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Minha formação/VI

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A época em que eu pela primeira vez tinha Paris por menagem, era historicamente tão interessante que um espírito sujeito como o meu a fortes tentações políticas não poderia deixar de voltar-se para o espetáculo dos acontecimentos, apesar dos meus deslumbramentos artísticos e literários. Compreende-se, porém, que a atração contrária à política era ainda mais poderosa, pela novidade, pelo esplendor das suas revelações contínuas, do que o próprio drama contemporâneo. No Rio de Janeiro ou em S. Paulo, quem se alimente de política, quando a sensação de um grande acontecimento se apossa dele, não encontra nada em redor de si que a corrija ou lhe sirva de contrapeso; felizmente, os acontecimentos raros são grandes. Para um jovem brasileiro, porém, que pela primeira vez chega a Paris, é quase impossível imaginar acontecimento que possa torná-lo indiferente ao maravilhoso que o surpreende a cada passo, ou sensação política que não fosse amortecida, dominada logo, pela sensação de arte.

Realmente, a luta entre o duque de Broglie e monsieur Thiers, o teatro do palácio de Versalhes convertido em Assembléia Nacional, o Trianon dando as suas salas para o conselho de guerra de Bazaine, atraíam-me, e fui um dos mais ansiosos espectadores que assistiram nessa época aos debates daquela assembléia, ou que participaram da emoção daquele grande processo militar, apesar de tudo pouco generoso.

Nunca hei de esquecer as frias manhãs de novembro em que o meu querido amigo José Caetano de Andrade Pinto, depois conselheiro de Estado, e eu atravessávamos de carro aberto as alamedas de Versalhes para tomar os nossos lugares na própria tribuna do marechal Bazaine, por detrás dele, quase os únicos que, talvez por lhe sermos estranhos e sermos estrangeiros, tínhamos a coragem de acompanhar daquele lugar os interrogatórios, a acusação e a defesa. No último momento, quando se mandou fechar a tribuna particular do marechal, passamos para o prétoire. Que emoção a nossa quando o duque d’Aumale, de pé, como todo o Conselho, que formava semicírculo em torno dele, a fita vermelha da Legião de Honra passada sobre o grande uniforme, o chapéu de plumas na cabeça como em um campo de batalha, na mão uma grande folha de papel sobre a qual se projetava o refletor de uma lâmpada sustentada por trás dele por um imponente vulto de huissier, com a solenidade de quem depois de um exílio de vinte e cinco anos representava outra vez perante a França, leu os três Oui, à l’humanimité, que sibilaram pela sala toda como as balas de um pelotão!

Também me hei de lembrar sempre da sessão da Assembléia Nacional em que se votou o setenato de Mac-Mahon como medida provisória, dilatória, entre a restauração, temporariamente impossibilitada por causa da bandeira branca, e a república, que não queriam proclamar. Se nesses sete anos morresse o conde de Chambord, regnante ainda o duque de Magenta, quem sabe se o conde de Paris não reuniria os votos dos Chevaulégers e da alta finança do Centro Esquerdo! Afianço a quem me lê que, depois de um discurso pronunciado pelo duque de Broglie, com o seu acento nasal, a sua perfeição acadêmica, sua maneira e suas maneiras ancien régime, ver subir à tribuna o velho Dufaure e de improviso, sem frases cadenciadas, sem períodos embutidos uns nos outros como um mosaico literário, tomar entre as mãos o discurso do neto de Mme de Staël, amassá-lo, dar-lhes as formas que queria, até ninguém mais o poder reconhecer; assistir a um duelo desses, da elegância com a eloqüência, é um prazer que não se esquece mais. E não ouvi Berryer! Ali, em Versalhes, eu encontrava ainda os restos da grande geração parlamentar que começou na Restauração e que trouxe as suas tradições, a sua escola de oratória, para as Câmaras de Luís Filipe. Tudo isto, não é preciso dizê-lo, me interessava no mais íntimo de mim mesmo, intelectualmente, falando, mas um simples relance sobre quaisquer páginas do meu diário nessa época basta para mostrar quanto o meu interesse se dividia e o meu espírito era solicitado em direções contrárias por sensações quase do mesmo valor.

Assim, por exemplo (o itálico é para mostrar as oposições repentinas): “19 de novembro. A sessão do Setenato (em que foi votada a prorrogação dos poderes do marechal). – 21 de novembro – Começo a ir ao processo Bazaine. – 22 de novembro. Visita a Ernesto Renan. – 2 de janeiro (1874) Chateauroux – 3 de janeiro. De manhã. Route de la Châtre. Bosques de álamos batidos pela ventania. Em Nohant às 11 horas. Esperavam-me desde a véspera, tinham um aposento para mim. Maurice Sand, a mulher filha de Calamatta. Fazem-me almoçar. Ao meio-dia, vem George Sand. Conversamos até as 3 horas. Pediu-me para ficar algum tempo em Nohant. Falamos de Renan, de Jaconde, do teatro, de Bressant, do imperador, que ela não viu. – 4 de janeiro. Orleans, Catedral. Casas de Jeane d’Arc, Agnès Sorel, Diane de Poitiers. Notícia da queda de Castelar... – 3 de janeiro. Fomos ao château de Chambord. Escadaria de pedra à double rampe. Os FF e as Salamandras de Fransisco I. O Bourgeois Gentilhomme, 1970. Souvent femme varie. Château de Blois. Quarto de Henrique II. Escada exterior espiral. Renascença Francesa. – 10 de janeiro. Visita a monsieur Thiers”.

Talvez o dia em que viram pela primeira vez a Vênus de Milo ou a Jaconde tenha passado indiferente para muitos que notaram as suas menores impressões políticas. Eu, porém, não poderia sequer lembrar-me de que fora político diante do mármore dos mármores ou do colorido que se esvai e de um traço que se apaga de Leonardo. Na própria política eu achava-me dividido pela mais positiva dualidade que se pudesse dar. De sentimento, de temperamento, de razão, eu era um tão exaltado partidário de Thiers como qualquer republicano francês; pela imaginação histórica e estética era porém legitimista; isto é, perante o artista imperfeito e incompleto que há em mim, a figura do conde de Chambord reduzia a de Thiers a proporções moralmente insignificantes. Quando em um mesmo homem há um lírico e um político, a lenda tem para ele uma projeção duas vezes maior que a da história.

Nesse espaço de tempo a que me refiro, a República estava ainda em questão em França; Thiers havia sido forçado a demitir-se, e a sua substituição, com surpresa dele, recaíra no seu general-chefe, que dispunha, absolutamente, do exército, o marechal de Mac-Mahon. A reconciliação do conde de Paris com o chefe da casa de França tinha-se efetuado em Frohsdorf, em 5 de agosto; os cavalos para a entrada solene do rei em Paris estavam sendo negociados, quando o Ministério recuou, sentindo-se sem forças para impor aos soldados a bandeira branca. A Restauração, pode-se dizer, tinha abortado; mas, de um momento para outro, Henrique V podia inspirar-se no precedente de Henrique VI e aceitar a bandeira da Revolução. Ainda há pouco, o general du Barail, que era o ministro da guerra do duque de Broglie, confessou que, se o conde de Chambord tivesse querido, não era o setenato, era sim, a monarquia que teria sido aclamada.

“O marechal, escreve ele, estava convencido de que o príncipe cedera a uma consideração patriótica: ao receio de atrair sobre o seu país a animosidade e até as armas da Alemanha.” O testemunho recente do duque de Broglie e do embaixador em Berlim, o conde de Gontaut-Biron, indicam isso mesmo, que o conde de Chambord viu que a Restauração seria guerra com a Alemanha e quis poupar à França uma Segunda e pior mutilação. Quem sabe, também, à vista dessas revelações diplomáticas, se não foi esse mesmo o motivo secreto superior de Thiers para desertar a Monarquia?

Quem viu o velho estadista empenhar-se na consolidação da República com todo o seu prestígio e o seu poder de persuasão, desde que levantara a França dos campos de batalha onde jazia ferida e retirara do poder da Comuna Paris ainda em chamas, pode pensar que não se dá toda essa dedicação a uma causa que não se tenha intimamente a peito. A verdade é que, se Thiers tivesse empregado em restaurar a monarquia a metade do esforço e do trabalho que empregou em consolidar a República, a realeza provavelmente teria sido proclamada, talvez ainda em Bordéus. Durante muito tempo ele manteve-se como o fiel da balança entre os partidos. Não se pode ler sem emoção esses seus discursos de 1871, quando ele se vê entre os dois lados da Assembléia e inventa distinções para impedir que eles se tratem como inimigos diante do invasor estrangeiro, todas essas distinções sutis, como entre constituir e reorganizar, entre renunciar e reservar o poder constituinte.

Eu era como político francamente thierista, isto é, em França, de fato republicano. Isto não quer dizer, porém, que me sentisse republicano de princípio; pelo contrário. A Terceira República em França foi fundada por monarquistas; foi uma transação de estadistas monárquicos, como Thiers, Dufaure, Rémusat, Léon Say, Casimir Périer, Waddington, e todo o Centro-Esquerdo.

“Soa como um paradoxo, escreveu, com admirável lucidez, um dos hábeis redatores da Quaterly Review em 1890, mas não é por isso menos exato, que a principal barreira diante de uma restauração monárquica em França é o crescente conservatismo que foi sempre inerente ao caráter francês no meio de todas as ebulições do sentimento excitado. O povo sabe que uma mudança na forma de governo só poderia ser realizada por meio de uma revolução ou como resultado de uma guerra, e recua diante da perspectiva de uma e outra eventualidade, preferindo aceitar o presente estado de coisas, ainda que este não lhe desperte entusiasmo.”

Esse espírito conservador da França, inimigo das mudanças bruscas, mesmo para melhorar, é bem caracterizado por esta anedota, como a contou há anos um correspondente do Times. Durante as barricadas de junho, quando se ouvia o canhão nas ruas de Paris, mandaram uma companhia guardar o Ministério de Estrangeiros. O oficial que comandava, de espada desembainhada, entrou na Secretaria, mas parou à porta de uma das salas, vendo que os empregados continuavam tranqüilamente em suas mesas de trabalho, como se nada estivesse acontecendo. Vendo-o, o diretor levanta-se com uma porção de papéis, prontos para a assinatura do ministro, aproxima-se dele e, inclinando-se, pergunta-lhe com a maior deferência e naturalidade: “É ao novo governo que tenho a honra de dirigir-me?”

Era esse conservatismo que pelo órgão, principalmente, de Thiers fundava então a Terceira República; o mesmo que não deixou ainda divorciar-se dela o espírito da burguesia liberal – espírito a que se pode chamar Centre-Gauche –, nenhum analista negará que a quintessência desse conservatismo fosse monárquica, mais sinceramente monárquica do que o espírito de fronde das côteries restauradoras.

Essa primeira grande escola estrangeira em que aprendi, não me podia fazer republicano de sentimento, como não fez republicano de sentimento a nenhum dos seus fundadores, como não fez, nem faz, republicanos aos liberais conservadores ingleses, ou às testas coroadas da Europa, que, sem má vontade à França, preferem a República à Realeza ou ao Império; como não faz republicano ao papa, que protege poderosamente o atual sistema francês. O grande efeito sobre mim daquela atitude de Thiers e dos parlamentares da Monarquia de Julho era dar-me uma grande prova experimental de que a forma de governo não é uma questão teórica, porém prática, relativa, de tempo e de situação, o que em relação ao Brasil era um poderoso alento para a minha predileção monárquica. O grande efeito era este: destruir o gérmen republicano latente, gérmen de intolerância e de fanatismo. E esse foi o grande serviço de Thiers à França moderna: o de acabar com o antigo monopólio jacobino sobre a idéia republicana.

É o mesmo escritor da Quarterly quem finalmente observa: “Ainda que, por um lado, o genuíno sentimento realista esteja quase extinto, por outro, o sentimento republicano também por sua vez esfriou. A nova geração é republicana no sentido de não acreditar na possibilidade de uma restauração monárquica; o ardente republicanismo dos velhos doutrinários, esse, porém, está quase tão morto como a advocacia do direito divino dos reis”. Essa modificação, que está hoje terminada, começou em 1871, e foi o resultado da adesão, não foi conversão, do Centro-Esquerdo à situação republicana criada para a França na Europa pela derrota de Sedan. Esse duplo e igual esfriamento e do republicanismo, pode-se dizer que forma a atmosfera natural do liberalismo contemporâneo e da cultura política moderna, e, assim como ela aproveita em França à república, devia aproveitar no Brasil à monarquia. Foi esta a grande influência política que exerceu sobre mim a minha estada em França de 1873-74. Agora resta-me precisar a influência rival que sofri, e a que chamarei influência literária, graças a qual voltei da Europa consideravelmente menos político do que partira.