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Mister Slang e o Brasil/Capítulo 18

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XVIII


DO SUPPLICIO DA SENATORIA


Passei uma semana sem subir á Tijuca. O estado de sitio chegára ao fim e o meu tempo era pouco para a leitura das folhas. Com que gana se desforravam ellas do longo periodo de arrolhamento, pondo de novo na rua os velhos adjectivos embolorados pela Censura!

Muita graça achei na volupia com que a expressão "negro burro" passou a rebolar-se no papel impresso — expressão que mezes antes, cochichada que fosse, conduzia incontinente ás geladeiras.

Subi, afinal. Encontrei Mr. Slang "respigando pittoresco" nas folhas da manhã.

— Sua safra de recortes deve ter sido abundantissima, disse-lhe eu. Os jornaes andam agora de encher o olho.

Mr. Slang primeiro marcava a lapis azul os trechos a recortar. Depois mettia a tesoura, quando não encarregava dessa tarefa a boa Dolly.

— Nem por isso, respondeu-me elle. Tem vindo á tona muito menos do que eu esperava.

— Pelo amor de Deus, Mr. Slang! Acha pouco?

— Não é que ache pouco. Um millesimo disto punha abaixo uma situação na Inglaterra. Mas estou vendo que o grosso não transpirará.

— O grosso? repeti admirado. Haverá um grosso?

Mr. Slang sorriu com evidente piedade da minha "sancta simplicitas".

— Tenho um amigo no Banco do Brasil, disse elle, que conhece a conta corrente secreta desse estabelecimento com o governo. Mostrou-me apontamentos — e si não me assombrei é que tenho quarenta annos de vida no Brasil.

— Mas não acha, Mr. Slang, que devia o novo governo publicar isso?

— Não. O novo governo está empenhado em por fim á revolução e não é lançando lenha ás fogueiras que se extinguem fogueiras.

— Não entendo...

— Si conhecesse a tal conta corrente entenderia. Não ha homem de sangue vivo que ao conhecel-a não sinta impetos de ir incorporar-se aos revoltosos. Si o governo a publicasse, esse simples facto redundaria em tamanho augmento da columna Prestes que, babau! lá se ia a legalidade. O governo novo é prudente. Não procura apagar incendios com jactos de gazolina.

— Mas os crimes não devem ficar impunes. Diz o brocardo: fiat justitia pereat mundus.

— Ha uma idéa mais intelligente que a d'esse estupido e cruel brocardo e nessa idéa se assenta o moderno conceito de justiça. E' a substituição do pereat pelo floreat. Faça-se a justiça para que prospere o mundo. Si de um acto de justiça redundar mal maior, essa justiça é injusta.

— Quer dizer que Mr. Slang defende a encampação pelo governo novo das deshonestidades do velho...

— Nem defendo, nem vejo encampação. Acho apenas que é sabia a politica do ponto final e consequente "vita nuova". Havia aqui na chacara vizinha um monturo. Veio um jardineiro inepto e o revolveu. A consequencia foi adoecer esse homem e ficarmos, eu e a Dolly, com o ar empestado por dois dias. Um monturo, com ser revolvido, não deixa de ser monturo — e empesta. Além disso, dinheiro que vôa não volta mais.

— Essa sua theoria é commoda. Graças a ella desapparece do mundo a responsabilidade criminal.

— As minhas theorias decorrem das condições por assim dizer personalissimas do ambiente brasileiro. Está claro que na Inglaterra não poderei pensar deste modo.

— Dois pesos e duas medidas...

— Certamente. Na Inglaterra ha, perfeita em sua formação, uma coisa que mal se esboça aqui — consciencia moral. Um crime lá é um crime.

— E aqui?

— Não ha crime em terra de consciencia moral em germen. Note como no Brasil se divide a opinião. O mesmo facto, tido como crime horrendo por uns, é louvado por outros. Não ha crime no Brasil. Matar, desviar dinheiros publicos, bombardear cidades ou saquear são actos que ainda não constituem crime no Brasil. O crime brasileiro, por emquanto, é um só: dissentir do governo.

— Realmente! exclamei. E' esse o crime imperdoavel e o que recebe todos os castigos. Conheço um sujeito que roubou, matou um homem e violou tres meninas. Nada lhe aconteceu. Mas votou no Nilo e foi morrer de febres na Clevelandia...

— O seu exemplo justifica muito bem a minha these. A consciencia moral brasileira ainda está nos primordios da formação. Estado chaotico, periodo da pedra lascada, quando muito.

— Comprehendo, comprehendo... E' por isso que em São Paulo a simples constituição do Partido Democratico é vista como um crime.

— Pois sem duvida! E dos crimes imperdoaveis. O bugre inda vos lateja sob o paletó sacco, meu amigo. Ha a ficção republicana por cima, uma roupa-feita. Por baixo. Cunhambebe, Zumbi e Pina Manique.

— Vá que seja assim, Mr. Slang, mas em todos os paizes observo malversão de dinheiros publicos e abusos do poder. Nem a sua Inglaterra escapa.

— O homem que Machiavel e Hobbes definiram é o mesmo em toda a parte, na Groenlandia ou em Paris. Mas nos povos de consciencia já formada existe, para contrabater o crime, o castigo.

— Para os pequenos. Os grandes escapam sempre.

— Warren Hastings era grande e não escapou. Conhece-o?

— Já li o ensaio de Macaulay a seu respeito.

— Macaulay julga-o com muita serenidade. Primeiro governador das Indias. Hastings portou-se como um heróe na guerra contra os francezes. Subjugou os rajahs e consolidou a dominação britannica, annexando territorios e creando os alicerces que até hoje nos asseguram a posse desse opulento pedaço da crosta terrestre. Um conquistador, em summa, e ao molde dos que se tornam idolos nacionaes. Mas Hastings abusou do poder. Suppliciou indigenas, extorquiu dinheiro aos rajahs, impoz tributos iniquos e com estas brutalidades ergueu contra si a consciencia moral da Inglaterra. Macaulay descreve o terrivel processo a que o submetteram e que durou quasi um decennio, arruinando-o. Sheridan, Fox e Burke se celebrizaram pelas suas arengas no Parlamento contra o heroe nacional. Foi absolvido, mas ficou á margem. Nenhum governo teve o topete de dar a mão ao condemnado pela consciencia publica. Embora reconhecido como um dos maiores homens que ainda produziu a Inglaterra, o obreiro maximo da sua grandeza colonial, era um criminoso para a opinião e jámais foi perdoado. Viveu o resto da sua vida no retiro de Doylesford, a expensas da Companhia das Indias, pela qual muito fizera. E isto em 1700 e tantos. Quer dizer que nessa recuada época já estava crystallizada a consciencia moral da Inglaterra.

— E', mas... e nos outros paizes? O que houve na França contra Dreyfus...

— Lembre-se que Dreyfus foi rehabilitado.

— Na Italia...

— Não fale na Italia de hoje. Está revolta, com os dedos de uma possante manopla a lhe apertarem o gasnete. Mas na Italia constitucional existe o caso do ministro Nasi.

— O que subvencionava jornaes..

— Sim. E que foi pilhado mandando pagar 30.000 liras a um. O escandalo explodiu, Nasi foi processado e condemnado. Cumpriu pena e não mais se rehabilitou na opinião publica.

— Trinta mil liras! Dez contos de réis! Que ninharia... Dez contos aqui um ministro dá por uma ordem telephonica ao banco e não acontece coisa nenhuma. Diz bem. Mr. Slang. No Brasil não ha crime. Não ha penas, não ha punição. Um homem de estado pode fazer tudo, que coisa nenhuma lhe acontece...

— Acontece, sim, contraveio Mr. Slang.

— Olhei para elle de olhos arregalados. Estaria bôbo o meu inglez?

— Os Warren Hastings daqui são castigados com um castigo inedito...

Percebi a ironia do meu inglez e antecipei-a:

— Com a senatoria, não é?

Mr. Slang fez um muxoxo muito divertido e concluiu:

— Cada povo possue os seus instrumentos nacionaes de castigo. Havia ou ha o knut na Russia. Ha o castello de Monjuich em Hespanha. Na Turquia houve o empalamento. Si são tão pessoaes os povos no invento dos seus castigos, que muito é que o Brasil crie o seu?

Puz fim á conversa. Slang "bernardshawisava", desconversava...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.