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Memorias de um Negro/7

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CAPÍTULO VII

PRINCIPIOS DE TUSKEGEE


Emquanto me dedicava aos indios e á classe da noite em Hampton, proseguia nos meus estudos sob a direcção de professores especiaes. Um delles, o reverendo dr. H. B. Frissel, é hoje director do instituto de Hampton.

Em Maio de 1881 a occasião me chegou de entrar no meu verdadeiro caminho, e isto de maneira absolutamente inesperada. Uma tarde, na capella, depois do serviço habitual, o general Armstrong me contou que lhe pediam do Alabama alguem com habilitação para dirigir uma escola normal de negros que desejavam fundar na pequena cidade de Tuskegee. Esperavam um branco, naturalmente. Mas o general Armstrong me surprehendeu perguntando se me sentia com força para encarregar-me dessa tarefa. Respondi que estava disposto a sujeitar-me á experiencia. Elle communicou aos interessados que não havia no momento nenhum branco disponivel, mas que, se elles acceitavam um negro, podia recommendar-lhes um. Passaram-se alguns dias sem resposta; afinal um domingo á tarde chegou um telegramma com estas palavras: “Booker Washington convem. Mande-o immediatamente”.

Mestres e alumnos trouxeram-me parabens pelo convite. Parti para Tuskegee. Demorei-me um pouco na Virginia Occidental, onde visitei a minha gente.

Tuskegee era uma cidadezinha de dois mil habitantes, mais de metade pertencentes á raça negra. Situava-se na parte chamada a Cintura Negra, onde a população de côr é o triplo da branca, e em alguns lugares, o sextuplo. Acho que a expressão Cintura Negra serviu a principio para designar uma região de solo escuro. Effectivamente a terra é negra e muito fertil. Por isso os escravos foram para lá transportados em grande numero. Mais tarde, especialmente depois da guerra, a expressão tomou um sentido exclusivamente politico e applica-se aos Estados onde os negros estão em maioria.

Esperei, chegando em Tuskegee, achar uma escola installada, prompta para funccionar. Imaginem a minha decepção: não encontrei nada. Em compensação havia centenas de criaturas desejosas de instruir-se.

A legua e meia da estrada de ferro, a que se ligava por um ramal, Tuskegee era o ponto ideal para uma escola. No tempo da escravidão havia sido um centro de educação para os brancos. Realmente achei o nivel intellectual delles mais elevado ahi que em outros lugares. Os pretos eram ignorantes, mas não haviam cahido no vicio e na abjecção, o que se dá nas classes inferiores das grandes cidades. E por felicidade negros e brancos mantinham relações cordiaes. Um exemplo: a maior loja de quinquilharia da cidade tinha dois proprietarios, um branco e um negro, que viveram juntos até a morte deste ultimo.

Um anno antes da minha chegada em Tuskegee, alguns negros, sabendo o que se fazia em Hampton, tinham pedido á assembléa do Estado a quantia necessaria para a fundação duma escola normal. Fôra concedida a somma annual de dois mil dollars, mas este dinheiro, segundo me disseram, só podia ser despendido com ordenados de professores. E nada havia para a compra do terreno, construcção do edificio e installação da escola. A empresa não me parecia facil. O que me consolava era ver negros cheios de enthusiasmo, sempre dispostos a offerecer-me os seus serviços para que a idéa não fosse por agua abaixo.

Procurei um lugar conveniente. Depois de percorrer a cidade, o que achei melhor foi uma cabana em ruina, dependencia duma velha igreja methodista que os pretos utilizavam. Igreja e cabana reunidas formaram uma sala de classe, mas tudo ali estava num estrago feio, tão grande que, se chovia, um alumno ficava de pé, com um guarda-chuva aberto por cima da minha cabeça, emquanto durava a licção. Na casa onde me hospedei acontecia o mesmo — guarda-chuva nas horas das refeições.

Quando cheguei ao Alabama, os pretos se interessavam excessivamente pela politica. E queriam inocular-me as suas opiniões. Um delles, escolhido para acaudilhar-me, dizia-me gravemente:

— E´ preciso que o amigo vote comnosco. Não sabemos ler jornaes, isto não sabemos, mas sabemos votar, e é preciso que o amigo vote comnosco. Observamos cuidadosamente os brancos até conhecer-mos para que lado pendem os votos delles. Votamos então em sentido contrario, e estamos certos de que, procedendo assim, não erramos.

Actualmente essa tendencia para votar contra o branco, porque é branco, pouco a pouco desapperece: os negros começam a enxergar principios e a eleger os individuos recommendados pelo interesse geral.

Foi em Junho de 1881 que cheguei a Tuskegee. Passei um mez procurando casa para a escola; em seguida percorri o Alabama, com o fim de estudar os costumes do povo, sobretudo no campo; afinal iniciei a propaganda do estabelecimento projectado. Viajava numa charrette puxada por um burro, comia e dormia em casa de gente simples, visitava fazendas, escolas, igrejas, e, como de ordinario me apresentava inesperadamente, surprehendia a vida real do povo, sem disfarces.

Nos districtos agricolas as habitações tinham apenas um quarto de dormir onde se accommodava toda a familia, não raro alguns parentes afastados e até pessoas que não tinham com ella nenhuma ligação. Para mudar a roupa ou deixar que os outros se deitassem, muitas vezes tive necessidade de sahir. Preparavam-me a cama no chão, ou davam-me lugar numa cama já occupada. Impossivel fazer a toilette dentro de casa. Para isso a gente ia ao pateo, onde em geral se encontrava o necessario.

A alimentação compunha-se de toucinho e pão de milho. E em certas mesas vi apenas pão de milho e ervilhas cozidas com agua. Essas coisas vinham do mercado e eram caras, mas ninguem se lembrava de obter outra comida. Podiam cultivar bons legumes na terra excellente, mas só se interessavam pelo algodão, que plantavam em todos os lugares.

Em moradas de pobres encontrei machinas de costura de sessenta dollars e relogios de doze a quatorze dollars, tudo comprado a prestações. Durante um jantar achei-me em horrivel atrapalhação vendo um garfo para cinco pessoas. Entretanto havia junto da mesa um harmonium de sessenta dollars, comprado a prestações, naturalmente. Ora vejam. Um garfo e um harmonium de sessenta dollars. O peor é que as machinas de costura não serviam para nada, o harmonium enfeitava a sala e os relogios ficavam parados, porque ninguem sabia coser, ler as horas nem tocar.

Em uma dessas casas percebi que era por minha causa que a familia, quebrando os seus habitos, se sentava á mesa. Ordinariamente não se sentava. Pela manhã, ao levantar-se, a mulher punha um pedaço de carne na caçarola e farinha no tacho, levava esses utensilios ao fogo, e dez minutos depois o almoço estava prompto. O homem tomava o pão e a carne e sahia comendo, emquanto marchava para o campo; a mulher servia-se num prato, algumas vezes na caçarola ou no tacho; os meninos alimentavam-se correndo no jardim. Em algumas quadras do anno a carne se tornava rara e então era um luxo inattingivel ás crianças que não tinham força para trabalhar na lavoura.

Depois do almoço a familia geralmente abandonava a casa e dirigia-se ao algodoal, onde todos os individuos capazes de pegar numa enxada trabalhavam. Deitava-se o bebé no chão (pois quasi sempre havia um bebé), debaixo dum algodoeiro, e quando era possivel, a mãe suspendia a tarefa e ia amammental-o. O jantar e a ceia eram pouco mais ou menos iguaes ao almoço.

Todos os dias da semana se passavam desse geito, excepto o sabbado e o domingo. No sabbado a familia ia á cidade, fazer compras. Com o dinheiro que havia uma pessoa em dez minutos faria os negocios necessarios; comtudo o pessoal ficava o dia inteiro na cidade; passeando nas ruas, as mulheres fumando e tomando tabaco. O domingo era gasto em meetings.

Nos lugares que percorri achei, com poucas excepções, as colheitas hypothecadas e os lavradores cobertos de dividas.

O Estado não pudera construir escolas no campo, de modo que geralmente as aulas se davam nas igrejas ou em cabanas de madeira, desabrigadas. Como não havia lá dentro nenhum aquecimento, fazia-se um fogo no pateo, onde mestres e alumnos se accommodavam, quando era preciso. Em regra os professores eram lamentavelmente mal preparados e tinham fraco valor moral. As aulas duravam de tres a cinco mezes por anno. Material quasi nenhum: apenas um rude quadro negro. E um dia vi cinco meninos estudando num livro unico. Dois, sentados, seguravam o volume; dois, em pé, olhavam por cima dos hombros dos primeiros; o quinto, muito pequeno, tentava desesperadamente abrir uma passagem entre os companheiros.

O que referi sobre escolas e mestres applica-se tambem ás igrejas e seus ministros.

Encontrei nas minhas viagens alguns typos bem interessantes. O caso seguinte revela o juizo dos camponezes pobres dessa epocha. Pedi a um preto sexagenario que me falasse da sua vida. Contou-me que nascera na Virginia e fôra vendido em 1845 no Alabama. Quando lhe perguntei quantos haviam sido vendidos com elle, respondeu-me:

– Eramos cinco: meu irmão, eu e tres burros.

Narrando o que observei nos arredores de Tuskegee, não pretendo insinuar aos leitores que ahi só havia miserias. Se insisti nas condições em que achei a população nesse tempo, foi apenas com o intuito de patentear as transformações que se realizaram depois, não sómente pela acção da escola de Tuskegee, mas tambem graças a outras instituições.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.