Mistério do Natal/I
Era a hora silenciosa e triste do crepúsculo.
Abrumados de ouro os montes, em duros perfis, esmaltavam de negro o horizonte abrasado. Abriram-se as primeiras estrelas. Subiam da terra, como o fumo das aras, panos alvos de névoa.
Pelos caminhos esbarrondados, em áspero aclive, beirando gotas espontadas de cardos, urna ao ombro, as túnicas arrepanhadas à cinta, desfilavam donzelas conversando e rindo.
Juntas, em passo miúdo, trepidando nas pedras, com um cheiro de suarda e de silvas, passavam nas trilhas ovelhas em rebanho. Um rude e mazorro pastor seguia-as cabisbaixo.
Esbatiam-se as nuvens de ouro quando José e Maria apareceram no limiar da casa prontos para a longa jornada, por vales e montanhas, em direção à terra farta de Belém onde iam cumprir a lei de Augusto.
Fechada a porta ainda demoraram um instante sob a vinha, contidos pela saudade.
O homem, por fim, decidiu-se, tomou a frente, vagaroso, pensativo e logo, limpando os olhos que as lágrimas nublavam, a donzela surgiu.
Ele grisalho, alto, robusto, ainda que um tanto curvado pelo pendor constante em que vivia, sempre inclinado sobre o lenho do ofício, falquejando-o, acepilhando-o, dando-lhe forma e lustro. Ela, meã de altura, fina e frágil.
Suavemente morena, os olhos grandes e tristes eram dum límpido verde d’água, e como dois lagos puríssimos num areal, ao sol; e os cabelos escapando-se do cairel do manto, punham-lhe ma fronte uma frisa de ouro.
Mal se lhe adivinhava o colo abotoado.
Os pés, alvos e pequeninos, assentavam em sandálias e toda a sua riqueza consistia em um par de braceletes de marfim que lhe cingiam graciosamente os pulsos finos.
Trilhando a estrada que ia ter à fonte e seguia direita aos campos, paravam para falar às moças, companheiras e amigas de Maria, para corresponder à saudação dos homens, para atender às crianças que deixavam os seixos tomando-lhes o passo, pedindo que lhes trouxessem das terras de além conchas, como as de Ascalon, que conservam no bojo o soluço das ondas.
E Maria, comovida, chorava sobre o sorriso.
Os campos toldavam-se de bruma e as oliveiras de pálida folhagem faziam no encosto das colinas como estendais de névoa.
Ainda havia quem trabalhasse a leira na ânsia do fruto. Chiava um carro de lavoura, o guieiro falava aos bois animando-os no lance abrupto de uma rampa.
Chegando ao planalto estéril, que dominava os horizontes e onde o vento zunia, os viajantes fizeram uma parada olhando em redor o redente dos montes.
Lá ficava Nazaré no vale feliz, com o seu casario, em cubos brancos, como um pacífico rebanho adormecido.
Ao longe tudo era carregado e lúgubre.
A noite chegava primeiro às alturas.
Isolado, com a lua pairando acima do seu viso, o Tabor era como um peito de gigante onde houvesse espirrado aquela gota de leite.
Maria ignorava o mundo. Nunca houvera passado além da fronteira da terra natal. Alongando os olhos pela vastidão que a vista alcançava, montes, várzeas, esplanadas desertas tristes, sentia-se mesquinha e com medo.
Voltou-se, ainda uma vez, para olhar o tranqüilo recanto que sempre vivera em pobreza e virtude. Mas a noite baixara; raros lumes picavam a treva. Ouvia-se vago murmúrio, como escachôo d’águas, subindo do fundo obscuro onde jazia a cidade. Saiu-lhe do coração um suspiro magoado:
- Onde fica Belém? José levantou o braço e estendia o cajado na direção da terra de Davi, quando uma estrela fulgurou, iluminando radiosamente o céu profundo.
- Ali! Disse o patriarca, numa voz que tremia, compreendendo, maravilhado, que aquele astro surgira dentro da noite como uma resposta de Deus à moça predestinada.