Minha formação/V

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De diversos modos a minha primeira ida à Europa influiu para enfraquecer as tendências republicanas que eu porventura tivesse, e fortificar as monárquicas. Antes de tudo, o republicanismo francês, que era e é o nosso, tem um fermento de ódio, uma predisposição igualitária que logicamente leve à demagogia – a sua maior figura é Danton, o homem da Setembrizada –, ao passo que o liberalismo, mesmo radical, não é só compatível com a monarquia, mas até parece aliar-se com o temperamento aristocrático. Se fosse preciso personificar o liberalismo, poder-se-ia chamar-lhe Lafayettismo, por ter sido Lafayette o principal representante dos gentilhommes libéraux de 1789. Esse estreito republicanismo, que confina nos dias de crise com a demagogia, e, exasperado pelo perigo ou excitado pela posse repentina, imprevista, do poder, chega à epidemia sanguinária do Terror, é um fato, pode-se dizer, de reclusão mental: dá-se somente quando o espírito se encerra em algum sistema filosófico ou fanatismo religioso, em uma doutrina ou em uma previsão social qualquer, e aí se isola inteiramente do mundo externo. A intolerância é, ou era, o característico do republicanismo agressivo francês, e a intolerância é uma fobia da liberdade e do mundo; é um fenômeno de retração intelectual, produzindo a hipertrofia ingênua da personalidade.

É provável que em mim também existisse o embrião republicano; não duvido que, nascido em outra condição, não tivesse meu pai na mais alta hierarquia da política, se não descobrisse, como tantos outros que se revoltaram, modo de vencer o terrível multi sunt vocati, pauci vero electi da antiga oligarquia, eu também tivesse acompanhado o movimento republicano de 1870, do qual faziam parte alguns dos espíritos que me fascinavam. Se assim fosse, porém, estou certo que o movimento abolicionista me teria, mais tarde, destacado dele, e que o 13 de maio me identificaria com a sorte da monarquia libertadora. Se, apesar de tudo, eu me tivesse conservado republicano até 15 de novembro – nascesse eu em que condição nascesse, uma vez que fosse o mesmo que sou, isto é, que tivesse recebido no berço os mesmos rudimentos d’alma –, não tenho a menor dúvida de que o abalo, o choque do desterro do imperador teria posto fim à minha fantasia republicana e restabelecido a sinceridade e a lucidez dos meus sentidos políticos. Como quer que fosse, a viagem de 1873 destruiu no gérmen toda e qualquer inclinação republicana, todo indício de fanatismo que eu pudesse ter no segredo da minha natureza.

Não durou muito tempo essa viagem; foi apenas de um ano. A situação de espírito que ela criou já tinha antecedentes nas minhas relações com a pequena roda em que vivia então o corpo diplomático em Petrópolis e na corte, na convivência com ministros e secretários estrangeiros, alguns deles hoje ministros, e até embaixadores. A situação de espírito cosmopolita ou, antes, mundana, caracteriza-se pela compreensão das soluções opostas dos mesmos problemas sociais, pela tolerância de todas as opiniões, pela igual familiaridade com correligionários e adversários, pela idéia, para dizer tudo, de que acima de quaisquer partidos está a boa sociedade. Esse modo de ser, em política, não é necessariamente eclético, nem, ainda menos, cético; é somente incompatível com o fanatismo, isto é, com a intolerância, qualquer que ela seja. Foi a viagem à Europa a grande deslocação que consolidou a tendência anti-sistemática em que eu já estava, amortecendo em mim o predomínio da força política até 1879, quando pela primeira vez entro para o Parlamento; mesmo no Parlamento, porém, depois do ano de estréia , em que as emoções da tribuna me fizeram tomar calor e interesse pela luta dos partidos, desde 1880 até 1889, quando se fechou definitivamente para mim aquela carreira, posso dizer que o efeito da minha deslocação, de 1873, da política partidária, porque todo o tempo que estive na Câmara me acolhi sob uma bandeira mais larga e me coloquei em um terreno politicamente neutro, como era o da emancipação dos escravos.

Essa viagem que assim imprime à minha evolução política o seu caráter definitivo, durou, como eu disse, pouco tempo. Partindo em agosto de 1873, volto ao Rio de Janeiro em setembro de 1874. É menos de um ano de Europa que tenho da primeira vez; desses onze meses, mais ou menos, passo cinco em Paris, três na Itália, um mês no lago de Genebra, um mês em Londres, um mês em Fontainebleau. A razão desse mês de Ouchy e desse mês de Fontainebleau é que, em viagem, sempre que um lugar me fala, eu me deixo prender por ele e me esqueço de viajar. É assim que, mais tarde, pretendo dar ao Niagara a hora indispensável para ver as quedas, me deixo ficar vinte e tantos dias, sem poder arrancar-me daquele espetáculo até o ter inteiramente absorvido.

O mês de Ouchy quer dizer, sem falar de Lausanne, que os primeiros passeios a pé, à beira do lago, de um lado na direção de Coppet, do outro, na direção de Clarens, as visitas a Genebra com a romaria obrigada a Ferney, me colocavam no teatro literário, talvez o mais interessante da Europa moderna, depois de Weimar, porque Clarens é o cenário da Nova Heloísa, e está cheio de eloqüência de Rousseau; Ferney, o dos últimos anos de Voltaire; Coppet, o da realeza de Corinna com a sua corte vinda de Paris, da Alemanha, da Itália, não esquecendo lorde Byron. Mais do que tudo, porém, nessa faixa de terra que liga intelectualmente o século XVIII ao século XIX, o que me teria prendido eternamente a Ouchy, se eu dispusesse de algumas eternidades nesta vida é o lago, o seu corte, a sua moldura.

O mês de Fontaneibleau tem outra explicação: não é o castelo e a floresta só por si o que me prende; é que volto da Inglaterra, tendo pela primeira vez falado inglês com todo o mundo, fascinado por Londres, tocado de um começo de anglomania, que foi a doença da sociedade em França, e, portanto, até isso, acusa a construção francesa do meu espírito, e Fontaneibleau, com o repouso dos seus jardins simétricos, a frescura de suas águas e das suas sombras, a tranqüilidade do seu silêncio, era o mais admirável retiro que eu podia querer nesse mês da minha vida, que posso chamar do mês de Thackeray. Foi esse o claustro ideal em que, fechado com Vanity Fair, Pendennis, The Newcomes, não sei o que mais, sem dicionários, adivinhando o que não podia traduzir, compreendendo tudo, esgotei em mim mesmo até as lágrimas a impressão do grande romancista inglês – o que fiz depois com George Eliot e Trollope, mas nunca fiz, sinto dizê-lo, com Dickens, nem com sir Walter Scott.

De certo, em minutos pode abrir-se e fechar-se diante dos nossos olhos um espetáculo que não esqueceremos nunca. Percorri em meses a Itália, as grandes capitais antigas somente, sinto também dizê-lo; não fiz sequer a romaria de arte pela Umbria; estive duas horas diante dos quatro monumentos da velha Pisa, que inspiraram a Taine a sua página mais eloqüente: como esquecer, no entanto, essa revelação imorredoura? Keats não disse tudo com o seu verso:

A thing of beauty is a joy for ever?

Não só o que é verdadeiramente belo é “essa alegria”, de que ele fala, “para sempre”, um raio interior que se incorpora à vida para nunca mais se apagar, quaisquer que sejam as tempestades, dela, como também uma só thing of beauty, um único fragmento da verdadeira beleza, basta para iluminar a existência humana inteira. Nenhum homem terá compreendido bem duas grandes obras d’arte: a coluna grega e a ogiva gótica, um Miguel Angelo e um Piero della Francesca, nem tampouco duas vistas diferentes de natureza: o oceano e os lagos de montanha; as paisagens da neve e os céus do Oriente. Em caso algum, porém, pode-se sentir uma obra de arte de passagem, isto é, sem que ela produza em nós uma vibração correspondente ao esforço, à sensação do criador quando a compôs.

Como é que em minutos nos poderia penetrar a impressão do artista que levou anos para realizar seu pensamento, e morreu ainda agitado por ele? Eu olhei, por exemplo, para a catedral de Reims, com Rodolfo Dantas, em um dia que roubamos a Paris, linguagem do bulevar; parei para ver a catedral de Amiens; roubei outro dia a Paris para fazer a volta da catedral de Rouen; fui a Strasburgo avistar o grande Münster de Erwin von Steibach; com Artur de Carvalho Moreira, um dos mais finos espíritos da nossa geração acadêmica, fiz uma vez a tournée dos castelos históricos do Loire: Chenonceux, Amboise, Blois, Chambord. Horas para tudo isso! Para Francisco I, Diana de Poitiers, a Renascença Francesa! Mais tarde, por não querer apressar-me assim, não fiz com o mesmo companheiro, o qual deu anos de sua vida intelectual exclusivamente aos goethekenners, a visita as cidades de Goethe: Frankfort, Leipzig – Strasburgo, vi, mas sem pensar em Frederica –, Wetzlar e Weimar. Por toda a parte, posso dizer, passei, como passei em 1892, por Coimbra, Alcobaça, Mafra, a Batalha, sem deixar sequer às impressões o tempo de se gravarem no espírito. Uma hora para a catedral de Reims! só não foi um ultraje, uma ofensa àquela divina fachada, porque lá estive em verdadeira humilhação, e não lancei olhares críticos ao seu sublime portal, a toda a sua incomparável legenda, como o gamin lhe atira pedras. Uma hora em Amiens! nesse “Partenão da literatura gótica”, como lhe chamou Viollet-le-Duc, e levando na mão a Bíblia de Amiens de John Ruskin, o qual chega a invejar o humilde guarda, cuja função é espanar-lhe as esculturas de madeira, como nunca outras foram talhadas!

De passagem, pode-se ver muita coisa, mas não se tem a revelação de nada. A primeira condição para o espírito receber a impressão de uma grande criação qualquer, seja ela de Deus, seja das épocas – nada é puramente individual –, é o repouso, a ocasião, a passividade, o apagamento do pensamento próprio; dar à forma divina o tempo que ela quiser para refletir-se em nós, para deixar-nos compreendê-la e admirá-la, para revelar-nos o pensamento originário donde nasceu.

De todos esses lugares da Suíça ou da Itália, de Fontaneibleau, de Paris, de Londres, não trago senão impressões literárias, impressões de vida; o grande efeito em mim dessa viagem é assim apagar a política; suspender durante um ano, inteiramente, a faculdade política, que, uma vez suspensa, parada, está quebrada e não volta mais a ser a mola principal do espírito. Eu não podia entretanto estar em França, em uma época de transformação, como foi essa de 1873-74, e às vezes, em contato com homens políticos, nem penetrar na sociedade inglesa, sem que a grande política européia exercesse uma influência positiva sobre o meu espírito, além da modificação operada negativamente, como eu disse, pelo meu afastamento do nosso cenário local e pela sensação d’arte. Apesar de tudo, eu tinha afinidades políticas inapagáveis, que poderiam, quando muito, ficar secundárias, subordinadas à atração puramente intelectual. Dessa modificação positiva falarei agora.