Mister Slang e o Brasil/Capítulo 4

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IV


DO CRUZEIRO E OUTRAS
MIUDEZAS


Aquella partida de xadrez não durou muito tempo. Eu estava preoccupado com certa idéa — cousa inadmissivel no xadrez. Xadrez absorve, exige o cerebro inteiro attento ás combinações.

— Está distrahido, murmurou em certo ponto Mr. Slang, a um movimento inepto do meu bispo da dama. Esta sua jogada não se justifica, pois me permitte responder assim.

O assim foi, zás-trás, cheque.

— As pretas abandonam, exclamei. Ganhou.

— Quem ganhou não fui eu, disse Mr. Slang. Foi o cruzeiro.

— E' verdade. Estava pensando na moeda nova e a parafusar nas perturbações que vae trazer ao nosso povo. Não acha que é assim, Mr. Slang?

— O cruzeiro trará as mesmas perturbações que trouxe a adopção do systema metrico decimal — que elle completa. E' logico que os espiritos fracos se perturbem com mudanças metricas. Mas em attenção á fraqueza de espirito dos homens devemos permanecer sob regimens viciosos, que sobretudo a esses espiritos fracos difficultam a vida? O momentaneo prejuizo para a fraqueza de espirito se compensa com todo um futuro de facilidades. Nunca houve na terra progresso que não perturbasse o anterior equilibrio da vida. A entrada do automovel perturbou o equilibrio da vida mesquinha de milhares de cocheiros de tilbury. Mas transformou esses homens. Os cocheiros são hoje chauffeurs, gente mais bem paga e de um mais alto typo de vida. Ai do mundo, si em attenção ao tilburys e seus cocheiros impedissemos o advento do automovel! Além disso, no caso da nossa moeda cruzeiro não passa de nome novo do mil réis. Apenas. Rua de nome mudado não muda. Em vez de "quatro ou cinco mil réis" dir-se-á "um cruzeiro". Só. Já o povo, levado pelo instincto simplificador, ou lei do menor esforço, diz "cincão", em vez de "cinco mil réis". A lei baptizará de cruzeiro o "cinco mil réis", ou o "cincão" da gyria. A consequencia unica do nome novo será, pois, a economia do esforço vocal. Você bem sabe que a Efficiencia é o grande lemma de hoje. Todo o desperdicio, seja de materia, seja de esforco, vae contra a Efficiencia. A denominação nova trará uma economia de 2|3 no esforço vocal que hoje despendemos para nomear uma certa somma de dinheiro. Só isso.

— E as outras consequencias?

— Não ha outras consequencias além dessa economia.

— O abuso do commercio?

— Que abuso trouxe o metro ou o kilo quando tomaram o logar da vara e da arroba?

— Vá que seja assim, Mr. Slang. Mas o ponto fraco da estabilização parece-me estar na taxa adoptada. Seis! E' muito baixa! Dou toda a razão aos que combatem o projecto e preconizam a taxa de 8 ou 12.

— O seu erro, meu caro, vem de admittir liberdade na escolha da taxa da estabilização. Mas a palavra estabilizar define-se por si mesma: parar, estar no que está. Si estamos em 6, como propor 8?

— Esperariamos que o cambio chegasse a 8 ou a 12.

— Por que esperar 8 ou 12 e não 27? Ha tanto arbitrio na escolha do 8 como na do 12 ou na do 27.

— Oito ou 12 seria um cambio mais normal; 6 é anormal.

Mr. Slang sorriu.

— Normal, em geometria, é a perpendicular tirada do ponto em que a tangente toca uma curva. Em materia monetaria a curva, em vez de linha, é um ponto em perpetuo movimento sinuoso e possivel. Não ha normal fixa em cambio, isto é, no valor de uma moeda em perpetuo vôo de andorinha, ora nas alturas, ora barbeando o solo. Esperar! E' graças á politica do esperar para fazer uma certa cousa que o Brasil se encontra assim, pobre e arruinado. Isto por aqui me dá a idéa de um navio que joga horrivelmente e não deixa que se mantenham de pé os tripulantes. Todas as manobras são falhas e desastrosas por effeito do balouço continuo — e o navio vae indo á garra. Mas a tantas surge um engenheiro que se propõe a adoptar um dispositivo de uso velhissimo, suppressor do jogo e permissor de efficiencia nas manobras. Será um bem para todos — no entanto os tripulantes se oppõem, allegando que a latitude em que se acha o navio não é a mais propria para a adopção do dispositivo estabilizador. Acham que o gráo 18, 20 ou 23 é melhor. Outros acham preferivel o gráo 27. Esquecem-se de que, avariado e a fazer agua como está o navio, torna-se duvidoso que alcance taes latitudes...

— E' concertal-o, tapar a agua até que lá chegue.

— Mas si justamente o balouço excessivo da não é que impede os reparos, homem! Dizem uns: primeiro equilibrar os orçamentos, primeiro fazer a paz. Mas o desequilibrio financeiro é em grande parte effeito da instabilidade.

— Mr. Slang não irá dizer que a revolução tambem procede da instabilidade...

— Não vou dizer? Digo já, pois toda revolução tem por causa ultima o mal estar economico. Paiz que prospera não faz revoluções. Equilibrio de orçamento! Como, si a moeda é movel? Como organizar um orçamento de despesas, si parte dellas é em ouro e no fim do anno o ouro póde estar valendo o dobro ou a metade? Tolices, meu caro. Chicanas. A base de tudo é a fixidez. Primeiro estabilize; depois faça o que quizer. Estabilize, e o problema financeiro se resolverá por si. Estabilize, e a revolução perderá suas razões de ser.

— Mas... e o custo da vida? Não acha que é muito alto o custo actual da vida?

— Alto em relação ao que?

— Ao custo da vida ao cambio de 8, por exemplo.

— Mas o custo a 8 será muito alto em relação a 12. E o custo a 12 muito alto em relação a 27. Um preço será sempre mais alto ou mais baixo em relação a um indice qualquer. Agora, pergunto eu que é que tem isso com o facto da moeda se tornar fixa? Que tem o preço da seda com o metro de páo com que o logista a mede? Que tem o preço da terra com a trena do agrimensor? A estabilidade vem apenas dar á moeda a mesma fixidez que tem o kilo e o metro. Esta confusão que noto no espirito publico anda a criar-me sérias duvidas a respeito da mentalidade brasileira...

Olhei para a biqueira dos meus sapatos emquanto Mr. Slang proseguia:

— O pobre Brasil tem sido victima do corre-corre da adaptação. Supponha um negociante que fosse obrigado a mudar de casa todos os mezes. Que succederia?

— Todo o seu lucro ir-se-ia nas despesas de mudança e prejuizos consequentes. Diz o povo que tres mudanças equivalem a um incendio.

— Pois o pobre Brasil é um negociante que tem de localizar sua quitanda em 27 casas differentes, conforme as intimações de Mister Cambio. Como ha de o coitado prosperar?

— Realmente. A vida do Brasil tem sido um sahir de crise para entrar noutra.

— Justo. Chamam vocês crise ás mudanças de casa. Crise quer dizer desequilibrio. Para a volta a um equilibrio novo ha destruição de energias e bens. Como póde enriquecer um coitado destes?

Mr. Slang tomou folego. Depois disse:

— Ha de haver uma causa para que o Brasil, com o seu immenso territorio e os seus 30 milhões de habitantes, seja um dos paizes mais pobres do mundo.

— Talvez que a gente não preste... ia aventurando eu. Mas Mr. Slang tapou-me a boca:

— Depois que Henry Ford demonstrou como se aproveitam cégos e aleijados, ninguem tem o direito de allegar o não presta. Tudo presta. Até um cégo, um estropiado presta. A questão toda está em proporcionar-se-lhes condições para prestar. O mesmo cégo, que aqui não presta para coisa nenhuma, em Detroit produz igual a um homem perfeito e ganha 6 dollares diarios. O brasileiro precisa de condições para prestar e a condição numero um é a fixidez da medida do valor, a moeda.

Mr. Slang chamou o criado e pediu whisky and soda. Tinha feito jus a uma boa dóse, não havia duvida.



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.