Mister Slang e o Brasil/Capítulo 3

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II


DE OUTRAS OPINIÕES DO MANOEL


Tinhamos já enrolado dois carreteis, o financeiro e o economico. Faltava, apenas, enrolar a linha do carretel monetario. O Manoel, de boca aberta, aguardava as novas perguntas de Mr. Slang, incerto ainda si seria aquillo sério ou brincadeira. Eu duvidava que desta vez lhe saissem respostas claras, porque o problema da moeda sempre me pareceu dos que augmentam, no mundo, consumo da aspirina.

Mr. Slang interpellou-o:

— Diga-me, Manoel: que é que mediu o comprimento daquelle rôlo de corda que você me trouxe hontem?

— O metro, hom'essa! Pois não sabe?

— E que é que mediu o peso destes biscoutos de agora?

— O kilo. Vossa senhoria está a brincar?

— E que é que mediu o valor, isto é, o preço da corda e dos biscoutos?

— O dinheiro de vossa senhoria, está claro.

— Muito bem! approvou Mr. Slang, tirando uma baforada. Diga-me, agora: si o metro que vocês usam lá encolhesse um palmo cada dia de chuva, ou espichasse um palmo cada dia de sol, que succederia?

— Uma desordem dos diabos. Si comprassemos corda num dia de sol e a vendessemos em tempo de chuva, perderiamos um palmo em cada metro — ou vice-versa.

— E os biscoutos? Si o peso de kilo que vocês usam ora pesasse 1.200 grammas, ora 800?

— Outra desordem dos diabos. O armazem levava a bréca com tal metro e tal peso. Como negociar assim? Virava tudo uma roleta e era preferivel fechar a casa e ir jogar no bicho.

— Muito bem. E si o dinheiro, na gaveta, soffresse o mesmo mal do encolhe e do espicha? Si um conto de réis ora valesse 500$, ora 1:200$000?

— Isso, então, nem é bom falar! Fallencia, na certa. Temos uma duplicata a vencer no dia tanto e apartamos o cobre; si no dia do resgate esse cobre diminuir, ou teremos de tomar emprestada a differença ou fechar a porta. Si o cobre augmentar, ganhamos, mas sem saber como. nem porque, qual no jogo. O negocio, com dinheiro dessa ordem, não vae lá de pernas...

— Perfeitamente. De modo que, para haver negocio, é preciso que o metro, o kilo e a moeda tenham valor constante...

— E quem não sabe disso, meu caro senhor? Vossa senhoria está a chover no molhado.

— Pódes ir, Manoel, disse-lhe Mr. Slang; as perguntas de hoje ficam por aqui.

E, para mim, logo que o moço virou as costas:

— Vê? Todo o problema monetario está nas palavras do Manoel, simples, como agua, luminoso como o sol. Si botam este Manoel no governo, que maravilha!

Nesse momento entrou o criado com o taboleiro do xadrez.

Emquanto iamos arrumando as pedras, pude ainda objectar:

— De facto, em essencia as coisas são muito simples; mas, na applicação...

— Na applicação tudo tambem é simples, quando se respeita a essencia das coisas. A medida do valor dos objectos chama-se ouro, como a medida da extensão é o metro e a medida do peso é o kilo.

— Então é moeda synonimo de ouro? Novidade!...

— Sim. O consenso unanime e immemorial dos povos adoptou o ouro como medida de valor, isto é, como moeda.

— Mas, si as ha de cobre, prata, nickel, papel...

— Moedas por procuração do ouro. Eu posso gerir meus negocios por mim ou por intermedio de procuradores. Serei o ouro; elles serão o cobre, a prata, o nickel, o papel. Valem, não por si, mas como representantes meus. No dia em que eu não endossar os actos desses procuradores, nada mais valerão elles. O papel, por exemplo. Existe e só vale quando representa um deposito de ouro, isto é, quando procurador do ouro.

— Mas o papel-moeda?

— Papel-moeda não é moeda-papel, como procurador sem procuração não é procurador. Papel-moeda quer dizer uma ladroeira que certos governos inventaram pelo simples facto de não haver cadeia para os governos. E' o "paco" dos vigaristas.

— Mas, desde que tem força liberatoria é moeda...

— ... falsa. Que é uma nota do Thesouro? Um vale que o Thesouro emitte, apenas. Ora, esse vale realmente valerá emquanto o emissor fôr honesto e cumprir a sua palavra, resgatando-o pelo valor nelle estampado sempre que lh'o apresentarem. Do contrario, é pirataria.

— De modo que o nosso regimen é de pirataria...

— Da pura, meu caro! Da legitima! O governo emitte um vale de 100.000 réis... Um parenthesis. Que quer dizer "réis"?

Engasguei. Sei, ou creio saber o que quer dizer "réis", mas engasguei.

Mr. Slang esclareceu-me:

Réis é o nome, em portuguez, do ouro-moeda; esse mesmo ouro-moeda, nos Estados Unidos, se chama dollar; na Inglaterra, libra; na Allemanha, marco, na França franco; na Italia, lira. Logo, 100.000 réis querem dizer uma certa quantidade de ouro-moeda, e uma nota de 100.000 réis quer dizer um vale, um titulo ao portador, sem prazo de resgate, na importancia de 100.000 réis de ouro. E como ninguem desconfia do governo, esse vale circula como si fosse ouro. Quem quizer trocal-o pelo metal correspondente é só ir ao Thesouro e apresental-o. Mas desde que o governo se acanalha e se recusa a pagar os vales emittidos, elles passam á categoria de letras que o acceitante se recusa a pagar. Si o facto se désse com um particular, o remedio seria simples: execução e penhora. Mas como o caloteiro é grosso, o portador do vale não tem outro remedio sinão procurar desconto na praça. E surge o cambio.

— Estou comprehendendo, Mr. Slang. O cambio, o cambista, o homem que desconta os vales do governo impontual só apparece quando o emissor do vale foge ao seu pagamento...

— Isso mesmo. Mas esse particular, que desconta os vales do governo, está claro que o faz para ganhar dinheiro, e nunca os paga pelo valor nominal. Paga o que no momento lhe convém pagar, 10, 30, 50 ou 60 °|° do valor nominal, conforme a taxa de cambio, isto é, conforme todos quantos fazem esse negocio de desconto acham que nesse momento devem pagar.

— Quer dizer que cambio, isto é, desconto de vales do governo por particulares, só existe quando o governo não paga fielmente os vales que emitte.

— Clarissimo! Desde que o emissor dos vales cumpra o seu dever, a sua palavra, a sua promessa, extingue-se a classe dos descontadores, dos cambistas, dos que vivem á sombra e como productos logicos da deshonestidade dos governos.

— Estou entendendo. E estou tambem comprehendendo as razões do clamor contra a estabilidade...

— Não é preciso ser muito esperto. Ha mil interessados na instabilidade, sobretudo entre os banqueiros, ou cambistas. Na estabilidade só é interessada a nação. Com a estabilidade o governo reconhece que o regimen do calote não pode continuar, e se propõe a retomar o pagamento dos vales emittidos, isto é, das notas do Thesouro em circulação. Reconhece que não póde pagal-as pelos valor nominal e propõe uma concordata. Em vez de continuar não pagando coisa nenhuma e deixando que os cambistas roubem o paiz com a sua jogatina de desconto, propõe, honestamente, uma concordata de 40 °|°. Quem tiver um vale do Thesouro poderá trocal-o por metal, recebendo, não tudo, mas 40 °|° do valor impresso nelle.

— Comprehendo, comprehendo!... Tenho, agora, a chave da gritaria e da maçaróca..

— E terá outras chaves, concluiu Mr. Slang, saindo com o peão do rei, si continuar a reflectir nesses problemas.

— A desembaraçar a maçaróca...

— Isso.

Mr. Slang calou-se e avançou com o bispo para a terceira casa da dama.




Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


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