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Minha formação/XVI

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Dos Estados Unidos não vi senão muito pouco, como da Inglaterra, por isso as impressões que reproduzo devem ser entendidas como impressões de Nova York e Washington, quase exclusivamente. Por uma circunstância fortuita pude ficar em Nova York quase todo o tempo que passei na legação do Brasil. O meu ministro, o barão de Carvalho Borges, de quem conservo a mais grata recordação, estava de luto, por isso ausentara-se de Washington e vivia em Nova York, incógnito, ao contrário de outros colegas seus, contra cujo realce aos bailes e recepções da Quinta Avenida os jornais de Washington em vão reclamavam. Além das duas grandes capitais da União, a política e a cosmopolita, conheci somente Filadélfia, durante o centenário, Saratoga, durante uma Convenção Nacional, e Niagara e Boston, que me fizeram perder Newport. A idéia, porém, que tenho é que fizeram quem viu Nova York e Washington viu tudo que há que ver nos Estados Unidos, excetuando somente as poucas cidades a que se podem chamar cidades históricas, que têm o cunho das suas tradições próprias. Quem viu Buffalo, St. Louis, S. Francisco, Chicago, não viu porém Nova York, como quem viu Saratoga não viu Newport, ao passo que Boston, Nova Orleans, não têm semelhantes.

Para o engenheiro, para o inventor, para o arquiteto, para todo economizador de tempo e trabalho, para quem admira acima de todos o gênio industrial deste século, os melhoramentos que ele tem introduzido na ferramenta humana, os Estados Unidos são de uma extremidade a outra um país para se visitar e conhecer. É ele, talvez, o país onde melhor se pode estudar a civilização material, onde o poder dinâmico ao serviço do homem parece maior e ao alcance de cada um. Em certo sentido, pode-se dizer dele que é uma torre de Babel bem sucedida. Na ordem intelectual e moral, porém, compreendo a arte, os Estados Unidos não têm o que mostrar, e certa ordem de cultura, toda cultura superior quase não precisa para ser perfeita e completa de adquirir nenhum contigente americano.

Da política, a impressão geral que tive e conservo é a de uma luta sem o desinteresse, a elevação de patriotismo, a delicadeza de maneiras e a honestidade de processos que tornam na Inglaterra, por exemplo, a carreira política aceitável e mesmo simpática aos espíritos mais distintos. O que caracteriza essa luta é a crueza da publicidade a que todos que entram nela estão expostos. Como antes eu disse, não há vida particular nos Estados Unidos. Para a reportagem não existe linha divisória entra a vida pública e a privada. O adversário está sujeito a uma investigação sem limites e sem escrúpulos, e não ele, somente – todos que lhe dizem respeito. Se um candidato à Presidência tiver tido na mocidade a menor aventura, terá o desgosto de vê-la fotografada, apregoada nas ruas, colorida em cartazes, cantada nos music-halls, por todos os modos e invenções que o ridículo sugerir e parecerem mais próprios para captar o eleitorado. A campanha contra Tilden foi feita com uma revelação de que ele tinha uma vez iludido o fisco, a respeito do seu rendimento profissional. O político é entregue sem piedade aos repórteres; a obrigação destes é rasgar-lhes, seja como for, a reputação, reduzi-la a um andrajo, rolar com ele na lama. Para isso não há artifício que não pareça legítimo à imprensa partidária; não há espionagem, corrupção, furto de documentos, intercepção de correspondência ou de confidência, que não fosse justificada pelo sucesso.

O efeito de tal sistema pode ser moralizar a vida privada, pelo menos a dos que pretendem entrar para a política, se há moralidade no terror causado por um desses formidáveis exposures eleitorais, os franceses diriam chantage. A vida política, porém, ele não tem moralizado. A consciência pública americana é muito inferior à privada, a moral do Estado à moral de família.

De certo, nos Estados Unidos, os chamados rings, nós diríamos quadrilhas, roubos políticos, os sindicatos administrativos são denunciados e investigados como não o seriam talvez em nenhum país, o americano não tendo pena dos adversários, julgando-se obrigado para com o seu partido a reduzi-los à condição mais humilhante, a expeli-los um por um, sendo possível, da vida pública. Mas, desde que a corrupção reina nos dois partidos, que ambos têm as suas chagas conhecidos, as suas ligações comprometedoras, todas as campanhas a favor da pureza administrativa têm muito de insincero, de simulado, de convencional, o que não acontece com as investigações da vida privada. Estas, sim, encontram em toda a parte a unidade do sentimento e da educação religiosa do país para ecoá-las. A consciência em voga entre os politicians tem a sua casuística especial.

Isto não quer dizer que na política americana não haja um tipo muito diferente do do politician, ou, como os antigos lhe chamariam, do demagogo; que, ao lado da consciência elástica, insensibilizada para todas as espécies de fraude, de corrupção, de chicana, como males inevitáveis da democracia, não exista a honra, o decoro, a imaculabilidade. Há homens na política respeitados em todo o país, e que ambos os partidos reputam incapazes da menos indelicadeza no que toca à honestidade pessoal. Não há um só, na atividade e na luta partidária porém, a quem se atribua o caráter preciso para repudiar e condenar os seus correligionários ainda nos piores recursos que tiverem empregado. O homem da mais pura reputação no Senado americano votará solido, sempre que se tratar do interesse geral do partido.

Não havia nada que me desse na América do Norte idéia da superioridade de suas instituições sobre as inglesas. A atmosfera moral em roda da política era seguramente muito mais viciada: a classe de homens a quem a política atraía, inferior, isto é, não era a melhor classe da sociedade, como na Inglaterra; pelo contrário, o que a sociedade tem de mais escrupuloso afasta-se naturalmente da política. A luta não se trava no terreno das idéias, mas no das reputações pessoais; discutem-se os indivíduos; combate-se, pode-se dizer, com raios Roentgen; escancaram-se as portas dos candidatos; expõe-se-lhes a casa toda como em um dia de leilão. Com semelhante regime, sujeitos às execuções sumárias da calúnia e aos linchamentos no alto das colunas dos jornais, é natural que evitem a política todos os que se sentem impróprios para o pugilato na praça pública, ou para figurar em um big show.

A grandeza do espetáculo que dão os Estados Unidos é tanto maior, eu sei bem, quanto mais baixo o nível do político de profissão. A degradação dos costumes públicos do país, coincidindo com o seu desenvolvimento e cultura; com sua acumulação de riqueza e de energia, com os seus recursos ilimitados, não quer dizer outra coisa senão que a nação americana não se importa que administrem mal os seus negócios, porque não tem tempo para tomar contas. É como uma fazenda de imensa safra, em que o proprietário ausente fechasse os olhos às dilapidações do administrador, levando-as à conta de lucros e perdas, inevitável em todo gênero de negócios. Os americanos deixam-se tratar pelos seus politicians do mesmo modo que os reis de França pelos seus fermiers-géneraux. Sejam causados pela ignorância e incapacidade, ou pela corrupção e venalidade, prejuízos há de sempre haver em toda administração; para impedi-los seria preciso montar um sistema de fiscalização ruinoso para o país, não só pelo seu custo, como porque seria preciso distrair para ele dos negócios e de outras profissòes o que o país tivesse de melhor.

Que pode acontecer de pior entregando-se o país à direção de partidos organizados como associações de seguro mútuo e que para isso recolhem uma percentagem de rendimento nacional? Uma agravação de impostos? Que importa ao americano pagar mais alguns cents no dólar e não se incomodar com a política? Envolverem os politicians a nação em uma guerra estrangeira? O perigo é muito problemático e a varonilidade do país não teme que o envolvam em uma guerra sem ele a querer e a achar legítima ou vantajosa. O americano sabe que há no seu país uma opinião pública, desde que cada americano tem uma opinião sua. É uma força latente, esquecida, em repouso, que não se levanta sem causa suficiente, e esta raro se produz; mas é uma força de uma energia incalculável, que atiraria pelos ares tudo o que lhe resistisse, partidos, legislaturas, Congresso, presidente.

É nesse sentido um grande espetáculo. O governo tem uma capacidade limitada de fazer mal; a parte de influência e de lucros que a nação abandona à classe política está circunscrita a uma escala móvel, isto é, proporcional ao rendimento público, o que permite à profissão vantagens crescentes e progressivas, mas, como quer que seja, está circunscrita; a nação deixa-se dividir em partidos, forma e manobra em campos eleitorais, e, apesar da massa das abstenções, acompanha os maus administradores dos seus interesses; mas todos sentem que de repente a opinião pode mudar, tornar-se unânime, adquirir a força de um impulso irresistível, destruir tudo. Nos Estados Unidos o governo não tem assim a importância que tem nos países onde ele governa; o governo na América é uma pura gestão de negócios, que se faz, mal ou bem, honesta ou desonestamente, com a tolerância e o conhecimento do grande capitalista que a delega. A corrupção política é, por isso, na América do Norte, já uma vez citei esta imagem a Boutmy, uma simples erupção na pele, enquanto em outros países ela é um mal profundo, visceral.

O fato é que nenhuma impressão guardei dos Estados Unidos de ordem equivalente à impressão inglesa, nem mesmo a de liberdade individual. É certo que o americano, comparado ao inglês, tem o sentimento da altivez individual mais forte, porque não há classe nem hierarquia a que ele se curve. O inglês tem reverência pela posição, pela classe, pelo nascimento; o americano não tem, e isto faz naturalmente que este se considere mais independente no seu modo de sentir do que o inglês. É incontestável que a democracia, introduzindo na educação a idéia da mais perfeita igualdade, levanta no homem o sentimento do orgulho próprio. A questão é saber, tomando o conjunto dos resultados, se as sociedades antigas onde as influências tradicionais não se apagaram de todo, como a inglesa, antes são por assim dizer artificialmente mantidas, não produzem com as limitações de classe uma dignidade pessoal moralmente superior a essa altivez da igualdade. É preciso não esquecer, tratando-se do norte-americano, que a igualdade humana para ele fica dentro dos limites da raça; já não falando do Chim ou do negro – que seria classificado, se vencesse o espírito americano, em uma ordem diferente da do homem – nunca ninguém convenceria o livre cidadão dos Estados Unidos, como ele se chama, de que o seu vizinho do México ou de Cuba, ou os emigrantes analfabetos e indigentes que ele repele dos seus portos são iguais. Para com estes o seu sentimento de altivez converte-se no mais fundo desdém que ente humano possa sentir por outro.

Não quisera eu negar a inspiração superior que há no sentimento de igualdade na América, como no antigo Israel e na antiga Grécia, onde ele foi um sopro de liberdade, de heroísmo, de independência, de que procederam os mais perfeitos tipos na arte e na religião. É evidente que nesse caminho é a Inglaterra que avança na direção dos Estados Unidos e não os Estados Unidos que retrocedem a encontrar a Inglaterra. Ninguém que conheça o tipo americano, desde o news-boy, que grita os jornais na rua, até o king, o rei, de algum monopólio ou especulação, estradas de ferro, minas de carvão ou de prata, mercado de algodão ou de farinha de trigo, desconhecerá que a característica, por excelência, do americano é a convicção de que melhor do que ele não existe ninguém no mundo. A matéria-prima dos discursos feitos às multidões, ou dos artigos de propaganda eleitoral, posso dizer que se contém toda nesta frase, que ouvi a um dos oradores de um monster-meeting: “Nos Estados Unidos (ele disse, como sempre, in America) cada homem é um rei, e cada mulher uma rainha”. Talvez fosse paradoxo dizer eu que o efeito de tal sentimento não pode ser senão gerar um ilimitado orgulho, e que do orgulho renascerá senão a desigualdade, porquanto a igualdade pode ficar entranhada, no sangue da raça, o servilismo. Não foi assim sempre com as mais livres de todas as raças e as mais soberbas de todas as democracias? O sentimento, entretanto, da igualdade perante a lei e perante a justiça, qualquer que possa ser o sentimento da igualdade de condição, é maior, é mais seguro na Inglaterra do que nos Estados Unidos. É mais provável que o groom do marquês de Salisbury obtenha justiça contra seu amo do que o caixeiro de um grande estabelecimento de Nova York contra o patrão, se este tiver qualquer influência na City-Hall.

Nos Estados Unidos não seria necessário anunciar hoje: “Precisa-se de uma aristocracia”. Essa aristocracia já existe, ou, pelo menos, se está formando rapidamente como tudo se forma ali: aristocracia de nascimento, aristocracia de fortuna, aristocracia de inteligência, aristocracia de beleza. O que distingue essa aristocracia sem títulos nem pergaminhos de nobreza, toda de convenção, mas, apesar disso, uma aristocracia, o que a distingue das outras aristocracias do mundo é não ser política, ser mesmo o resultado da abstenção política. Em segundo lugar; – e este é o ponto mais delicado da sociedade americana – a idéia que se insinuou entre as mulheres desse círculo estreitíssimo, de que o gentleman inglês é um tipo superior ao dos seus patrícios de maior cultura e distinção. É certo que as americanas que preferem casar com estrangeiro para pertencerem às rodas mais exclusivas da aristocracia européia são poucas em relação às que casam com compatriotas seus, mas a aristocracia é, em si mesma, uma minoria, e são as suas minorias que melhor lhes representam o espírito. Essa preferência pelo estrangeiro, por parte da mulher americana, quer me parecer um desastre sentível para o sentimento da igualdade dos americanos. Se o resultado desse sentimento, e é claro que o efeito não é de outra causa, é criar uma aristocracia em que o homem é considerado abaixo do nível da mulher, e menos próprio para inspirar-lhe amor e desposá-la do que o lorde ou o honorable inglês, pode-se dizer que, na mais alta esfera da sociedade, aquele sentimento faliu desastrosamente.

Nesse ponto, nenhuma alta sociedade sofre de um mal tão deprimente como é a consciência que o homem do mundo americano tem de que a sua jovem patrícia, bela e muitas vezes milionária, reputa o duque inglês ou o conde francês um ente superior a ele. Não é o título necessariamente o que constitui as vantagens do estrangeiro que telegrafa para Londres ou Paris o seu veni, vidi, vici, dias depois de Ter desembarcado; é em parte o prestígio, a sedução do mundo europeu e a idéia de que só excepcionalmente o americano chegaria a afinar-se com a sociedade inglesa, francesa ou romana, como ela, americana, se afina; mas é principalmente o tipo aristocrático de homem que exerce sobre ela essa fascinação desoladora para os seus compatriotas. Há famílias, e as haverá cada dia mais nos Estados Unidos, que são famílias patrícias, seja pela imensa riqueza, como os Astors e os Vanderbilts, pela magistratura consular que exerceram, como os Adams, os Hamiltons, os Jays, pelas gerações que representam de nomes conhecidos e de proeminência social, e é evidente que nessa aristocracia, que tende a ter o seu espírito de classe, a idéia de casamento com estrangeiro, ou de superioridade do estrangeiro, não pode ser senão a exceção. Mas em uma sociedade é preciso levar em conta o sentimento do grupo que atrai nela a maior soma de interesse público, não há dúvida que, no último degrau da sociedade americana, o prestígio do nobre inglês, dos bons títulos franceses, dos príncipes romanos, vence toda a competição nacional. Está aí uma terrível ocorrência, contra qual é impotente o gênio protecionista do país. Apenas, como compensação, poder-se-ia imaginar um drawback em favor dos americanos que casassem na alta sociedade ou finança européia. Uma aristocracia, onde as mulheres mais ambicionadas, as que têm a primazia da beleza, da fortuna, da sedução, julgam o estrangeiro, quando se trata de amor ou de união, mais ao seu nível do que o seu compatriota, sofre de um desequilíbrio de ideal entre os dois sexos. Não é senão justo apreciar as sociedades pela sua flor, pela sua élite, isto é, pelo que elas mais profundamente admiram em si mesmas e o mundo mais admiranelas.