Mister Slang e o Brasil/Capítulo 19

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XIX


DAS ELITES


Na tarde seguinte, ao esperar na Avenida o bonde que me levaria á Tijuca, avistei Mr. Slang parado defronte a uma vitrina. Era a primeira vez que nos encontravamos na cidade.

— Que novidade é essa? exclamei, conjuntamente com o shake hands.

— E' que parto amanhã para Hong-Kong e vim despedir-me da cidade, foi a resposta.

Assombrei-me. Aquelle homem partia para a China como nós partimos ali para a Vista Chineza, sem aviso prévio, sem atroar os ouvidos do mundo com o brasileirissimo grito de guerra: "Vou para a Europa, sabe?" Viajar para Mr. Slang era coisa tão comezinha como tomar café expresso...

— E qual o motivo, Mr. Slang, da sua fuga, si não é indiscreção?

— Cansaço do Brasil.

— Detesta assim o nosso paiz?

— Ao contrario, adoro-o e para o meu estudo sobre o parasitismo não creio que haja no mundo campo melhor...

— Sempre a cobaia...

— Mas como tudo cansa, costumo periodicamente descansar do Brasil. O anno passado descansei do Brasil na Suecia e cansei-me logo da Suecia. A ordem que lá reina é excessiva, meu caro. Mata o pittoresco. Ao cabo de tres semanas voltei, saudoso deste maravilhoso eden dos imprevistos.

— E por que se retira, então?

— Está-me parecendo, respondeu elle, que com o governo novo vae o Brasil normalizar-se. Volta o imperio da lei, do bom-senso e da justiça. Ora, isto destróe o pittoresco social que cá me trouxe.

Que alma satanica possuia aquelle homem! As nossas desgraças é que o retinham por cá. Achava-as pittorescas...

— Ordem e justiça, continuou Mr. Slang, só me interessam no Imperio Britannico. A America do Sul quero-a como sempre a tive: convulsa, facinorosa, isto é, pittoresca. E já que se pretende installar aqui a ordem, mudo-me. Ordem por ordem, tenho a ingleza, que é de pedra e cal e não momentaneo acaso politico.

— Mr. Slang esquece-se de que a revolução inda não acabou. O Prestes continúa a revolver os sertões.

— Só me seduz a desordem urbana, aqui no centro, bem visivel e observavel do meu Alto da Boa Vista.

— E não volta ao Brasil?

— Póde ser. Tenho muitas esperanças na reeleição, para o futuro quatriennio, do meu velho amigo Bernardes. Si tal se der, está claro que voltarei. Considero-o como um dos mais interessantes casos biologicos da humanidade contemporanea e por fórma nenhuma perderia um novo governo seu. Infelizmente vejo que se avoluma contra elle uma corrente de odios, com força talvez de impedir-lhe o retorno ao poder. O Brasil não comprehende ainda o singular valor dos homens "revolvedores".

— Está ahi uma especie que jámais vi classificada por nenhum Linneu da sociologia.

— Chamo assim aos homens que d'alto a baixo revolvem a sociedade. Pedro I foi um revolvedor — e note que lindo de pittoresco e imprevisto nos saiu o seu reinado! Já o filho, Pedro II, burocrata sabio e virtuoso, não revolveu coisa nenhuma. O Brasil lhe deve apenas meio seculo de semsaboria. Caligula foi um revolvedor. Napoleão, outro.

— Que mistura, santo Christo! Chego até a achar criminoso o seu ponto de vista puramente esthetico, Mr. Slang.

Notei que Mr. Slang não me ouviu. Estava enlevado num omnibus que passava a correr. Attrair-lhe-ia a attenção algum passageiro com a cabeça de fóra? Havia evidentemente um certo sadismo no ponto de vista esthetico de Mr. Slang...

Puzemo-nos a andar e, emquanto andavamos, desabafei. Eu tinha muitas coisas a dizer áquelle frio leitor de Bernard Shaw. Muito offendera elle, em nossas conversas, a minha aguda susceptibilidade de brasileiro patriota. Não podia, pois, raspar-se para a China sem ouvir-m'as, e boas.

— Mr. Slang, comecei, a sua injustiça no julgar-nos deixou-me com um peso n'alma. Não somos o povo que o amigo pensa. Dentro de nós ha uma alma que o estrangeiro jámais comprehenderá, e em materia de honestidade, juro-lhe, não ficamos a dever ao mais sardento britannico. Os nossos homens publicos são mais honestos do que os jornaes dizem. O saque ao thesouro é menor do que parece. Como exageramos, como proclamamos e damos vulto a accusações levianas, julgam-nos mal os de fóra, mas ha nisso um evidente erro de perspectiva, como vou provar.

E fui provando até á primeira esquina, onde nos detivemos, proximos de dois sujeitos que estavam por ali a conversar em voz baixa.

— "Fez muito bem, dizia um. Si você não tirasse, outro tirava. Dinheiro de governo é como nota perdida na rua. Si quem passa primeiro não péga, outro péga...

Mr. Slang, que não havia respondido á minha tirada patriotica, limitou-se a um olhar de malicia. Corei até á raiz dos cabellos e arrastei-o para adeante.

— Outra censura descabida que commummente nos lançam em rosto, prosegui, é a nossa falta de consciencia moral. Temol-a, porém, e já em muito adeantada crystalização. Acatamos os direitos alheios, respeitamos a personalidade humana, talvez tanto como na Inglaterra. Ha abusos, não nego, mas que acabam punidos. Não nos devemos deixar arrastar pela grita dos orgãos amarellos. São jornaes de opposição, systematicos no aleive e na calumnia. Mais de metade do que narram a respeito de violencias das autoridades não passa de puro exagero... e fui por ahi além até á segunda esquina, onde paramos pela segunda vez.

O arteiro acaso quiz que tambem ali estacionassem tres secretas, em regalada troca de impressões.

— "Elle protestou que era innocente. dizia um, e allegou que não tinhamos prova. O doutor delegado mandou passar-lhe a borracha e trancal-o nú na geladeira. Um advo gadinho ahi qualquer requereu "habeas-corpus" e o juiz pediu informação. O doutor delegado piscou o olho e officiou que não sabia onde estava o réo. Depois eu..."

Segundo olhar malicioso de Mr. Slang e segunda onda de sangue no meu rosto. Arrastei novamente o meu britannico para longe daquelles miseraveis, e pelo caminho lhe fui dizendo:

— A ralé inda não possue formação moral. Muito misturada e sem cultura. Mas num povo valem as elites e quanto a estas não ha negar que as temos já bem apuradas. Duvido que na orgulhosa Britannia haja uma nata mais bem formada que a nossa, mais ardente de patriotismo e rica de abnegação.

E fui por ahi á fóra até á terceira esquina, onde pela terceira vez paramos. Mr. Slang ouvia-me sem nada dizer. Percebi que desta vez o convencera ou pelo menos abalara algum juizo temerario que a respeito das nossas elites viçasse em sua consciencia. Mas de subito vi caminhando em nossa direcção um grupo de tres senadores, um dos quaes gordo como sapo-untanha. Senti um calefrio percorrer-me o corpo e, antes que a palestra dos tres expoentes da nossa nata politica chegasse ao alcance da apurada audição de Mr. Slang, agarrei-o pelo braço e metti-o num automovel.

— Vá para a China, Mr. Slang, vá deleitar-se com a desordem que está infernizando o celeste imperio. Mas vá convencido de que a nossa elite salva-se.

Mr. Slang não sorriu. Apertou-me a mão de um modo effusivo e disse apenas:

— Não se afflija, meu amigo. Eu creio na existencia de uma elite moral no Brasil. Apenas admitto que está ella arredada da sua funcção organica. Está á margem, á espera de que a chamem. Uma reserva, por emquanto — mas uma bella reserva, creia.

Respirei e tive impetos de beijar Mr. Slang.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.