Memorias de um Negro/5
CAPITULO V
O DESPERTAR
O espaço que vai de 1867 a 1878 pode ser considerado, segundo julgo, o periodo em que a raça começou a levantar-se. Comprehende o tempo em que fui estudante em Hampton e director da escola na Virginia Occidental. Duas idéas principaes dominavam então a maior parte dos negros: admiravam excessivamente o grego e o latim e ambicionavam tornar-se funccionarios.
É claro que um povo durante seculos mantido na escravidão e no paganismo não podia conceber repentinamente a educação. Nesse tempo, nos Estados do Sul, as escolas se enchiam de alumnos de todas as condições, alguns de sessenta e setenta annos. Disposições muito louvaveis, sem duvida, mas desgraçadamente quasi todos pensavam que, obtendo um pouco de instrucção, ficariam livres das maçadas deste mundo ou, pelo menos, das canceiras do trabalho manual. Estavam certos de que saber, embora pela rama, grego e latim fazia um sujeito crescer demais. Lembro-me da admiração enorme que me inspirou o primeiro negro que ouvi arranhar uma lingua extrangeira.
Dos que adquiriam alguma instrucção muitos se tornavam mestre-escolas e pastores. Entre elles havia realmente homens capazes, serios e piedosos, mas o maior numero dedicava-se a essas profissões para ter uma vida facil. Havia professores que apenas sabiam assignar o proprio nome. Nos arredores da nossa cidade um desses procurava lugar. Como alguem lhe perguntasse que iria elle dizer ás crianças a respeito da fórma da terra, o nosso homem respondeu que estava disposto a ensinar que a terra é chata ou redonda, conforme a opinião da maioria dos seus clientes.
Na religião foi uma vergonha, que ainda continua, não obstante a situação haver melhorado, vergonha por causa da ignorancia e tambem por causa da immoralidade dos que se diziam chamados a prégar. Logo depois da abolição, os negros que sabiam ler começaram a receber esses chamados, que ordinariamente vinham poucos dias depois de elles deixarem os bancos da escola. Na Virginia Occidental o costume era bem curioso. O individuo interessado recebia a inspiração geralmente na igreja. Cahia no chão, ficava horas extendido, calado, immovel e corria a noticia de que elle tinha tido um chamado. Se o homem não se dava por vencido, cahia duas vezes, tres vezes, até que acabava por ceder. Quando eu era menino e desejava com desespero estudar, atormentava-me o receio de que, satisfeita a minha ambição, um desses chamados me apparecesse. Nunca me veio nenhum, não sei porque.
O numero de prégadores, alguns instruidos e muitos ignorantes, era, portanto, elevado. Conheci uma igreja onde havia para duzentas ovelhas dezoito pastores. Como quer que seja, o nivel intellectual do pastor subiu em numerosas communidades do Sul. E dentro de alguns annos os elementos maus estarão consideravelmente reduzidos. Á medida que os negros se foram incorporando na industria, os chamados se tornaram menos frequentes. Quanto ao pessoal do ensino o progresso é ainda mais notavel.
Como crianças dependentes dos paes, os nossos homens tudo esperavam do governo. Natural. Durante mais de dois seculos o paiz se havia enriquecido pelo trabalho do escravo. Não sei porque o governo federal, vendo o sacrificio que faziam os Estados, não tomou, logo depois da libertação, as medidas necessarias para facultar aos negros meios que lhes permittissem cumprir os seus deveres civicos. Emfim não custa censurar. Talvez os governantes daquella epocha fertil em difficuldades não tenham podido fazer o que era preciso. Comtudo, recordando essa primeira phase da nossa liberdade, lamento não se ter exigido para o exercicio do voto um certo grau de instrucção, uma certa quantidade de riqueza, ou as duas coisas juntas, condições que seriam impostas honestamente e imparcialmente ás duas raças.
Apesar de novo nesse tempo, eu via muita coisa errada, que não podia durar. Fazia-se com os negros uma politica artificial, baseada em principios falsos. Da ignorancia delles aproveitavam-se os brancos para galgar postos elevados. E havia nos Estados do Norte um partido que, por vingança, forçava os negros a acceitar lugares em que elles se julgavam superiores aos brancos do Sul. Quem aguentaria as consequencias disso? O preto, evidentemente. Por outro lado a agitação politica cegava os homens de côr, desviava-os do que tinha importancia para elles: a aprendizagem dum officio e a acquisição da propriedade.
Nesse momento veio-me a tentação de lançar-me na vida publica, mas livrei-me disso ao pensar que me seria possivel realizar tarefa mais util preparando, pela educação intellectual, moral e profissional, uma raça forte. Vi negros funccionarios civis e negros legisladores que não sabiam ler e tinham moralidade e intelligencia bem deficientes. Andando ha tempo numa cidade do Sul, notei que alguns retelhadores no trabalho se dirigiam a um companheiro dando-lhe o nome de governador. Muitas vezes ouvi gritos:
— Acaba com isso, governador, mais telha. Depressa, governador.
Curioso, pedi informações. E soube que se tratava dum preto que tinha sido governador do seu Estado.
Comtudo nem todos os negros que nessa epocha exerceram funcções publicas importantes eram indignos. Alguns, como o senador B. K. Bruce e o governador Pinchback, eram homens honestos e uteis. Mesmo entre os aventureiros do Norte havia pessoas de caracter, como o governador Bullock, da Georgia.
Certamente os negros, destituidos de experiencia politica, commetteram enormes faltas, o que teria acontecido a qualquer outro povo assim ignorante. Os brancos do Sul continuam persuadidos de que, se se permittisse hoje aos pretos o exercicio de direitos politicos, elles recahiriam nos mesmos erros. Acho que não recahiriam: estão muito mais experientes e mais instruidos que ha trinta e cinco annos e aprenderam á sua custa que não podem privar-se do concurso dos seus vizinhos brancos. Estou certo de que o futuro politico do negro estará garantido quando os Estados que acharem conveniente modificar a sua legislação eleitoral elaborarem leis imparciaes que se appliquem igualmente ás duas raças. As minhas observações diarias no Sul convencem-me de que qualquer maneira differente de proceder seria injusta para com o preto, para com o branco e para com todos os outros Estados da União. Seria, como a escravidão, uma iniquidade.
No outomno de 1878, depois de dois annos de ensino em Malden, onde preparei varios rapazes, varias moças e meus dois irmãos para o instituto de Hampton, resolvi passar alguns mezes em Washington, D. C., afim de proseguir nos meus estudos. Fiquei lá oito mezes, largamente aproveitados pelo que aprendi e pelo conhecimento que travei com alguns homens e mulheres de caracter rijo. Não se ministrava nessa instituição nenhum ensino profissional, coisa que a differençava muito de Hampton, onde grande parte do tempo se gastava nessa instrucção. Em Washington os alumnos viviam folgadamente, vestiam á moda e ás vezes mostravam intelligencia brilhante. Pela organização de Hampton, rapazes e moças podiam fazer bons estudos á custa de alguma pessoa que a administração descobria, mas eram obrigados a pagar pensão, roupa, fornecimentos, morada, e isto se fazia com dinheiro ou com serviço. Os estudantes de Washington dispunham de recursos, os de Hampton precisavam dedicar-se ao trabalho manual, o que era muito importante para a formação do caracter. Pareceu-me que os rapazes de Washington não eram muito solidos nem muito independentes e se preoccupavam demais com as apparencias. No fim dos estudos estavam intimos do latim e do grego, mas desconheciam as verdadeiras exigencias da vida que iam encontrar mais tarde lá fóra. Depois de alguns annos de conforto, difficilmente voltariam aos districtos ruraes do Sul, onde a vida não era doce. Preferiam empregar-se como garçons.
Quando morei em Washington, a cidade estava cheia de negros, muitos chegados do Sul. A idéa de que se tinha na capital uma vida facil determinara essa affluencia. Uns haviam conseguido lugares modestos na administração, outros, mais numerosos, esperavam nomeações do governo. Alguns negros, homens de valor, tinham assento na camara dos deputados e um delles, B. K. Bruce, estava no senado. Tudo isso contribuia para fazer de Washington um lugar encantador para os negros, que no districto da Colombia podiam invocar a protecção da lei. As escolas publicas de Washington eram melhores que as do resto do paiz.
Tive a intenção de fazer sobre o meu povo um estudo de costumes, que me pareceu interessante. Se havia uma quantidade razoavel de homens competentes e bons cidadãos, havia tambem grande numero de individuos futeis e levianos que me inquietavam. Vi negrinhos que ganhavam quatro dollars por semana gastarem metade disto no domingo, rodando em carruagem na avenida de Pensylvania, bancando millionarios. Outros que recebiam ordenados de setenta a cem dollars estavam encalacrados no fim do mez. E alguns sahiam do congresso e pouco depois se achavam na miseria. Havia os que depositavam confiança no governo e pretendiam que se criassem cargos especialmente para elles. Nenhuma ambição alem disso.
Desejei muitas vezes ter o poder magico de transportar essa grande massa para o campo, ligal-a ao solo, base immutavel que não engana.
Em Washington conheci jovens lavadeiras que, havendo frequentado as escolas publicas durante seis ou oito annos, tinham a respeito de toilette exigencias absurdas. As necessidades augmentavam e os meios de satisfazel-as continuavam os mesmos. Seis ou oito annos de estudo haviam afastado do trabalho essas raparigas, que muitas vezes acabavam mal. Nada disso aconteceria se lhes tivessem dado na escola, juntamente com a cultura literaria, uma boa educação profissional.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.