Mistério do Natal/XIV

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À hora cálida, abafada, em que as folham dormem e as ribeiras murmuram de leve, vagarosas, remansando-se sob as quietas sombras, e toda asa encolhe-se entre os ramos mais densos, e todo réptil encova-se na terra mais úmida, deram os dois num campo de farta seara onde alumiavam foices e moças juntavam gavelas, cantando, enquanto os homens ceifavam assustando as cotovias que tinham os seus ninhos rentes no chão, na raiz do trigal.

Maria, com o manto sobre a cabeça, enlevada naquela messe de ouro e na alegria ruidosa do trabalho, ouvia as vozes que se cruzavam subindo dos trigos altos, onde os seareiros desapareciam, como se fosse o próprio campo que cantasse o louvor do sol.

Ia tão entretida que não viu José adiantar-se, direto a uma palhoça onde um velho jazia, sentado ante um monte de vergas, tecendo um alcofe e cantando.

Aligeirou os passos e alcançou o esposo justamente quando ele saudava o ancião.

- Dizei-me a quem pertence este campo tão rico e cheio de tanta alegria?

- A Obed, segundo deste nome, descendente de Booz, o semeador.

- Foi, então, nesta terra que a moabita achou agasalho junto do homem bom, que a amou?

- Sim, foi aqui. Esta é a leira de Efracta, a mais fértil entre as mais abundantes e generosas. Este campo foi o leito nupcial onde se gerou a raça robusta dos reis de Israel.

Aqui nasceu Davi, tronco forte, estirpe augusta de que há de sair a imarcessível flor anunciada, cujo perfume encherá as almas de inefável ventura. Este é o celeiro de Iahve. E vós vindes de onde?

- De Nazaré, na Galiléia.

- E ides?

- A Belém. Urge que lá cheguemos antes do pôr-do-sol.

- Tendes tempo. Sentai-vos um momento, é a hora da refeição. O que tenho dá para repartir convosco. A vossa companheira, esposa ou filha, vem fatigada. Que descanse um instante à sombra, gozando a sesta. Entrareis na cidade com a fresca da tarde.

Aceitaram os peregrinos o convite hospitaleiro: sentaram-se e comeram do pão molhado em mel e beberam pelo mesmo tarro o leite cheiroso.

Ficaram os dois velhos conversando e Maria, encostando-se aos feixes de trigo, cobriu o rosto com o manto e adormeceu.

As moças cantavam na eira levantando moedas de ouro e, sob o sol escaldante, no alto céu azul, as cotovias voavam e os seus gritos abrandavam-se na distância, esmoreciam perdidamente.