Morro de desconfianças

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Morro de desconfianças,
e inda assim, Marfida, morro,
se duvidoso constante,
e se incrédulo devoto.
Indiscretamente acabo,
porque nesciamente troco
a vida, que tu me dás,
pela morte, que eu me tomo.
Morrendo de meus temores
sinto não morrer, meus olhos,
contente da tua mão,
se não triste de mim próprio.
Se foras minha homicida,
morrera eu, meu bem, gostoso,
mas que alegre hei de morrer
sendo o matador, e o morto?
Tu não me matas, Marfida,
que isso é só para ditosos,
dúvidas da fé me matam,
que eu mesmo levanto, e movo.
Mata-me o meu pensamento,
que a meu pesar se tem ódio
os sentidos, e as potências
dentro em meu peito composto.
Se me vejo, me acobardo,
e se te escuto, me cobro,
esforçam-me os meus sentidos,
quando me afrouxam meus olhos.
Quando te escuto, me firmo
em teu cuidado amoroso:
Vejo-me, e tanto descaio,
que de te crer me envergonho.
Ser confiado me alenta,
mata-me o estar duvidoso,
podendo viver, não quero,
querendo viver, não posso.
Se quero viver, te creio,
Se te quero crer, não ouso,
e do meu bem me desvio,
quando a meu mal me acomodo.
Que dissabores padeço,
e que desgostos suporto
por uma idéia, que finjo
num pensamento, que formo!
Morro de cousa nenhuma
mas que monta, se enfim morro?
e se enfim me mata mais
ver, que morro de tão pouco.
Quem me pusera tão longe
a mim mesmo de mim próprio,
que apartado, do que cuido,
só vivera, do que adoro.
Porém inda que me mato,
e em meu discurso me afogo,
de ti, Marfida cruel,
deveras estou queixoso.
Homicídio é dar a morte,
mas eu a ter me acomodo
por mais cruel homicídio
negar à vida um socorro.
E tu, se bem me não tiras
a vida, quando me morro,
podendo a morte estouvar-me,
jamais queres ser estorvo.
Vês-me com a morte lutando,
e em teu duro peito noto,
que à míngua de um teu carinho
fico da morte despojo.
Se tu me deixas morrer
das idéias, que componho,
de mim sem razão me queixo,
e a ti, com razão, me torno.
Quem não receia, não ama,
ser confiado, é ser frouxo,
sempre são loucos os zelos,
mas discretíssimos loucos.
E se os meus zelos te enfadam,
dá-me licença, meus olhos,
para me ter por mofino,
pois perco por amoroso.
Se das potências desta alma
te dei o domínio todo,
porque em minha alma consentes
estas idéias, que formo?
Responderás, que te indignam,
porque servem um falso antojo
ou a teu amor de injúria,
ou a tua fé de opróbrio.
Mas se és Senhora absoluta
de mim mesmo, e de mim todo,
em consentir no meu erro
dás a entender, que é teu gosto.
Marfida, eu morro, eu acabo:
e em tal hora me acomodo,
só por ser, Marfida, teu,
co'a glória de ser teu morto.