Minha formação/XXIV
Em episódio da abolição, a minha ida a Roma em começo de 1888, contarei aqui, porque será um elo em minha vida, um toque insensível de despertar para partes longamente adormecidas de minha consciência.
Eu tinha sempre lastimado a neutralidade do clero perante a escravidão, o indiferentismo do seu contato com ela... Para o fim, porém, a voz dos bispos se fez ouvir em um momento de inspiração. Por ocasião do jubileu sacerdotal de Leão XIII, eles publicaram, quase todos, pastorais convidando os seus diocesanos a oferecer como dádiva ao santo padre cartas de liberdade. Esse apelo dos prelados oferecia uma oportunidade ao Partido Abolicionista de pedir ao soberano pontífice a sua intervenção em favor dos escravos, e eu resolvi aproveitá-la.
Eu acabara de ser eleito deputado pelo Recife, batendo o ministro do Império, e essa eleição soou como o dobre da resistência escravista. Nos poucos dias que restavam da sessão parlamentar de 1887, vim ao Rio de Janeiro tomar assento na Câmara, mas o objeto principal da minha vinda ao Rio era conseguir, e consegui, o pronunciamento moral do Exército contra a escravidão, a dissociação absoluta entre a força pública e as funções dos antigos capitães de mato. Para ocupar as férias parlamentares hesitei entre essa ida a Roma e uma viagem aos Estados Unidos, onde o acolhimento que eu teria por intermédio dos antigos abolicionistas podia dar grande repercussão à nossa causa em todo o continente americano. Preferindo ir a Roma, fui levado sobretudo pela idéia de que uma manifestação do santo padre tocaria o sentimento religioso da regente.
Era-me, decerto, permitido recorrer ao papa, como a qualquer outro oráculo moral que pudesse inspirar a princesa, falar-lhe ao ideal e ao dever. Durante dez anos não visei a outra coisa senão a capitar o interesse da dinastia, e a acordar o sentimento do país. A opinião pública do mundo parecia-me uma arma legítima de usar em uma questão que era da humanidade toda e não somente nossa. Para adquirir aquela arma fui a Lisboa, a Madri, a Paris, a Londres, a Milão, ia agora a Roma, e se a escravidão tivesse tardado ainda a desaparecer, teria ido a Washington, a Nova York, a Buenos Aires, a Santiago, a toda a parte onde uma simpatia nova por nossa causa pudesse aparecer, trazendo-lhe o prestígio da civilização. Se havia falta de patriotismo em procurar criar no exterior – tomado não como poder material, mas como refletor moral universal, que é para nós – uma opinião que nos chegasse depois espontaneamente com a grande voz da humanidade, não posso negar que fui um grande culpado... Teria sido o mesmo crime que o de W. L. Garrison desembarcando na Inglaterra, para comovê-la contra a escravidão nos Estados Unidos; o mesmo erro que o dos delegados dos diversos congressos internacionais antiesclavagistas. A consciência, a simpatia humana é, porém, uma força que nunca é proibido procurar chamar a si e pôr ao serviço de seu país ou da causa que se defende.
Chegando a Londres em dezembro, em janeiro parti para Roma com cartas do cardeal Manning, que a Anti-Slavery Society e mr. Lilly, da União Católica inglesa, me tinham obtido. Em Roma encontrei um apoio igualmente útil, o do nosso ministro, o sr. Souza Correa, antigo colega e amigo meu. Ele pôs-me logo em contato com o cardeal secretário do Estado, que me acolheu de modo supremamente benévolo. Roma estava repleta de peregrinos por causa do jubileu, no Vaticano o trabalho era enorme; apesar disso, consegui abrir caminho até o santo padre. Em 16 de janeiro eu apresentava o meu memorial ao cardeal Rampolla. Hoje eu o teria redigido de outro modo, mas hoje não tenho mais o ardor do propagandista... Aqui estão alguns trechos dessa súplica; por eles se verá que o meu apelo não era somente pelos escravos do Brasil, mas por toda a raça negra, pela África, onde pouco tempo depois devia surgir arrebatadamente a grande figura do cardeal Lavigerie:
“Sem exceção quase, os bispos brasileiros declararam em pastorais que o modo mais digno e mais nobre de celebrar o aniversário sacerdotal de Leão XIII era para os possuidores darem liberdade aos seus escravos e para os outros membros da comunhão empregarem em cartas de alforria os donativos que quisessem oferecer ao santo padre.
O apelo moralmente unânime dos nossos prelados não podia deixar de exercer as maior influência sobre o movimento abolicionista, que já arrastava consigo a opinião, e seguiu-se uma manifestação religiosa e nacional, que pela sua própria grandeza mostra que a abolição no Brasil não é mais uma divergência entre os partidos políticos... Pela manumissão de multidões de escravos em nome do santo padre, o seu jubileu ficará sendo a elevação à liberdade de centenas de novas famílias brasileiras.
De todos os dons postos aos pés de Leão XIII o tributo do Brasil sob a forma desses libertos cristãos, que tomam de longe parte em sua glorificação universal, é talvez a única oferta que terá feiro derramar ao santo padre lágrimas de reconhecimento.
Eis aí, Eminência Reverendíssima, a esplêndida ocasião que se oferece ao soberano pontífice de interceder, de intervir, de ordenar em favor dos escravos brasileiros. Dessas cartas de alforria depositadas de seu augusto trono, Leão XIII pode fazer a semente da emancipação universal. Uma palavra de Sua Santidade aos senhores católicos no interesse dos seus escravos, cristãos como eles, não ficaria encerrada nos vastos limites do Brasil, teria a circunferência mesma da religião, penetraria como uma mensagem divina por toda a parte onde a escravidão ainda existe no mundo.
O papa acaba de canonizar a Pedro Claver, o Apóstolo dos Negros. Na época adiantada da civilização em que vivemos, há infelizmente ainda escravidão bastante no mundo para que Leão XIII possa acrescentar a seus outros títulos o de Libertador dos Escravos.
Alguns dos seus ilustres predecessores procederam por vezes contra a escravidão; tendo esta por única origem o tráfico, está de fato compreendida nas bulas que o condenaram, mas os tempos em que esses imortais pontífices falaram não são os nossos, a humanidade então não havia feito esforços para apagar o seu crime de tantos séculos contra a África, cuja raça infeliz parece destinada a sofrer, sob formas diversas do mesmo preconceito, a fatalidade da sua cor. Um ato de Leão XIII, generoso, ardente, inspirado na espontaneidade de sua alma, contra a maldição que pesa sobre aquela raça, seria um benefício incalculável.
Nenhum pensamento político intervém na súplica que dirijo ao chefe do mundo católico em favor dos mais infelizes dos seus filhos. Não quero senão pôr o seu coração de pai em comunicação direta com o deles. Desse contato da caridade com o martírio não pode jorrar senão a onda de misericórdia que eu espero. Por ela o jubileu de Leão XIII será assinalado como uma data da redenção humana em toda a parte onde a raça negra se possa julgar a órfã de Deus”.
Em 10 de fevereiro seguinte, Sua Santidade concedia-me uma audiência particular. Dei conta dela no mesmo dia, escrevendo para o País... Dentre os papéis velhos que formam “as parcelas de minha vida”, a expressão é de uma carta do imperador – outro papel velho que é para mim uma relíquia – este há de ser sempre um dos mais preciosos; a emoção que ele guarda não poderia ser repetida. e é dessas que aumentam à medida que os anos se afastam... Por isso o reproduzo agora:
O Papa e a Escravidão
“Tive hoje a honra de ser recebido em audiência particular pelo papa, e como essa audiência me foi concedida com relação ao assunto político que me fez vir a Roma, não devo demorar a reconstrução da conversa que tive com Sua Santidade e que eu trouxe do Vaticano taquigrafada, fotografada na memória. Foi uma insigne benevolência de Sua Santidade conceder-me tal audiência em um tempo em que cada um de seus momentos está de antemão empenhado aos bispos, arcebispos, e católicos proeminentes, que lhe vêm trazer algum dom por ocasião de seu jubileu.
O papa está constantemente a receber numerosas deputações influentes de todas as partes do mundo e dirige-se sempre a elas com uma alocução animada. Esse acréscimo de trabalho às suas constantes ocupações de cada dia não deixa muito tempo de descanso ao santo padre, sobre quem os seus 78 anos, juntos à majestade da tiara, começam a pesar; no entanto é nessas horas de repouso que Sua Santidade recebe individualmente os homens notáveis do mundo católico e conversa com eles largamente sobre o assunto pelo qual cada um se interessa.
Eu, porém, era um desconhecido e não vinha trazer nada ao papa, vinha só pedir-lhe: nenhum serviço tinha prestado nunca à Igreja, e a questão que me ocupava exigia que Sua Santidade lesse antes uma série de documentos e fizesse alguma meditação sobre a grave resposta que me ia dar. Isto era um esforço, e, nas circunstâncias especiais do jubileu, a atenção a mim prestada pela mais alta de todas as individualidades humanas é um ato a que ligo ainda maior apreço e reconhecimento por saber que na minha humilde pessoa foi aos escravos do Brasil que Leão XIII quis acolher paternalmente e fazê-los chegar até ao seu augusto trono, como, simbolicamente, o mais elevado de todos os lugares de refúgio.
O papa recebe em audiência particular, sem testemunha alguma. Ninguém está na sala senão ele e a pessoa a quem a audiência é concedida. Em uma sala contígua está um secretário e um oficial da guarda, mas uma vez introduzido no pequeno salão, o visitante acha-se a portas fechadas em presença somente de Leão XIII. O papa, que lia um livro de versos latinos quando fui anunciado, mandou que me assentasse numa cadeira ao lado da sua e perguntou-me em que língua devia falar-me. Eu preferi o francês.
A impressão que senti todo o tempo da audiência, que não durou menos de três quartos de hora, não se parece com a sensação causada pela presença de um dos grandes soberanos do mundo. O trono brasileiro é uma exceção. Nunca no Brasil teve homem tão acessível como o imperador, nem casa tão aberta como S. Cristóvão. Mas os monarcas em geral são educados e crescem, porque a sua condição é superior à do resto dos homens, na crença de que são ‘melhores’ do que a humanidade. A todas as vantagens do papado como instituição monárquica, notavelmente a eletividade, é preciso acrescentar essa superioridade do papa sobre os outros soberanos, que estes nascem, vivem e morrem no trono, e que os papas só chegam à realeza nos últimos anos da vida, isto é, que vivem toda a vida como homens e no trono não fazem quase senão coroar a sua carreira. Esse caráter ‘humano’ da realeza pontifícia é a condição principal de seu prestígio, assim como a eletividade é a condição da sua duração ilimitada e o espírito religioso a da sua seleção moral. Eu diria mesmo que a sós com o papa a expressão é antes a do confessionário que a dos degraus do trono, se ao mesmo tempo não houvesse franqueza e na reserva de Sua Santidade alguma coisa que exclui desde o princípio a idéia de que ali esteja o confessor interessado em descobrir o fundo da alma do seu interlocutor. A impressão dominante é, entretanto, de confiança absoluta, como se, entre aquelas quatro paredes, tudo o que se pudesse dizer ao sumo pontífice tomasse caráter de uma conversa íntima com Deus, de quem estivesse ali o intérprete e o medianeiro.
As palavras que caíram dos lábios do santo padre gravaram-se-me na memória, e não creio que se apaguem mais, nem creio que eu deixe de ouvir a voz e o tom firme com que foram ditas. O papa começou notando que ele me havia demorado muito tempo em Roma, mas que eram numerosos os seus deveres nesse momento, ao que respondi que o meu tempo não podia ser melhor empregado do que esperar a palavra de Sua Santidade. – ‘Eu ia aos Estados Unidos, disse eu a Leão XIII, onde está a maior parte da raça negra da América; mas quando os nossos bispos começaram a falar com deliberação e de comum acordo a propósito do jubileu de Vossa Santidade e a pedir a emancipação dos escravos como o melhor e mais alto modo de o solenizar no Brasil, pensei que devia antes de tudo vir a Roma pedir a Vossa Santidade que completasse a obra daqueles prelados, condenando, em nome da Igreja, a escravidão. Conseguindo isto de Vossa Santidade, nós, abolicionistas, teríamos conseguido um ponto de apoio na consciência católica do país, que seria da maior vantagem para a realização completa da nossa esperança.’
Sua Santidade respondeu-me: – Ce que vous avez à coeur, l’Eglise aussi l’a à coeur. A escravidão está condenada pela Igreja e já devia há muito tempo ter acabado. O homem não pode ser escravo do homem. Todos são igualmente filhos de Deus, des enfants de Dieu. Senti-me vivamente tocado pela ação dos bispos, que aprovo completamente, por terem de acordo com os católicos do Brasil escolhido o meu jubileu sacerdotal para essa grande iniciativa... É preciso agora aproveitar a iniciativa dos bispos para apressar a emancipação. Vou falar nesse sentido. Se a encíclica aparecerá no mês que vem ou depois de Páscoa, não posso ainda dizer...
– O que nós quiséramos, observei, era que Vossa Santidade falasse de modo que a sua voz chegasse ao Brasil antes da abertura do Parlamento, que tem lugar em maio. A palavra de Vossa Santidade exerceria a maior influência no ânimo do governo e da pequena parte do país que não quer ainda acompanhar o movimento nacional. Nós esperamos que Vossa Santidade diga uma palavra que prenda a consciência de todos os verdadeiros católicos.
– Ce mot je le dirai, vous pouvez en être sûr – respondeu-me o papa – e, quando o papa tiver falado, todos os católicos terão que obedecer.
Estas últimas palavras o papa mais repetiu duas ou três vezes, sempre na forma impessoal; não ‘quando eu tiver falado’, mas sempre ‘quando o papa tiver falado’.
Acredito ter sido absolutamente leal para com os meus adversários na exposição que fiz em seguida à Sua Santidade da marcha da questão abolicionista no Brasil. O papa fez-me diversas perguntas, a cada uma das quais respondi com a completa lealdade que devia primeiro ao papa, e depois aos meus compatriotas. Descrevi o movimento abolicionista no Brasil, como tendo-se tornado proeminentemente um movimento da própria classe dos proprietários, e dei, como devia, e é justo, aos operários desinteressados da última hora a maior parte na solução definitiva do problema, que sem a sua generosidade seria insolúvel.
Referi-me à brilhante ação do sr. Prado e ao efeito moral do nobre pronunciamento do sr. Moreira de Barros como fatos do maior alcance. Expus como não havia na história do mundo exemplo de humanidade de uma grande classe igual à desistência feita pelos senhores brasileiros dos seus títulos de propriedade escrava. Disse que essa era a prova real de que escravidão no Brasil tinha sido sempre uma instituição estrangeira, alheia ao espírito nacional, o que é ainda confirmado (isto não disse ao papa), pelo fato de que os estrangeiros no Brasil foram, e são ainda hoje, de toda a comunhão, os que menos simpatia mostraram ao movimento libertador. Quanto à família imperial, repeti ao sumo pontífice que o que há feito em nossa lei a favor dos escravos, é devido à iniciativa e imposição do imperador, ainda que seja pouco. – ‘Uma dinastia, acrescentei, tem interesses materiais que dependem do apoio de todas as classes e não pode afrontar a má vontade de nenhuma, muito menos da mais poderosa de todas. O papado, porém, não depende de nenhuma classe, por isso coloca-se no ponto de vista da moral absoluta, que nenhuma dinastia pode tomar sem destruir-se.’ Falando do atual presidente do Conselho, disse a Sua Santidade que ele era um homem a quem a Igreja no Brasil devia muito por ter sido ele o principal autor da anistia, que pôs termo ao conflito de 1873, mas que, nessa questão, não tínhamos motivos para supor que ele quisesse ir além da lei atual, o que era positivamente contrário ao desejo unânime da nação. – ‘Eu, porém, acrescentei, não peço a Vossa Santidade um ato político ainda que as conseqüências políticas que a nação há, de sem dúvida, tirar do ato que imploro sejam incontestáveis. Felizmente, Vossa Santidade está em uma posição donde não vê os partidos, mas só os princípios. O que nós queremos é um mandamento moral, é a lição da Igreja sobre a liberdade do homem. Não há governo no mundo que possa ter a pretensão de que o papa, ao estabelecer um princípio de moral universal, pare para considerar se esse princípio está de acordo ou em conflito com os interesses políticos desse governo. Agora mesmo um sacerdote brasileiro foi preso por acoitar escravos. Nós, abolicionistas, por toda parte acoitamos escravos. Fazemos o que faziam os bispos da Média Idade com os servos. O sentimento da nação, isto posso afirmar a Vossa Santidade, é unânime, e a palavra do chefe da Igreja não encontraria ninguém para disputá-la.’
O papa então repetiu-me que a sua encíclica abundaria nos sentimentos do Evangelho, que a causa era tão sua como nossa, e que o governo mesmo veria que era de boa política reconhecer a liberdade a que todo o filho de Deus tem direito pelo seu próprio nascimento, e que o papa falaria ao mesmo tempo que da liberdade, da necessidade de educar religiosamente essa massa de infelizes, privados até hoje de instrução moral.
O cardeal Czacki me tinha falado igualmente no dever de dar educação moral aos libertos, e nesse sentimento parece que na América do Norte e nas Antilhas o catolicismo vai tentar um grande esforço. Simpatizando com o princípio da nossa propaganda abolicionista e pondo em relevo a responsabilidade que nós, abolicionistas, havíamos contraído, o cardeal Czacki pôs o dedo no que é a ferida da raça negra, ainda mais degradada talvez do que oprimida, e, do ponto de vista católico, me disse que não havia outro meio para fazer desses escravos de ontem homens moralizados, senão espalhar largamente entre eles a educação religiosa que não tiveram nunca. Como respondi ao cardeal, assim respondia ao papa. – ‘Antes de começar o movimento abolicionista em 1879, disse eu ao sumo pontífice, o partido liberal a que pertenço, em conseqüência da luta com os bispos em 1873, luta sobre a qual os conservadores haviam pronunciado a anistia, achava-se principalmente voltado para as medidas de secularização dos atos da vida civil, quase todos ainda confiados entre nós à Igreja. Com essas medidas desenvolveu-se mesmo um estado de guerra entre o liberalismo e a Igreja. Desde que começou o movimento abolicionista, entretanto, morreram todas as outras questões, e literalmente há nove anos não se tem tratado de outra coisa no país. Estabeleceu-se então uma verdadeira trégua de Deus entre homens de todos os modos de sentir e pensar a respeito das outras questões. O primeiro que na Câmara elevou a voz para pedir a abolição imediata, o deputado Jerônimo Sodré, é um católico proeminente. O co-proprietário do jornal abolicionista de Pernambuco, que sustenta a minha política, é o presidente de uma sociedade católica, o sr. Gomes de Mattos. Os bispos e os abolicionistas trabalham agora de comum acordo. Essa trégua tem durado até hoje sem perturbação, e espero que dure por muito tempo ainda. Abolida a escravidão, resta proteger o escravo livre. Nesse campo nada em nossas leis impede que a Igreja entre em concorrência para obter a clientela da raça que tiver ajudado a resgatar. Não seremos nós, abolicionistas, que havemos de impedir a aproximação entre os novos cidadãos e a única religião capaz de os conquistar para a civilização. As vistas do país voltar-se-ão para as outras questões do melhoramento da condição do povo, da criação da vida local, em que pode e deve continuar a trégua, ou melhor, a aliança. Se a Igreja conseguir recomendar-se ao reconhecimento da raça escrava, concorrendo para o seu resgate, os abolicionistas por certo não lhes hão de aconselhar a ingratidão.’
O Papa ouviu-me todo o tempo com a maior simpatia e justificou-me de ter pedido mais que o cardeal Manning julgara razoável que eu pedisse. Sua Eminência, com efeito, aconselhou-me a pedir ao papa a repromulgação das bulas de alguns dos seus antecessores e eu pedi um ato ‘pessoal’ de Leão XIII – ‘As circunstâncias mudam, disse-me o papa, os tempos não são os mesmos; quando essas bulas foram publicadas, a escravidão era forte no mundo, hoje ela está felizmente acabada.’
– ‘O ato de Vossa Santidade, disse-lhe eu, terminando, será uma página da história da civilização cristã que ilustrará o seu pontificado... Sua encíclica levantar-se-á tão alto aos olhos do mundo, dominando o movimento da abolição como a cúpula de S. Pedro sobre a Campanha Romana.’
“Aí está mais ou menos reproduzida a longa audiência particular que leão XIII me fez a excelsa honra de conceder-me, e que Sua Santidade terminou com uma bênção especial para a causa dos escravos. Eu antes havia enviado ao subsecretário de Estado, monsenhor Mocenni, a recente pastoral do bispo do Rio, sentindo não ter podido encontrar os números do País em que apareceram as dos outros prelados. Assim mesmo tive a fortuna de achar em retalho as pastorais dos bispos de Mariana, do Rio Grande do Sul e do arcebispo da Bahia, que todas foram enviadas ao cardeal Rampolla. A admirável carta do bispo de Diamantina, à qual especialmente me referi, quando falei ao papa, não a pude encontrar. Com a encíclica prometida e já anunciada por toda a Europa, esses pastorais formariam um belo livro de fraternidade humana.
A demora que tive em Roma impede-me de voltar pelos Estados Unidos, porque não teria mais tempo de preencher qualquer dos fins com que ia à grande República. Mas estou satisfeito, contente. A palavra do papa terá para todos os católicos maior influência do que poderia ter qualquer outra manifestação em favor dos escravos. Nenhuma consciência recusará ao chefe da religião o direito de pronunciar-se sobre um fato como a escravidão, que estabelece um vínculo entre o senhor e o escravo, equivalente a entrelaçar-lhes para sempre as almas e as responsabilidades. Na maneira de se exprimir de Leão XIII não vi a mínima vacilação, a mais leve preocupação de torcer o ensinamento moral para adaptá-lo às circunstâncias políticas. Vi tão-somente a consciência moral brilhando, como um farol, com uma luz indiferente aos naufrágios dos que não se guiarem por ela.
Roma, 10 de fevereiro de 1888.”
Como o cardeal Czacki tinha tido razão de dizer que eu ia levar ao papa um verdadeiro bombom!... Infelizmente, a diplomacia envolveu-me na questão, o Ministério conservador alarmou-se com a intenção manifestada pelo papa, e conseguiu demorar a encíclica... A curta demora foi bastante para ela só aparecer depois de abolida a escravidão no Brasil... Entre a queda de Cotegipe e a abolição, o espaço foi tão pequeno que a bela obra de Leão XIII só veio a ser publicada quando não havia mais escravos no Brasil. A bênção, porém, do santo padre à nossa causa, a palavra que ele ia proferir, essas desde o fim de fevereiro, ainda sob o gabinete Cotegipe, o país os conheceu pelas minhas revelações... A surpresa da emancipação total foi tão agradável a Leão XIII que, como post-scriptum à sua carta lapidária sobre a escravidão, ele mandou à princesa imperial a Rosa de Ouro.
Meu papel foi, como se viu, muito humilde. Simples portador para o cardeal Rampolla e monsenhor Mocenni das cartas de apresentação do cardeal Manning, eu não fiz, apresentado a Leão XIII as pastorais dos nossos bispos sobre o seu jubileu, senão oferecer-lhe um assunto a todos os respeitos digno dele... A imaginação do papa abrangeu logo toda a grandeza do serviço que ele podia prestar à humanidade, o tema incomparável proporcionado às suas letras... Se de alguma coisa me posso lisonjear é de ter ligado como uma aspiração comum à causa dos escravos no Brasil a causa da África... Poucos meses depois do pronunciamento que supliquei ao santo padre, chegará a Roma o cardeal Lavigerie e o papa o investirá na cruzada africana que foi a nobre coroação da sua vida... Em uma carta da Anti-Slavery Society mr. Charles Allen fez-me a honra de dizer que fui eu que preparei junto ao papa o caminho para mr. Lavigerie... Nos discursos do grande apóstolo da África, no que ele disse tantas vezes ex abundantia cordis, o que se vê é que, quando ele chegou a Roma, Leão XIII estava possuído, dominado, inflamado do fervor antiesclavagista... A parte que me coube em tudo isso foi apenas a de ser quem – na ocasião do seu jubileu sacerdotal e da canonização de S. Pedro Claver, ocasião tão favorável para o desabrochar dessa e de outras generosas iniciativas e aspirações de reinado – teve a fortuna de atrair o grande espírito de Leão XIII, disputado por tantas solicitações, para o problema que mais o podia fascinar.
Foi bem forte a impressão que eu trouxe de Roma... Nos fins de abril, não se sabendo ainda até onde iria a reforma anunciada pelo novo Gabinete João Alfredo, assisto à festa da libertação em massa de uma fazenda do Paraíba e a lembrança que me ocorre é a das maravilhas do Vaticano... Que emoções essas da abolição! Como tudo se fundia em uma mesma nota, misteriosa e íntima, como se tivéssemos em nós nesses momentoso coração dos escravos em vez do nosso próprio! É este o trecho em que descrevi aquela emoção da Bela Aliança...
“Há três meses tive a fortuna de assistir à missa do papa na capela Sixtina. Nesse tempo eu não esperava que a hora da abolição estivesse tão prestes a soar, e tinha ido pedir a Leão XIII, na desconfiança de que a Regência era um vice-reinado e o vice-reinado da escravidão, uma palavra que movesse o sentimento religioso da princesa... Como eu estava enganado e quem não estava, a começar pelo próprio presidente do Conselho! Durante aquela missa, em que tudo para mim era novo, e, quando o vulto do papa entre os cardeais prendia todas as atenções, por entre a música da Sixtina, ouvindo a qual sente-se que a voz humana é o único de todos os instrumentos que sobe além da terra, eu pelo menos não podia tirar os olhos desse teto, que é a maior página do belo escrita pelo homem... Que oportunidade única a de tal cerimônia e de tal acompanhamento para reler a Bíblia de Miguel Ângelo e decorar o seu poema da criação!... Pois bem, a missa da Bela Aliança renovou-me a emoção infinita da Sixtina... Havia nela outros tantos elementos de grandeza combinados...Não havia o sumo pontífice, nem o coro angélico, nem os frescos de Miguel Ângelo... Estava ali, porém, o representante do papa abençoado em nome dele a reconciliação das duas raças; havia lágrimas em todos os olhos, a ansiedade, igualmente apreensiva para todos, os que iam dar e os que iam receber a liberdade, e para nós a mais suave de todas as sensações possíveis: a de ver recuar as trevas da escravidão do rosto de uma raça, esse grande fiat lux, ver o barro ontem informe, o escravo, acordar homem, como o Adão de Miguel Ângelo, na claridade matinal da criação... O pensamento voltava quase quatro séculos atrás, à primeira missa dita no Brasil, quando ele tomou o nome de Terra de Santa Cruz... Quatro séculos para a cruz recuperar o seu verdadeiro sentido de símbolo da redenção e para a missa significar o sacrifício de Deus pelo homem!... Vendo diante deles aquela a quem iam dever a liberdade, e olhando para a Senhora da Piedade no nicho do altar, os escravos na confusão dos seus dois grandes reconhecimentos deviam ter sentido os rubis, como lágrimas de sangue, do resplendor da mãe de Deus, baixar um momento sobre a cabeça da sua redentora ajoelhada[1]...”
Ah! os tempos em que se escrevia assim! Em que o coração, e só o coração, era que fazia o ditado, e tão rápido que a pena não o podia acompanhar. Para mim teria sido uma diminuição sensível da emoção humana que a campanha abolicionista me causou, se eu não tivesse essa página da minha ida a Roma para reler, esse encontro conosco da simpatia e do fervor de Leão XIII. Por que tão tarde tive eu a idéia desse apelo, que devera talvez ter sido o primeiro? Quero crer que na abolição, tão súbita foi ela, tudo veio a tempo... A lembrança dessa visita a Roma seguida tão de perto do fim da escravidão e da queda da monarquia, que era o termo forçado da minha carreira política, não podia deixar de crescer no vazio da minha tarefa acabada e da impossibilidade de assumir outra equivalente... Uma nova vida vai datar daquelas impressões religiosas assim assimiladas no ardor de um combate que devia encerrar e resumir a minha vida militante... Uma nova camada de minha formação desenha-se insensivelmente desde esse meu momentâneo contato com Leão XIII – ou por outra a camada primitiva começa a descobrir-se depois de perdido por tão longos anos o veio de ouro da infância... Qualquer que seja a verdade teológica, acredito que Deus nos levará de algum modo em conta a utilidade prática de nossa existência, e enquanto o cativeiro existisse, estou convencido de que não eu poderia dar melhor emprego à minha do que combatendo-o. Essa vida exterior, eu sei bem, não pode substituir a vida interior, mesmo, quando o espírito de caridade, o amor humano, nos animasse sempre em nosso trabalho. A satisfação de realizar, por mais humilde que seja a esfera de cada um, uma parcela de bem para outrem, de ajudar a iluminar com um raio, quando, quando não fosse senão de esperança, vidas escuras e subterrâneas como eram as dos escravos, é uma alegria intensa que apaga por si só a lembrança das privações pessoais e preserva da inveja e da decepção. Essa alegria todos que tomaram parte no movimento abolicionista devem tê-la sentido por igual. Enquanto a luta contra a escravidão durasse, penso que a religião não sairia para mim do estado latente de ação humanitária... Muitas vezes mesmo, a religião não consegue desprender-se da tarefa ordinária da vida, e é somente quando essa tarefa acaba ou se interrompe que as perquisições interiores começam, que se quer penetrar o mistério, que se sente a necessidade de uma crença que explique a vida. Até lá basta o próprio papel que desempenhamos; o crítico não aparece sob o ator; a dúvida não distrai da ação exterior contínua. Enquanto se é um simples instrumento, por pequeno que seja o círculo traçado em torno de nós, a imaginação se encerra nele, e a vida interior não se insinua sequer à consciência... A ação é uma distração. E só acabada ela que em certa ordem de espíritos as afinidades superiores se pronunciam... Quero crer, para os que sucumbem nessa fase, que o benefício que eles possam fazer eliminem parte da impureza que carregam em sua inconsciência moral, ou religiosa – o que é o mesmo, e ainda pior... Não posso hoje pensar na minha ida a Roma em 1888 sem sentir que então germes esquecidos nos primeiros sulcos da meninice reviveram, para germinar mais tarde ao calor de outras influências... Não fui em vão a Roma, do ponto de vista do meu sentimento religioso...
Notas do autor
[editar]- ↑ A senhora a quem me referia era uma compatriota nossa, que casara em Paris com um jovem e elegante russo. Há dela um admirável retrato em tamanho natural, obra de Pistner. A suavidade e doçura de madama Haritoff, a tão popular d. Nicota, emprestavam-lhe uma beleza toda de expressão, com seus longos cabelos pretos, seus grandes olhos luminosos, sua tez de um moreno mate, e a graça de seu corpo, tinha para os estrangeiros um caráter especial, distintamente brasileiro.