Minha formação/XIV

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Talvez o melhor modo de mostrar o que devo aos Estados Unidos seja reproduzir páginas do meu diário de 1876-77. Cheguei pouco tempo depois da visita do imperador; pude assim recolher o eco da impressão deixada por ele. O ano que passei na grande República foi um dos seus momentos políticos mais interessantes, porque foi o da eleição de Tilden. Como se sabe, os democratas ganharam as eleições de 1876, mas as juntas apuradoras republicanas de alguns Estados do Sul manipularam as atas de forma a dar maioria aos eleitores do seu partido. Ambos os lados reclamavam a vitória, e, como a Câmara dos Representantes era democrata e o Senado republicano, a perspectiva era que o Congresso não chegaria a acordo até março, e que os Estados Unidos teriam dois presidentes com todas as probabilidades de uma guerra civil. O espírito prático, o espírito de transação da raça anglo-saxônia interveio, e as duas casas do Congresso concordaram em entregar o julgamento a uma comissão especial, tirada de cada uma delas e do Supremo Tribunal. A diferença entre Inglaterra e os Estados Unidos não pode ser melhor apresentada do que nesse caso: a resolução americana foi como a inglesa, o acordo em vez da guerra civil dos países latinos, mas nos Estados Unidos, ao contrário do que aconteceria na Inglaterra, a comissão não se elevou acima do espírito de facção, as votações foram todas estritamente partidárias, o que quer dizer, figurando nela cinco membros da Corte Suprema, que o mais alto tribunal da União era composto de politicians. Com juízes ingleses a decisão teria, talvez, sido injusta, mas não seria nunca parcial, dada por motivo político; não se contariam de antemão os votos dos juízes como os dos congressistas. Em tão pouco tempo como tive, nenhum estudo comparativo da educação, da seriedade e dos costumes políticos dos dois países podia ser mais proveitoso para mim do que foi essa campanha eleitoral de 1876-1877 e o desenlace que ela teve. As qualidades e as deficiências da política americana estavam todas visíveis e patentes nessa lição de coisas. Eu tinha acompanhado a luta dos partidos para a captura da cadeira presidencial com o maior interesse, cada boss me era conhecido, como o era cada figura de senador, a opinião de cada jornalista influente, cada nuança das duas convenções. É realmente o momento para o estrangeiro abranger num relance a vida política dos Estados Unidos, esse ano eleitoral. Eu tinha chegado a Nova York a tempo de familiarizar-me com as questões, as alusões, a gíria política do formidável canvass que se ia travar e do qual a política da reconstrução no Sul devia ser o eixo. Interessava-me o Tammany Ring, o Whiskey Ring, o cisma dos Independentes, o Civil-Service Reform, o Railroad Land-Grants, como me interessava o encontro de Gladstone com Disraeli na questão do Oriente, ou a luta de Thiers com o duque de Broglie. Durante mais de um ano fui um verdadeiro americano nos Estados Unidos, como o provérbio manda ser romano em Roma. Era o meio de penetrar, de compreender, de sentir a vida política do país, se eu o queria, e este fora o meu motivo ao desejar ir para os Estados Unidos.

O meu diário desse ano é antes um registro de pensamentos do que de impressões americanas. Há muito pouca política nele, o que mostra que eu vivia em uma atmosfera diversa da que os homens de partido respiram, mesmo no estrangeiro. Reproduzo algumas dessas notas para mostrar isto mesmo, que o meio norte-americano teve sobre mim o efeito que muita vez tem sobre os próprios americanos, de desinteressá-los da política, exceto como e espectadores. Posso dizer que vivi esses dois anos, de 1876 e 1867, na sociedade de Nova York, onde se está tão longe da política americana como em Londres ou em Paris; mas o mundo exterior, que me cercava por toda parte, a rua, a praça pública com os seus cartazes e procissões eleitorais, os jornais com as cenas do Congresso e as torrentes de eloqüência dos meetings, não podia deixar de atrair-me como todo espetáculo nacional curioso e único, além, está visto, do interesse intelectual que eu tinha em saber como um tão grande país era governado e dirigido, as forças sociais e influências morais que presidiam ao seu colossal desenvolvimento. Aqui estão ao acaso algumas das notas.

“22 de outubro. O discurso de Carl Schurz pronunciado ontem no Union League Club, expõe o sentimento republicano na melhor luz. O principal elemento da presente campanha começa a ser a Questão do Sul. Com a aproximação do dia 7 de novembro esse ponto de vista tornar-se-á mais importante do que todos os outros. A camisa ensangüentada (bloody-shirt) caiu em completo descrédito, mas é preciso contar como receio de que o Sul, unido, composto dos antigos Estados rebeldes e onde os candidatos são todos soldados da Confederação, possa dominar o Norte tão cedo, depois da guerra, passando o governo americano a ser representado por antigos separatistas. Esta idéia assunta os que põe acima de tudo a União, mesmo quando seja preciso reduzir os Estados impenitentes a territórios sujeitos ao despotismo militar e entregues politicamente ao domínio conjunto dos carpet-baggers e dos negros. Este elemento decidirá, provavelmente, em favor de Hayes a luta que de outra forma seria nos últimos anos desonra a política americana.”

“1º de janeiro. Cheguei a Washington, em Riggs House. Pela primeira vez ponho o uniforme. À Casa Branca. Apresentação ao presidente, depois à casa do secretário de Estado, mr. Fish. A chamada dinastia Grant, a filha de mrs. Sartoris; a netinha recebendo os cumprimentos pelo avô. Vou com o capitão-tenente Saldanha de Gama visitar os membros da Corte Suprema: através da terrapine e das baked oysters todo dia, até que em casa do secretário da Marinha um solene the reception is over! põe termo à nossa peregrinação de New-Year’s day.”

Eu tinha conhecido Saldanha na Exposição de Filadélfia, depois ligamo-nos muito em Nova York, onde morávamos no mesmo hotel, o Buckingham. Ele ria-se sempre muito daquele: the reception is over! Pobre Saldanha! nascido para o mundo, para o amor, para a glória, quem imaginaria, ao vê-lo naquele tempo em Nova York, que o seu destino seria o que foi? A esfinge da vida que lhe dera, ainda adolescente, um dos seus enigmas indecifráveis para resolver, destruindo nele a aspiração de ser feliz, reapareceu de novo a embargar-lhe o passo no momento em que podia disputar a primeira posição do país.

“11 de janeiro. À casa de mr. John Hamilton, filho de Alexandre Hamilton. Um homem do passado, voltado todo para ele. Diz-me que o Brasil deve conservar o mais tempo possível a sua formação monárquica. Este Whig não acredita que países como os nossos possam durar unidos sob outra forma de governo. Emoção ao mostrar-me o retrato de Luís XVI, presente feito ao pai...”

“22 de fevereiro. Almocei com mr. Marshall no Knickerbocker Club, hoje aniversário de Washington; almoçavam mr. Manton Marble, ex-redator do World, mr. Appleton, o grande editor, mr. Stout, mr. Robinson, mr. Pell, e outros. Ao toast feito ao imperador respondi, como todas as saúdes eram humorísticas, com um ensaio de humor. Disse que nós tínhamos tido receio de que os americanos o guardassem, lembrando-se de que uma grande autoridade para eles, o general Lafayette, dissera da Monarquia constitucional: “Aqui está a melhor das repúblicas”. Mas, desde que eles tinham deixado o imperador partir, eu fazia votos para que os dois países conservassem suas instituições como uma aposta de liberdade perpétua entre a Monarquia e a República. Quanto a Washington, fiz uma reserva à sua grande obra: a de ter fundado a capital em uma cidade, sem dúvida, muito agradável, mas para a qual sempre se vai a custo, quando se tem que deixar Nova York.”

“Março, 2. Hoje fui ao Congresso ver os destroços da véspera. (Hayes fora proclamado presidente por um voto.) Não há alegria no lado republicano; no democrata a decepção é grande; mas, em pouco tempo, quando a ferida tiver cicatrizado e se pensar no futuro, esse partido ficará contente de se terem passado as coisas como vimos ontem. O general Banks, antigo speaker da Câmara, cedeu-me a sua cadeira no próprio recinto do Congresso (em sessão), depois veio sentar-se nela o meu ministro, e fomos apresentados a diversos deputados, notáveis, entre eles Lamar e Garfield.”

“8 de março. O presidente propõe uma emenda constitucional, tornando o prazo da presidência de seis anos, sem reeleição. Essa emenda provém do medo que se tem de que as eleições presidenciais sejam tão disputadas pelos dois partidos, que dividem em duas metades o país, como foram as do outono passado, e que os negócios de três em três anos tenham um quarto ano de interrupção e de paralisia, como se tudo peregrinasse e a anarquia ou a guerra civil, talvez a separação, pudesse seguir-me a uma eleição duvidosa. Os interesses do comércio e os da propriedade conseguirão um dia alongar o prazo até seis anos, e como com a maior escassez de eleições elas tendem a tornar-se mais renhidas, não há prazo para o país correr todos os seis anos um risco que não quer correr todos os quatro. Assim, a eleição crítica do chefe do Estado irá sendo o mais possível espaçada, e não é impossível que a República americana se aproxime tão de perto das monarquias eletivas, que, vendo o perigo desta forma, ela prefira a tranqüilidade das longas dinastias...

É curioso que o que há de mais perfeita nesta democracia seja a mulher, que é aqui o ente mais aristocrático do mundo.”

“2 de abril. A idéia de governo hoje é inteiramente diversa da idéia de governo antigamente; tomemos, por exemplo, a liberdade de imprensa nos Estados Unidos, que representavam a nova educação política, e a censura na Rússia. Há muito que dizer em favor de se deixar o pensamento inteiramente livre e sobre os inconvenientes da repressão; mas o correto é que se formam duas sociedades diversas pelo respeito forçado à autoridade e pelo desprestígio dela. A dificuldade que há no caminho da tradição é que a dignidade, ou a altivez pessoal, não quer sacrificar-se aos grandes resultados morais e que os homens se consideram todos iguais por um sentimento que já é indestrutível. Eu sou seguramente igual a um rei, como indivíduo, mas, como do princípio da Monarquia vêm muitos bens para a sociedade, colocome em plano inferior. Isso não é quebra de dignidade humana, ainda que a altivez pessoal tenha que se curvar.”

“13 de maio. Diz-se que Tilden não reconhece Hayes como presidente. É o caso de algum amigo ler-lhe o Kriton. Quando Kriton quer convencer a Sócrates de que deve fugir para evitar uma morte injusta, Sócrates nega-se com o fundamento de que a sentença, injusta como é, é todavia inteiramente legal. Se os juízes fizeram mal em pronunciá-la, ele faria pior em não se sujeitar às leis de Atenas, porque o cidadão que goza da proteção e dos direitos que uma cidade lhe oferece, tem com ela o pacto tácito de respeitar as suas leis. Sócrates recusava a vida por ser ilegal, ainda que soubesse que adviria da sua fuga mais bem do que mal à democracia ateniense. Não devia Tilden reler esse diálogo? Injusta como foi a decisão contra ele, foi estritamente legal, não no sentido de estar de acordo com o direito, mas por ser dada pelos intérpretes competentes da lei. Ele só pode chamar para si e o seu partido as simpatias de todos, sujeitando-se à decisão proferida, salvo o seu direito de brandir contra o novo presidente as fraudes pelas quais chegou ao poder.”

“Junho, 13. Ontem realizou-se no Manhattan Club a recepção dos swallow-tails aos candidatos democráticos eleitos e counted out. Tilden falou pela primeira vez depois da inauguração de Hayes, à qual chamou o mais portentoso acontecimento na história da América. América quer dizer Estados Unidos, porque no México e no Peru há, cada dia, acontecimentos desses muito mais portentosos. ‘Os males no governo crescem com o êxito e com a impunidade. Não se restringem a si mesmos voluntariamente. Não podem ser nunca limitados senão por forças externas. Uma grande e nobre nação não separa a sua vida política da sua vida moral.’ Tudo isto é muito exato. O Brasil é a prova. Deve o povo, ou não, fazer política? O adiantamento de um país prova-se pela extensão da idéia de que a política é inseparável dos mais vitais interesses da sociedade, e por aí, de cada um. No Brasil, essa idéia não se derramou, pelas condições especiais em que nos achamos, de território, população, trabalho escravo, etc. Aqui ela está em cada cabeça. O que mais me surpreendeu nessa reunião de Manhattan, foi o governador de Nova York, este de jure e de facto, mr. Robinson, chamar em público ao presidente dos Estados Unidos um presidente fraudulento. Depois de ter dito que não teriam que esperar até 1880 para pô-lo fora da Casa Branca, terminou assim, referindo-se a Tilden e a Hendricks: ‘Fellow citizens, tivestes a primeira oportunidade de saudar o presidente e o vice-presidente dos Estados Unidos depois da sua eleição. Eu vos felicito e acredito que este é apenas um presságio de fatos que se hão de suceder’. A alocução do governador do principal Estado da União proclamando a rebelião, legal ou ilegal, é característico do regime político americano, e do laissez-faire, laissez-passer de que goza neste país a palavra. As revoluções de língua e pena não são nunca um delito; são um desabafo. A boca do politician é uma válvula de segurança das instituições. É o país das válvulas automáticas.”

“19 de junho. Os jornais têm hoje um fato interessante: a visita feita por Frederic Douglass ao seu velho senhor, que deixou na adolescência, para começar a vida de aventuras que o levou até ser marshall em Washington e o grande orador da abolição que foi. Vim antes de tudo, disse Douglass, ver meu velho senhor, de quem estive separado 41 anos, apertar-lhe a mão, contemplar-lhe o velho rosto bondoso, brilhando com o reflexo da outra vida.’

Esta cena dá uma idéia mais tocante da escravidão no Sul do que a Cabana do Pai Tomás. O lugar é St. Michel, Talbot, County, Md. O nome do senhor Capt, Thomas Aould. Marshall Douglass ouviu a sua verdadeira cidade da boca do seu senhor, em cujos livros ele figura assim: ‘Frederic Balley, fevereiro 1818’. Provavelmente, o senhor não registrou mais carreira agitada de Frederic desde a idade de 18 anos (1836). Esse fato é, do que tenho lido, uma das mais profundas e penetrantes apresentações do fato moral complexo da escravidão, o laço entre escravo e senhor.”