Mister Slang e o Brasil/Nota final

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NOTA FINAL

Os meus debates com Mr. Slang não se cifraram aos themas desenvolvidos nestes vinte capitulos. Dariam cem, talvez cento e vinte, si os fosse a todos fixar. Mas aonde iriamos?

Sobre exercito e marinha, por exemplo, nosso debate se prolongou por duas semanas, e não resisto á tentação de expor mais alguma coisa do que lhe ouvi.

Lembro-me de uma visita que fiz ao couraçado "S. Paulo" a convite do commandante Frederico Villar, em companhia do Fernão Dias carioca, esse admiravel Porto d'Ave, e mais um grupo de néo-bandeirantes do Brasil. Voltei de lá cheio de enthusiasmo ante o maravilhoso estado de conservação do velho dreadnought e á noite subi á Tijuca para despejal-o sobre o scepticismo do meu inglez implacavel.

Encontrei Mr. Slang recortando um aerogramma do tenente aviador Netto des Reis, piloto Insigne e fervoroso propulsor la aviação entre nós.

— Mr. Slang, fui logo dizendo de cara, acabo de visitar o "S. Paulo" e venho cheio de argumentos contra o que o amigo disse da nossa marinha.

O fleugmatico britannico continuou a manobrar a tesoura e, sem ergner os olhos do serviço, apenas disse:

— Vejamol-os.

Contei-lhe o que vira. O men rapido encontro com o almirante Souza e Silva, um valor technico, sereno e frio, dos que demonstram a superioridade ao menor gesto. A admiração que me causara a figura singela do capitão Amphiloquio dos Reis, intelligentissimo e senhor do seu commando como poucos. A ordem perfeita, o asseio meticuloso, o respeito a um velho e sabio regulamento, que não soffre na sua entrozagem a minima alteração a não ser que venha indicada pelo evoluir natural das cousas e comprovada pela experiencia no sentido de um maior rendimento util. Falei dez minutos com um enthusiasmo muito irmão do com que o capitão Villar, esse dynamo de patriotismo, sabe influir nos que o ourem. E ao cabo, quando julguel que Mr. Slang ia voltar contra mim o destroyer da sua contradicta, eis que com assombro o ouço dizer:

— Sei disso e reconheço que não ha nenhuma exagero em suas palavras. Dou-me com o almirante Souza e Sliva e faço-lhe a justiça de o ter como digno de occupar posto equivalente na marinha britannica. Dou-me tambem com o commandante Amphiloquio e duvido que algum capitão inglez traga o seu navio nas condições do "S. Paulo" e gose de tanto respeito e amor da guarnição. Tambem conheço o commandante Villar, cuja notabilissima obra sobre a pesca e educação dos pescadores me parece das mais sérias que ainda se fizeram neste paiz. Alem disso, admiro na marinha o espirito de dedicação e o nobre culto ao dever que a distingue. No Club Naval vejo em todos os andares o retrato de Saldanha da Gama, o almirante perfeito, cuja memoria a marinha vem cultuando com uma ternura enternecedora, e nos navios noto o retrato de Dias, o heróe humilde que é uma lição para todos os jécas da maruja.

— Então, como nega efficiencia á nossa marinha?

Piano, piano... Acho apenas que ella não possue o essencial a uma perfeita marinha. Não possue um apparelhamento sempre ao nivel dos progressos rapidos que faz a arte naval — culpa que não lhe cabe, todavia, e sim a uns tantos governos ineptos e descuriosos que o paiz tem tido. Governos que brécam a marinha, lhe entorpecem o ardor, procuram burocratizal-a. Que vale ser bom atirador, si a arma é pica-pau?

— Os governos nunca teem dinheiro e sem muito e muito dinheiro não pode um paiz conservar sua marinha ao nivel dos progressos incessantes que o navalismo faz. A culpa não cabe á marinha.

— Perfeitamente. E por isso condemno a conservação onerosa do apparelhamento existente e o incluo no caso geral de parasitismo. Por melhor que a marinha conserve os actuaes navios, de que vale isso, si estão todos atrazados de um quarto de hora? Na guerra vence quem chega primeiro, quem atira primeiro, coisas que so conseguem os que andam em dia com a evolução das armas.

Canhão que só alcança cinco milhas, por mais bem tratado que seja e melhor a pontaria dos seus atiradores, vale tanto como mm pedaço de pau — si defronta um outro que alcance dez milhas. Ora, parece-me tolice conservar machinas atrazadas, de inefficiencia evidente e reconhecida por todos os bons cerebros de que a marinha dispõe.

— Mas como proceder, si não temos dinheiro? como substituir nossos velhos couraçados, si um dreadnought custa hoje 400.000 contos e vivemos nesta miquia eterna que Mr. Slang sabe?

— Exactamente por isso preconiso o avião, que é a arma do pobre. Couraçado é hoje arma de poro rico ou de povo que tem metallurgia e pode construil-o em casa. Os dez milhões de libras que a Inglaterra gasta num couraçado ficam-lhe todos em casa. O dinheiro sahe do povo, passa pelas mãos do governo e volta ao povo. Não ha sangria. Mas aqui? Como nunca ha dinheiro, fazem-se navios com dinheiro tomado de emprestimo e o custo delles se escoa inteiro em troca de ferro que enferruja, atraza-se e perde todo o valor como arma muito antes que seja amortizada a quarta parte do emprestimo respectivo. Ora, isto cheira-me a absurdo, não acha?

— Como fazer, então? Permanecermos inermes?

— Não. Apenas pensar em armas que estejam ao alcance do paiz, deixando as armas dos paises ricos para os ricos. Alem disso, o couraçado já teve a sua época. Desde que appareceu o submarino começou a sua decadencia e hoje, depois do avião, está irremediavelmente morto. O elephante é uma fragil coisa, si o ataca uma nuvem de moscardos bombardeadores. A éra dos grandes navios passou, e conserval-os, com desconhecimento disso e desprezo pela arma nova que os vem substituir, é preparar momentos tristes para o futuro.

— Mas a Argentina, unico inimigo provavel com que temos de contar, tambem possue couraçados.

— Sim, mas sempre em dia, sem o tal atrazo que caracterisa os seus equivalentes no Brasil. Apesar disso a Argentina, mais previdente, já creou a sua nuvem do moscardos. Possue numeroso corpo de pilotos e numerosos aviões. Trezentos pilotos e outros tantos aviões terá ella.

— E nós?

— Uns quarenta pilotos, dos quaes nem um só trenado em guerra. Quanto a aviões, em estado de voar, haverá dois ou tres. O resto, em desmantelo, enferruja-se nos hangares e só serve para onerar o orçamento e fazer numero.

— E' tragico isso que me está dizendo, Mr. Slang.

— Por enquanto, apenas curioso, respondeu elle; mas não nego que poderá tornar-se tragico um dia...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.