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Memorias de um Negro/6

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CAPITULO VI

NEGROS E INDIOS


Nessa epocha um serio movimento se operou na Virginia Occidental com o fim de se mudar a capital do Estado, que era Wheeling, para uma cidade mais central. O poder legislativo designou tres localidades, entre ellas Charleston, que ficava a legua e meia de Malden, minha residencia.

Ora os brancos d´ahi, quando voltei de Washington, me fizeram a surpresa de convidar-me para, em discursos, defender os interesses da cidade. Acceitei o convite e falei tres mezes em differentes lugares. Charleston tornou-se sede do governo. E a reputação que adquiri como orador nessa campanha fez que varias pessoas me aconselhassem a lançar-me na vida publica. Resisti, como já havia resistido, certo de que podia ser mais util aos negros de outra fórma. Achava-me profundamente convencido de que a minha gente necessitava um pouco de instrucção, habilidade industrial e alguma riqueza, coisas mais dignas de esforços que as situações que a politica proporciona.

Quanto a mim parecia-me que, embora me fosse possivel abrir caminho na politica, não me devia occupar com ella: a satisfação dum desejo egoista prejudicaria o dever que me havia imposto de trabalhar pela educação do meu povo.

Nesse tempo os negros que estudavam pretendiam tornar-se advogados e deputados, e as negras tencionavam ser professoras de musica. Eu achava que havia coisas mais urgentes que o preparo de advogados, deputados e professoras de musica. E pensava na historia dum preto velho que, no tempo da escravidão, queria aprender a tocar guitarra. Esse preto dirigiu-se a um dos seus senhores, que, tendo confiança diminuta no talento delle, tentou dissuadil-o deste modo:

— Tio Jake, você terá licções de guitarra. Cobro-lhe tres dollars pela primeira, dois pela segunda, um pela terceira e meio pela quarta.

— Muito bem, patrão, concordou tio Jake. Está feito o negocio. Mas o senhor não poderia começar pela quarta licção?

Apenas terminada a minha tarefa em defesa de Charleston, recebi uma carta que muito me alegrou. O general Armstrong convidava-me para, na distribuição dos premios, falar em nome dos estudantes diplomados. Eu não sonhava com semelhante honra. Preparei, pois, sobre a força que triumpha, o melhor discurso que pude arranjar. Dirigindo-me a Hampton, fiz o mesmo trajecto que havia feito seis annos antes. E, no wagon da estrada de ferro, pensava constantemente nessas duas viagens. Posso dizer, sem receio de mostrar vaidade, que raramente seis annos produziram mudança tão completa na vida dum homem.

Professores e estudantes em Hampton receberam-me de braços abertos. Notei que, depois da minha sahida, o instituto havia progredido muito. Elle não fôra modelado por nenhum outro. Todos os melhoramentos ahi, fructos da excellente direcção do general Armstrong, eram dictados pelas exigencias da hora presente e pelo interesse do publico. Acontece muitas vezes que, civilizando raças atrazadas, missionarios e educadores cedem á tentação de fazer o que se fez em paizes distantes e em tempos distantes: applica-se a individuos differentes o mesmo systema de educação, sem levar em conta o estado intellectual de cada um e o resultado que se deseja obter. Não se deu isso em Hampton.

Toda a gente me prodigalizou felicitações por causa do meu discurso. E acabava de regressar a Malden, para retomar as minhas classes, quando o general Armstrong me chamou novamente a Hampton, onde queria que eu continuasse os meus estudos e me encarregasse duma parte do ensino. Foi isto no verão de 1879. Pouco depois da minha chegada á Virginia Occidental, eu tinha escolhido quatro alumnos intelligentes, alem de meus dois irmãos, e me havia occupado especialmente com elles. Recebidos em Hampton, tinham entrado nas classes elevadas, e a isto eu devia a honra de ser chamado como professor. Entre esses rapazes que preparei achava-se Samuel E. Courtney, hoje dr. Samuel Courtney, medico muito conhecido, membro do School board de Boston.

O general Armstrong desejava experimentar a educação dos indios, coisa que em geral se considerava impossivel. Fez uma tentativa em ponto grande: trouxe do Oeste mais de cem selvagens completamente ignorantes, quasi todos moços. E incumbiu-me de vigial-os, manter a disciplina. examinar-lhes cuidadosamente a roupa e os dormitorios. Era uma boa occupação, mas afastava-me do trabalho a que me sentia fortemente ligado na Virginia Occidental, e isto me desgostava. Comtudo resignei-me, pois nada podia recusar ao general Armstrong. Alojei-me, pois, em companhia de setenta e cinco indios. Eu era ali o unico representante da minha raça, e pareceu-me no começo que não poderia fazer grande coisa por elles. Sabia que, em regra, os indios se consideravam superiores aos brancos e, com mais forte razão, superiores aos negros, que se tinham submettido á escravidão. coisa que elles nunca supportariam. Tinham, pelo contrario, possuido escravos no seu territorio.

A idéa de civilizar indios em Hampton foi acolhida com bastante scepticismo. Senti promptamente a minha responsabilidade e achei que devia proceder com circumspecção. Não me custou, porém, ganhar a confiança dos meus indios, e mais que isto, a sua amizade e o seu respeito. Descobri que eram pouco mais ou menos como todas as criaturas humanas, sensiveis á bondade e rebeldes á violencia. Tentaram por todos os meios agradar-me. O que mais os descontentava era a obrigação de cortar os cabellos, não fumar e abandonar os cobertores de lã que lhes serviam de roupa. Mas precisavam conformar-se: o americano de pelle branca só julga civilizado o homem que se vista como elle e se alimente como elle, fale a sua lingua e pratique a sua religião.

Logo que os indios souberam exprimir-se em inglez, aprenderam officios e entraram no estudo facilmente. Commovia-me a satisfação que os negros manifestavam em servil-os. Havia realmente alguns que não os viam com bons olhos, mas eram em numero reduzido. E nunca deixavam de recebel-os como companheiros de quarto quando era preciso, para habitual-os a falar inglez e tomar os costumes de pessoas civilizadas. Não sei quantas instituições de brancos teriam acolhido assim individuos duma raça extranha. Eu desejaria que os brancos comprehendessem isto: quanto mais uma raça é abjecta e desgraçada mais se elevam aquelles que procuram eleval-a.

Isto me faz pensar numa conversa que tive com Frederico Douglass. Viajava elle em trem na Pensylvania e, por causa da côr, foi obrigado a metter-se num wagon de mercadorias, tendo pago como os outros passageiros. Alguns brancos foram falar com elle, mostrar descontentamento por vel-o degradado.

— Ninguem poderia degradar Frederico Douglass, exclamou o negro erguendo-se da mala que lhe servia de assento. Nenhum homem degrada a alma que está aqui dentro. Degradados estão os que tentaram envergonhar-me infligindo-me esse tratamento.

Numa região onde a lei exige ainda a separação das côres nos trens assisti a uma scena curiosa, pela qual se via que ás vezes é bem difficil estabelecer linha de demarcação entre as duas raças. Tratava-se dum negro, realmente negro, porque os seus o reconheciam como negro, tão branco, porém, que um perito qualquer se enganava com elle. Esse homem viajava no compartimento dos pretos. O conductor descobriu-o e ficou embaraçado: se o sujeito era negro, não podia viajar no wagon dos brancos; se era branco seria injuria fazer-lhe perguntas a respeito de raça. Examinou-o cuidadosamente, observou-lhe os cabellos, os olhos, o nariz, as mãos e continuou perplexo. Emfim teve a idéa de baixar-se e olhar os pés da criatura.

— Isto vai decidir a questão, disse commigo.

Realmente, o funccionario afastou-se, deixando o negro em paz, e a minha raça não se desfalcou, o que achei optimo.

Pode-se julgar a distincção dum homem pelas relações que elle mantem com pessoas de raça menos favorecida que a sua. Não seria possivel encontrar melhor exemplo que o do proprietario do Sul que trata com antigos escravos e descendentes de escravos. A anecdota attribuida a Jorge Washington é significativa. Conta-se que um dia, tendo elle correspondido á saudação dum negro, alguem considerou isto uma condescendencia inutil.

— O senhor não quereria, disse Washington, que um negro pobre e ignorante fosse mais polido que eu.

As minhas relações com os indios revelaram-me, por varias vezes, as extravagancias originadas pelos preconceitos de raça. Um dos rapazes adoeceu e foi-me necessario leval-o a Washington, adquirir no ministerio do Interior um passaporte que lhe permittisse regressar ao Oeste. Nesse tempo eu tinha muito pouca pratica dos costumes em voga. No vapor que nos conduzia a Washington, antes de sentar-me á mesa, deixei que os outros passageiros se levantassem. Disseram-me não obstante, muito cortezmente, que só o indio se podia servir. Perguntei a mim mesmo que differença notavam entre nós dois, pois eramos pouco mais ou menos da mesma côr. Em Hampton tinham-me dado o endereço do hotel onde nos deviamos hospedar em Washington. Ahi me fizeram a mesma objecção: só o meu companheiro podia ser recebido.

Assisti mais tarde a um facto semelhante, que ia tendo consequencias desagradaveis. Numa cidade vi o povo mexer-se num assanhamento horrivel. Temi que fossem lynchar alguem. Dera motivo a essa enorme agitação o apparecimento dum homem escuro que se atrevera a hospedar-se num hotel da localidade. Mas a colera da multidão esmoreceu: o auctor innocente do barulho era marroquino e sabia inglez, lingua que, por prudencia, deixou de falar.

Ao cabo dum anno em meio dos indios, fui chamado para um novo lugar, que julgo um presente da Providencia. Foi ahi que me preparei para a obra de Tuskegee. O general Armstrong havia notado que muitos negros e negras desejavam instruir-se e não podiam entrar no instituto de Hampton, por falta de recursos. Concebeu então a idéa de fundar uma classe nocturna para um numero pequeno de alumnos, os melhores, moças e rapazes, que deveriam trabalhar dez horas por dia e estudar duas. Receberiam como paga quantia superior ao preço da pensão. A maior parte do salario seria depositada na caixa da escola e serviria, depois de um anno ou dois, para as despesas necessarias quando os estudantes frequentassem as aulas communs. Ganhariam elles e ganharia o instituto.

O general pediu-me que tomasse a direcção dessa classe nocturna. Comecei com uma duzia de rapazes e moças, gente robusta e seria. Os homens trabalhavam na serraria da escola, as mulheres na lavandaria. Serviço bem aspero, mas na minha carreira de professor não tive alumnos que me dessem maior satisfação. Estudavam e cumpriam os seus deveres rigorosamente. Não paravam antes do toque da sineta, e algumas vezes pediam o prolongamento das licções. Mostravam tanto ardor que lhes dei o nome de classe dos bravos, expressão que se tornou popular no estabelecimento e ainda hoje permanece. Quando um alumno seguia algum tempo o meu curso nocturno, recebia um certificado que lhe dava muito prazer: “Declaro que F. pertence á classe dos bravos, é assiduo, etc.” Esses certificados contribuiram para a reputação que a classe nocturna alcançou.

Em algumas semanas o numero de estudantes elevou-se a vinte e cinco. Entre elles ha alguns que nunca perdi de vista e hoje occupam situações elevadas no Sul. Essa classe nocturna de Hampton, iniciada modestamente com doze pessoas, conta agora trezentos ou quatrocentos alumnos e tornou-se uma das partes essenciaes da instituição.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.