Menina e Moça (Machado de Assis)

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Está n'aquella idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entre-aberto botão, entre-fechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

Ás vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;

Tem cousas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catechismo e lê versos de amor.

Outras vezes valsando, e seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de commoção.
Quando a boca vermelha os labios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.

Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, á briza enamorada,
Abrir azas de um anjo e tranças de uma huri.

Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.

Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do collegio e o nome de um doutor.

Alegra-se em ouvindo os compassos da orchestra;
E quando entra n'um baile, é já dama do tom;

Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito á Geslin, mas adora a Dazon.

Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ella é o estudo, exceptuando talvez
A lição de syntaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglez.

Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etherea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!

Ah! se n'esse momento hallucinado, fôres
Cahir-lhe aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Has de vêl-a zombar dos teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contal-a á mamã.

É que esta creatura, adoravel, divina,
Nem se póde explicar, nem se póde entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!

Notas do autor

A estes versos respondeu o meu talentoso amigo Ernesto Cybrão com a seguinte poesia; vale a pena escrever de menimas e moças, quando ellas produzem estas flôres e fructos:


FLÔR E FRUCTO.


A antithese é mair do que pensaste, amigo.

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Está n'aquella idade em que se busca o abrigo

Do berço contra o sol, do mundo contra o lar;
Ante-manhã da vida, hora crepuscular,
Que traz dormente a moça e desperta a menina:
Esta brinca no céo, incarnação divina,
Aquella sonha e crê... quantos sonhos de amor!
São uma e outra a mesma: o fructo sahe da flôr.

Era a flôr perfumosa e bella e delicada,
A seducção da briza, o amor da madrugada;

Mas nasce o fructo amargo, e traz veneno em si...
Aqui morre a menina e nasce a moça; aqui
Cede a criança-luz o passo á mulher-fogo;
E vai-se o cherubim, surge o demonio; e logo
Da terra faz escrava e quer pisal-a aos pés.
Insurjo-me: serei vassallo máo talvez,
Serei; e ao triste exilio o coração condemno.
Peço a menina-flôr, dão-me a mulher-veneno;
Prefiro o meu deserto, a minha solidão:
Ella tem o futuro, e eu tenho o coração.

Bem sabes tu que adoro as louras criancinhas,
E levo a adoração no extasi. Adivinhas
Que encontro na criança um perfume dos céos
E n'ella admiro a um tempo a natureza e Deos.
Pois, quando cinjo ao collo uma menina, e penso
Que inda ha de ser mulher, sinto desgosto immenso;
Porque póde ser boa, e victima será,
E, para ser ditosa, ha de talvez ser má...

De mim dirás com pena: « Oh! coração vasio!
Cinza que foste luz! lama que foste rio! »

Olha, amigo, a mulher é um idolo. Tens fé?
Ajoelha e sê feliz; eu contemplo-a de pé.

Cede a Menina e Moça á lei commum: divina
E bella e encantadora emquanto a vês menina;
Moça, transmuda a face e toma um ar cruel:
Desapparece o archanjo e mostra-se Lusbel.
Amo-a quando é criança, adoro-a quando brinca;
Mas, quando pensativa o rubro labio trinca,
E os olhos enlanguece, e perde a rosea côr,
Temo que o fructo-fel surja d'aquella flôr.