Mister Slang e o Brasil/Capítulo 20
XX
DOS TRINTA HOMENS
Fui ao bota-fóra de Mr. Slang. Penetrámos juntos no navio e ficamos longo tempo debruçados na amurada, assistindo ao movimento de embarque.
— Está vendo aquelle homem baixote e gordo, vestido de casemira cinza? perguntou-me elle em certo momento.
— O que está proximo ao guindaste?
— Sim. Conhece-o?
— Não, a não ser de vista.
— Pois é um dos homens-força deste paiz. Por falar em força: quantos homens calcula você que possue o Brasil?
A pergunta pareceu-me ingenua. Não obstante, respondi:
— Metade da população total do paiz. uns quinze milhões, sem duvida.
Mr. Slang philosophou:
— As estatisticas erram psychologicamente. Contam como homens apparencias de homem, burocratas da biologia. No Brasil, pelos meus calculos, haverá uns trinta homens.
Ri-me. Vinha paradoxo pela certa.
— Trinta só, Mr. Slang?
— E acha pouco? No mundo inteiro não haverá mais de dois mil homens, talvez nem mil. Por homem entendo unidade de força social constructora, elemento propulsivo, engenheiro do dia de amanhã. Animal muito raro, pois não. Apezar disso, ou muito me engano ou esse homem gorducho é um dos trinta do Brasil.
Cravei os olhos no ser prodigioso, que era unidade de tão restricto grupo.
— Chama-se Belisario Penna, continuou Mr. Slang, e é o engenheiro que tomou á sua conta a construcção da saude do Brasil. Um perfeito apostolo. Tem feito tamanho bem á sua terra e o fará ainda tanto que escreva o que vou dizer: acabará na Clevelandia.
— Hom'essa! Que premio horrivel foi Mr. Slang descobrir para um homem de tal benemerencia!...
— Sei da vida, meu amigo. Os apostolos, os constructores do amanhã, acabam sempre em Clevelandias. Isto desde Jesus.
— Quer dizer que nos nega o mais elementar sentimento de justiça...
— Não nego coisa nenhuma. Mas acontece que os homens deste typo se queimam nas proprias chammas. São sarças perpetuamente incendidas e portanto impoliticas. Falta-lhes o senso pragmatico do instante que vivem. Olham demais para o futuro. Enxergam muito longe e tropeçam. O commodismo do presente, incommodado, sempre perseguiu os "visionarios".
— No entanto, elles vencem...
— Vencem, ou, antes, fazem que vença a idéa que os apaixona. Mas pagam a victoria com a vida. E' de todos os tempos e de todos os povos.
— Mas que fez esse Belisario Penna até hoje?
— Revelou ao paiz o seu estado de doença. Demonstrou que ha no Brasil 70 % de criaturas bichadas pela verminose. Provou que em trinta milhões de criaturas ha mais de vinte milhões de inutilizados, sombras de gente, cadaveres vivos, méro pasto de bichos gordos e satisfeitos.
— Que horror! exclamei. Esses numeros me abatem de tal fórma o animo que sinto impetos de um mergulho mortal no oceano.
— Não faça isso, respondeu com bonhomia Mr. Slang. Além de perturbar a doçura desta manhã tão boa, iria espantar aquellas pobres sardinhas que ali estão em innocentes cardumes.
A agua do porto, batida de sol, deixava ver centenas de peixinhos prateados, em "dolce" e descuidosa natação. Teria Mr. Slang alma de S. Francisco de Assis e no meu suicidio só veria realmente o susto da população aquatica?...
Transferi meu trepasse para melhor momento e perguntei-lhe:
— E os outros vinte e nove homens, dos trinta que possuimos? Quem são elles?
Mr. Slang vacillou.
— A resposta não é facil e tenho receio de que minhas previsões não obtenham o sello da confirmação. Todavia, parece-me provavel que o capitão Prestes possa ser enumerado como um delles.
— Um revoltoso! exclamei com repugnado accento legalista. Um matador de gente...
Mr. Slang redarguiu com socratica serenidade:
— Esta divisão entre revoltoso e legalista é das mais precarias e muito me espanta vel-a em sua boca — ou na de qualquer outro brasileiro. Esta vossa linda cidade está cheia de estatuas a revoltosos, erigidas pelo mais assanhado legalismo. No palacio da Camara vejo a de Tiradentes, um revoltoso; a de Deodoro, outro revoltoso; a de Benjamin, outro revoltoso. Na Avenida vejo a estatua de Floriano, outro revoltoso. Vejo ainda a estatua de Pedro I, outro revoltoso contra a legalidade da época. No largo de S. Francisco temos a de José Bonifaeio, ainda um revoltoso. Aquella ponte que liga o continente á ilha da Cobras recebeu o nome de Alexandrino de Alencar, outro revoltoso. Quando venho da Tijuca passo pela rua Frei Caneca, outro revoltoso. Entre os feriados nacionaes vejo o 21 de abril, homenagem aos revoltosos de Minas; vejo o 24 de fevereiro, commemorativo da legalização de uma revolta vencedora; vejo o 15 de novembro, commemorativo de uma revolta militar victoriosa; vejo o 7 de setembro, commemorativo de outra revolta victoriosa. E vejo ainda o 14 de julho. Não contente de homenagear as suas revoltas caseiras, o vosso paiz exalta as de fóra e dá feriado no dia em que a plebe de Paris, revoltada, destruiu a Clevelandia de Luiz 16. Esta singular glorificação da revolta por meio do bronze, da pedra, da placa de rua e da vadiagem obrigatoria, parece-me contraindicar esse focinho mégalista que o meu amigo acaba de fazer, ao ouvir o nome do capitão Prestes.
Era irrespondivel aquillo. Mr. Slang. até no momento de partir, arrolhava-me á força de logica. Mas resisti, queimando os ultimos cartuchos da minha pobre dialectica
— Tudo depende da causa da revolta. Si é nobre, está claro que se justifica.
Mas o philosopho saiu-me á frente com a rolha final:
— Apenas a victoria justifica, meu caro. Entre Isidoro e Deodoro só ha uma differença: um venceu e o outro não. Fóra dahi vejo unicamente "tapeação", como dizem vocês com muita graça.
O navio apitou. Ia zarpar. Abracei Mr. Slang, deveras commovido e já saudoso da nossa amavel convivencia. Muito lucrara meu cerebro com a sua placida ideologia, tão isenta da paixão transviadora.
— Nunca mais, então, Mr. Slang?
— Quem sabe? respondeu elle. O uso do cachimbo deixa a boca torta. Tenho quasi meio seculo de residencia no Brasil, com fugas para o estrangeiro que não sommarão mais de seis annos continuos. Vou ver a China e talvez Nicaragua. A China está se desopilando de um modo muito pittoresco.
— Desopilando? repeti sem comprehender.
— A opilação da China não é como a dos brasileiros ruraes. Opilou-se, não de ancylostomos, mas de europeus. Infiltraram-se-lhe no corpo, como sangue-sugas, e tanto lhe roeram o duodeno que ella está hoje em regimen de xenicidas. A revolução chineza não passa de movimentos convulsos para deitar fóra os europeus aferrados á mucosa amarella.
— Inglezes, sobretudo!... exclamei.
— Sim, inglezes, americanos, allemães. O parasitismo, já disse, é a lei da humanidade, e a revolta constitue o thymol competente. Vou observar "de visu" como a China applica o seu thymol contra os europeus.
A campainha de bordo estrillou. Abracei Mr. Slang pela terceira vez.
— Adeus, caro amigo, disse-me elle. Fique a sondar os acontecimentos. Si por acaso verificar que o nosso homem inda póde subir ao Cattete, escreva-me, que precipitarei a minha volta. Adeus!...
Desci. A escada foi recolhida e o bello paquete moveu-se lentamente.
Fiquei no cáes, de lenço na mão e lagrima no olho, a acenar para o meu inglez da Tijuca até que o barco se sumisse ao longe.
Gaivotas adejavam no azul, com repentinas descaidas para fisgadelas do peixe incauto.
Junto ao muramento do cáes, a agua, translucida de sol, deixava entrever cardumes das imperturbadas sardinhas de Mr. Slang.
Tomei um bonde e remergulhei-me na cidade dos monumentos a revoltosos, calculando de mim para mim onde iria erguer-se mais tarde o bronze do marechal Prestes...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.