mandei-lhe uma carta pleiteando justiça para a minha raça. Nunca me faltou, Deus louvado, o apoio dos jornaes do Sul e de outras partes do paiz.

Não obstante certas demonstrações transitorias e superficiaes, que poderiam induzir-nos em erro, nunca a situação da raça negra me pareceu mais estavel que hoje. A grande lei humana que afinal reconhece e recompensa o merito é universal e eterna. O mundo ignora os esforços desesperados que os brancos do Sul e os seus antigos escravos fazem para desembaraçar-se de preconceitos. E nessa lucta medonha as duas raças merecem sympathia e indulgencia.


Escrevo as ultimas palavras destas memorias na cidade de Richmond, onde ha trinta e cinco annos dormi numa calçada. Agora estou em Richmond como hospede do povo negro. Fiz hontem á noite, perante as duas raças, um discurso no salão da Academia de musica, o mais vasto e o mais bello da cidade. Nunca um homem de côr tinha tido permissão para servir-se dessa sala.

Na vespera da minha chegada o conselho municipal decidiu ir escutar-me. A camara e o senado resolveram tambem, unanimemente, comparecer á Academia de musica.

A centenas de cidadãos negros e brancos offereci a mensagem que trazia, mensagem de esperança. E no fundo do coração agradeci ás duas raças o acolhimento que me dispensaram no Estado onde nasci.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.