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Motta Coqueiro/III

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O suspeitoso Manuel João concebeu a respeito da demora de Chiquinha e do capitão na colheita das limas a mesma idéia, que atravessou a lúbrica imaginação do violeiro e ocasionou a entrevista na baixada.

Era seu dever tirar a limpo a verdade, impunha-lho o juramento que. havia poucas horas, empenhara num pacto de solidariedade inquebrantável, e, tanto como o juramento, o próprio conceito que levedava-lhe a paixão no mais azedo ciúme.

A desconfiança, esse feio ouriço que se nos revolve interiormente, espetando-nos nas suas minadas de espinhos a alegria, a boa fé, a benevolência e a tranqüilidade, sangrava-o no mais íntimo, no mais sagrado do seu afeto.

Na conspiração horripilante, mas sem eco, célere nos movimentos devastadores, mas silenciosos, o hediondo monstro moral, com as secreções purulentas como o vômito do tísico, manchava quanto o amor podia fantasiar mais estreme, e a dedicação requintar mais esplêndido.

Onde estava um brocado superpunha um andrajo; onde clareava um fanal urdia uma emboscada; onde brilhava um raio de luar estendia um bulcão; e, em vendo vicejar uma flor, lembrava cavilosamente a das ninféias que se nutrem das águas pútridas dos brejos.

Contrastado pela suspeita, o feitor via no lhano entregar-se de Mariquinhas, não uma prova da bondade daquele coração ingênuo, mas a cilada indecorosa da mulher decaída, que planeja a reabilitação na profusão dos afagos.

Os preconceitos haviam-no por várias vezes esmagado, porque pertencia à raça mista, à raça a que traçam raias ao coração e aos afetos.

Mariquinhas devia partilhar a opinião geral e, portanto, a sua aquiescência ao amor, que lhe votara, devia ter um móvel ou muito generoso ou miseravelmente baixo.

A primeira ponta do dilema não feria a imaginação tresvairada de Manuel João; malferia-o, porém, a segunda.

— É bonita demais para um homem de cor, dizia ele, e ficava a cismar.

Um observador perspicaz, ao ouvir estas palavras, compreenderia imediatamente que na memória de Manuel João desenhava-se na suavidade do seu amorenado a pedir uma paixão selvagem, indômita, a imagem de Mariquinhas.

Parava como em êxtase, deixando adivinhar que no seu espírito coava-se o olhar macio da moça, filtrado através de uns cílios negros, sedosos; olhar de pouco brilho, despretensioso, animador — uma gota de óleo contendo um raio de luz, a derramar-se em inundação diáfana sobre um rosto oval, de linhas harmônicas, transparecendo singeleza e sinceridade.

Mariquinhas era realmente bela; arqueavam-se-lhe sob as narinas finas os lábios semelhantes às asas do tigé no sangüíneo colorido, e orlavam-lhe a testa pequena bastos cabelos negros, descendo em ondas lustrosas a envolver-lhe dois terços da estatura mediana. Seu colo igualava a curva de um arco bem talhado, de que partissem à pequena distância as extremidades pontiagudas de duas setas.

Quando nas horas de trabalho ela com as mãos aristocráticas conchegava ao corpo a saia de chita, esta compressão e a justeza do corpinho faziam lembrar os contornos de uma estátua.

O moço feitor fascinara-se desde logo pela sertaneja encantadora; e agora que o ciúme assolava-lhe as faculdades, ele, para concluir que havia uma torpeza no desapego de Mariquinhas por si própria e pelos preconceitos sociais, punha-se em paralelo com ela.

Refletia-se no seu despeito sem causa e via-se bem diferente do harmonioso conjunto da sua amante.

Seu rosto modelado pelo tipo indígena tinha a cor do jenipapo; seus olhos grandes, à flor das pálpebras orladas de sobrancelhas negras, lançavam olhares ásperos, amplos e incisivos. Por sob o cheio buço ondeavam-lhe em horas de ternura uns sorrisos atoleimados, embora através de duas linhas de dentes claros. As suas mãos eram calosas demais para ameigarem-se numa carícia, e o seu porte desenvolvido ostentava a musculatura rija e abundante do homem de trabalho.

O que tinha, pois, em si que pudesse atrair a mais linda das filhas daquele sertão?

Podia bem ser que ela só visse nele um nome de esposo, para encobrir alguma fraqueza dos quinze anos, e a falta de piedade de um fazendeiro rico.

Seria, porém, baldado esse intento, porque saberia surpreender o ardil, e desmascará-lo.

Ruminando sinistras conjeturas chegou o feitor a sua casa, depois de ter pedido na senzata vizinha um tição, com o qual acendeu o candeeiro.

Chegou para junto da mesa um mocho e assentou-se, cruzando os braços sobre os quais deitou a cabeça, na borda da mesa, e absorveu-se nos seus pensamentos.

Só se lhe ouvia de espaço a espaço, levantando a cabeça e dando uma forte punhada, exclamar:

— Não pode ser; aqui anda coisa, por força.

E recaía no silêncio e na primitiva posição.

Com um tabuleirinho, em cuja tábua viam-se um bule de lata, uma xícara e um prato com tapiocas, um molecote desempenado, de semblante alegre e meneios francos, assomou na porta do feitor, gritando:

— Oh! seu Manuel João, está aqui a ceia.

Quando acabou de falar, já o tabuleirinho estava sobre a mesa.

Manuel João levantou-se como quem acorda sobressaltado; mas em vez de assentar-se de novo à mesa, caminhou direito à porta, fechou-a a chave, e depois veio colocar-se ao pé do moleque.

— Oh! Carlos, disse ele; tu queres ganhar uns cobres?

— Se vosmecê me der, eu gosto bem.

— Estão aqui, disse o feitor, que tirara do bolso do paletó uma nota de dez tostões.

Carlos arregalou os olhos e tartamudeou sorrindo:

— Qual é a empreitada, seu Manuel João?

— Jura primeiro que não contas a ninguém o que vou te perguntar?

— Por Deus, disse o moleque, cruzando dois dedos e beijando-os.

— O amo, a ama, Os meninos e as filhas do Chico Benedito foram passear hoje de tarde...

— Sim, senhor, e eu também fui, por sinal que apanhei aquelas limas que vosmecê viu...

— E isto mesmo. O amo ficou com só Chiquinha e os outros vieram andando, não é?

— E sim, eu logo vi que havia de dar na vista.

— O quê? eles onde ficaram?...

— Não houve nada, não senhor; mas é que é feio.

— Escuta bem, Carlos, não me enganes; fala a tua verdade.

— Não houve nada, não; senhor e só Chiquinha ficaram sentados na pedra, e eu trepei na limeira. Se houvesse alguma cousa eu via tudo, que eu bem que estava assuntando.

— Nem um beijo.

— Qual o que, seu Manuel João; senhor já está velho; e ele não gosta de só Chiquinha, não senhor, que ainda agora eu ouvi lá na mesa ele estar falando com a senhora por causa do Sebastião.

— Então ele gosta de alguma?

— É de sá Mariquinhas, porque ele estava dizendo que é a mais sossegada de todas, e de mais juízo.

À revelação do moleque correspondeu uma explosão colérica do feitor; estava fulo de raiva, espumava:

— Pois olhe, ele que se divirta, aquele velho sem-vergonha; racho-o de meio a meio, faço-o voar na boca de um bacamarte, o traste. Quem o vê; se ela tem juízo, ou não, que lhe importa? Não é filha dele...

— Mas não é por mal, seu Manuel João, é porque as outras são faíscas.

— E ela é a mais tola e por isso ele vai-se chegando para ela, mas Deus o livre, eu não sou de brincadeira...

— Pode ser! ...

— Você me espie o sujeito, Carlos; qualquer cousa que veja, venha ter comigo; deixe estar que não perde o tempo.

— Deixe por minha conta!

O moleque dirigiu-se à porta, abriu-a e saiu; Manuel João sentou-se à mesa e começou a tomar café.

Carlos havia de estar chegando à casa grande, quando um outro interlocutor veio substituí-lo junto ao feitor.

Era uma crioula de dezesseis para dezessete anos, exalando sensualidade dos olhares maliciosos e através do crivo da camisa branca.

Desde que Manuel João empregara-se como feitor no sítio de Motta Coqueiro, íntimas relações foram travadas entre eles. Separados durante o dia em virtude de suas posições, ela — escrava do eito e ele — feitor, reuniam-se à noite na igualdade do amor, e ceavam juntos entre risos e carícias.

Ninguém suspeitava sequer esta aliança: a crioula morava na primeira senzala, e para entrar na casa do feitor bastava dar alguns passos.

O moleque que trazia a ceia para Manuel João, com o seu grito à porta do feitor, advertia a crioula de que eram horas de reunir-se ao seu amante. Ficava então à espreita e logo que este se retirava, fazia ela a sua entrada.

Quando o senhor não estava no sítio ainda mais fácil tornava-se a reunião. A parceira incumbida de aprontar a comida mandava pela amante o tabuleirinho da ceia do feitor.

Na noite em que nos achamos a rapariga pôs-se à espreita do moleque, segundo o hábito, e surpreendida da demora, veio pé ante pé encostar o ouvido à porta para ouvir, e de vez em quando espiava pela fechadura para ver o que se passava.

A principio foi-lhe impossível formar um sentido com as poucas palavras soltas, que excediam o diapasão do diálogo à meia voz; mas persistindo na sentinela, pôde para o fim saber ao certo do que se tratava.

Contendo o primeiro ímpeto, a crioula manteve-se no seu posto até que o moleque saiu. De um pulo, colocou-se no vão entre a sua senzala e a casa do feitor, para logo voltar à entrevista de todas as noites.

Ao entrar fechou a porta sobre si, e foi como de costume assentar-se no mesmo banco ao lado do feitor. Este, porém, recebeu-a friamente, sem levar-lhe à boca a xícara para dividir com ela o café que tomava.

— Que é isso, o que é que lhe fez a sua Carolina? perguntou ternamente a dissimulada crioula.

— Estou doente hoje, respondeu secamente o feitor.

— Se é quebranto, eu sei rezar. Eu curo-o hoje e de hoje em diante vosmecê traga no pescoço uma figuinha para livrar de mau-olhado.

— A doença que eu tenho você não cura, sorriu tristemente o feitor; é moléstia para outro doutor.

— Então já não está aqui quem falou.

Calaram-se ambos; Carolina pôs-se a beber pela xícara de Manuel João, enquanto este picava sobre a mesa o fumo e ajustava uma palha de milho para fazer o cigarro.

Enquanto bebia, a crioula fitava de soslaio o seu amante, e o seu colo, negro como as penas do anum, arfava larga e tumidamente. Rompeu por fim o silêncio:

— Sabe do que estou me lembrando, seu Manuel?

— Sim...

— Da primeira vez que vosmecê falou comigo no aceiro, quando eu passava com o barril dágua para a gente.

— E por que lembrou você isso?

— Vosmecê estava debaixo das bananeiras, tirando fogo do isqueiro; chamou-me e deu-me de presente um lenço branco. Quando isto foi, ainda não era nascido o caçula de senhor; e daí para cá vosmecê tratou-me sempre bem; ficava alegre quando me via...

A crioula enxugou duas lágrimas que lhe deslizavam pelas faces, e Manuel João, prendendo-a com o braço pela cinta, exclamou:

— De que é que você está chorando, Carolina?

— Pois não é assim; eu não lhe sujei as suas barbas e vosmecê já não faz caso de mim.

Manuel João tinha-se inclinado para Carolina e os seus lábios quase roçavam os grossos lábios da amante, quando se pôs de pé, de um salto, como se uma oculta força o houvesse repelido.

— Não estou zangado, não; exclamou contrariado, mas hoje quero estar sozinho.

As lágrimas secaram-se nos olhos de Carolina; e a dignidade da amante ergueu-se de pé e solene diante do feitor.

— Escute bem, seu Manuel João; eu não lhe estimo nem por medo nem por ganância. Quero-lhe bem, está aí tudo. Desde que lhe estimei, ninguém se pode gabar de ter visto os dentes desta negra. Não pense, não, que eu deixando vosmecê vou andar por aí. Pode perguntar ao Juca Benedito como é que eu lhe respondo, e não hei de mudar, não, ainda que o senhor passe a feitoria para o pai dele.

— O quê? o que é que você acabou de falar?

— Digo que não hei de mudar, ainda que seu Chico Benedito fique sendo feitor.

— Você está mentindo; o amo ainda não se mostrou zangado comigo: não pode despedir-me assim, sem mais nem menos.

— Todo o mundo já sabe que o senhor vai chamar seu Chico; pergunte, para ver se é mentira.

Dando este golpe certeiro no amante infiel, a crioula saiu vitoriosa, apesar das rogativas de Manuel João.

— Anda, dizia ela, lá fora; vê quem vale mais, se são as brancas ou as negras.

— Feitor! feitor! ele, o pai! exclamava de vez em quando Manuel João; não há dúvida, uma das filhas é o pago de tanta amizade.

Chegando à sua senzala a crioula conservou-se algum tempo sentada na grossa esteira do seu leito miserável, sugando de seu cachimbo negro densas fumaças opaladas.

Um caco de barro vidrado, em cujo fundo espessava-se uma camada de escuro azeite de mamona, dentre a qual partia, para a borda do caco, uma torcida de algodão embebida do óleo e acesa na extremidade, dava luz ao cubículo.

Por únicos ornatos via-se ai uma velha caixa de madeira, uma corda estendida num dos cantos do quarto, na qual penduravam-se as saias brancas engomadas e o vestido de cassa domingueiro.

Pouco acima da cabeceira do leito, pendia da parede um quadro envernizado, em cujo fundo o artista desenhou uma bela mulher, de semblante sem tristeza, mas também sem sorrisos, na calma inefável da pureza. Rosto encantador, cuja testa debruavam crespos cabelos negros que lhe desciam até os ombros; o corpo de perfeição irrepreensível, vestia-o uma túnica amarrotada em pregas caprichosas, e sotoposta a um manto azul salpicado de estrelas. Os pés pequenos pousavam sobre uma grande nuvem da alvura das camélias e amparada por ombros e cabeças de anjinhos alados. Todo o conjunto emoldurava-se numa elipse de nuvens brancas, afastadas por um clarão.

A religião tinha santificado este quadro, consentindo que se escrevesse sob ele: Nossa Senhora da Conceição.

Diante dessa mulher imaculada, Carolina como que não se atrevia a dar som aos seus pensamentos sombrios: evaporava-os silente nas baforadas de fumo.

À semelhança dos pântanos que dissimulam a existência da lama de suas bacias, mostrando a superfície azulada coberta de grandes ilhas flutuantes, virentes e tocadas de flores; a desditosa recalcava no coração os ódios vingadores, enquanto que nos olhos merejavam-lhe as lágrimas, essas tristonhas flores em que desabrocha o sofrimento das almas delicadas.

De súbito, porém, arrancou dentre dentes o cachimbo, pousou-o no chão junto da cama, levantou-se e abriu a velha caixa que lhe estava em frente.

De dentro de um grande escaninho tirou algumas peças de roupa. Eram umas toucas de lã, umas camisinhas para recém-nascidos e alguns panos de algodãozinho.

Depois de desdobrá-los entre as mãos e torná-los a dobrar, a preta veio colocar-se diante do quadro da Virgem; e as lágrimas até então contidas rolaram-lhe em fios para logo estancarem-se.

No rosto de Carolina a expressão pungente foi então substituída pela da mais sombria raiva. As roupas foram feitas em tiras, calcadas e cuspidas, e a negra amante do feitor, depois de assoprar o candeeiro, saiu apressadamente do seu domicílio sem conforto.

Cosida com a parede das senzalas seguiu até a quinta janelinha e, pondo o queixo sobre o peitoril, chamou com voz abafada:

— Oh! tia Balbina, oh! tia Balbina; faz favor de abrir.

Lá dentro soaram uns estalidos de palhas secas comprimidas; a janelinha abriu-se.

— Que é que você quer com tia Balbina, quando o galo não tarda a cantar?

— É por muita precisão, tia Balbina; deixe-me entrar.

E Carolina, apoiando-se no peitoril da janelinha, pulou por ela para dentro da senzala.

— Que é que foi; deixa acender o candeeiro.

A luz encheu o quarto, e deixou ver a interlocutora de Carolina.

Era uma preta alta, corpulenta, de olhos maus, injetados de sangue, nariz grosso e beiços túmidos.

Atava-lhe a cabeça um lenço de chita vermelha com frisos brancos, e vestia-a até a cintura uma camisa branca de algodão trançado, e daí até os tornozelos salientes uma saia da mesma fazenda.

Era cabinda e chamava-se Balbina. Havia pouco tempo que se achava no sítio entre os escravos de Motta Coqueiro, entretanto a sua autoridade sobre eles era maior do que a de seu senhor.

Ouviam-na como a um oráculo e as suas ordens eram atendidas como se fossem decretos.

Afável nas horas de bom humor, rindo umas risadas expansivas, todavia nenhum dos seus parceiros atrevia-se a requestar-lhe a reluzente frescura da sua pele de trinta e tantos anos.

O ascendente sobre os crédulos e broncos escravos do sítio foi conquistado por Balbina pelo dom especial que ela tinha de conhecer as ervas eficazes no curativo de todas as moléstias e ainda mais aquelas que tinham certas virtudes especiais, tais como amansar os senhores, apatetar os brancos, e assentar o juízo dos amantes volúveis.

Diziam que ela tinha nas suas mãos a vida e a morte de todos, e para dá-las bastava apenas um olhar ou um assopro.

No eito tinham-na por vezes visto chegar-se junto as cobras adormecidas, ou enraivecidas, e enxotá-las. Os répteis fitavam-na, agitavam as línguas e as caudas, tomavam mesmo a atitude de dar o bote, mas de chofre acovardavam-se e corriam amedrontados à voz da negra que lhes ordenava a retirada imediata.

Alguns tímidos denunciaram a tia Balbina como feiticeira, e Motta Coqueiro, depois de descobrir em poder da preta os instrumentos próprios de tal arte, para prevenir os envenenamentos possíveis, fez castigar severamente a escrava.

O castigo germinou no coração de Balbina um ódio encanecido, e ela desde então só fitava o senhor de través.

Acesa a vela, a feiticeira insistiu na pergunta:

— O que é que você quer com a tia Balbina, quando o galo não tarda a cantar.

Carolina começou a falar:

— Vosmecê sabe que eu estou pejada, mas não sabe de quem é.

Balbina, abaixando a gola da camisa, deixou ver o seu colo carnudo, onde se desenhava grosseiramente um olho aberto:

— Balbina sabe tudo, exclamou a feiticeira; casa não tem parede, gente não tem segredo, bicho não tem maldade para Balbina. Filho de você é de Manuel João; mas o pai não se importa mais com a mãe de seu filho.

O espanto avassalou a crioula, que se debulhou em lágrimas.

— Não chora, não, criança; mundo é assim mesmo. Balbina criou o filho dos brancos, Balbina foi boa para o menino. Quando o filho dos brancos estava doente, Balbina sentia como se fosse filho dela. Menino já está grande; os brancos jogam fora Balbina; põem a escrava de outro dono no meio dos escravos dos brancos. Língua má corta em Balbina, brancos dão ouvido; Balbina é surrada, como negro ladrão. Balbina sofre calada, porque maior é Deus. Tem amizade ao filho dos brancos, que não é filho de Balbina. Podia soprar a casa grande; mandar a cobra-coral tirar nos brancos o sangue que correu das costas de Balbina, mas não quer; sofre calada.

— Mas eu não quero sofrer assim, tia Balbina; não quero dar meu peito ao filho de Manuel João, basta que eu veja ele casado com aquela faísca.

— Bico! disse a feiticeira, levantando um dedo aos lábios. Você está dizendo pecado. Escuta primeiro a voz do chocalho de Balbina.

A feiticeira abriu de novo a janela e espreitou para fora, depois tornou a fechá-la cautelosamente. Tirou de um gancho de pau pendente do teto por uma corda uma cesta de taquara; pegou do candeeiro e do braço de Carolina e dirigiu-se para a repartição interior da senzala.

Colocou o candeeiro numa espécie de prateleira pregada à ombreira da porta do interior, e ordenou a Carolina que se conservasse de costas para ela.

Voltou então ao lugar em que estiveram e abriu uma caixa de onde tirou uma trouxa coberta com uma baeta vermelha, e tornou para junto da crioula.

Desdobrou então sobre o chão a baeta, e espalhou sobre ela umas figas negras, uns rolos de enxofre, uns maços de cabelos lanosos, um pequeno boneco disforme de feições gateadas e foscas, e uns ossos amarelados.

De dentro da cesta tirou um embrulho de arruda seca e um chocalho feito do esferóide de um cuité, tendo por cabo uma haste de taquara.

Depois de ter queimado um galho de arruda, e vendado com um lenço os olhos de Carolina, a preta acocorou-se e pôs-se a tanger o chocalho perto da orelha, dizendo:

— O chocalho fala que Carolina há de dar três patacas para ele e uma vela para Nossa Senhora das Dores, outra para S. Benedito e outra para S. Miguel.

— Faço, sim senhora, tia Balbina.

A feiticeira tangeu de novo o chocalho.

— O chocalho está dizendo que o filho de Carolina tem de sofrer cativeiro do mau senhor. Brancos podem surrar, podem vender o filho da sua escrava, e a escrava há de chorar e tomar ojeriza dos brancos. Antes o filho não nasça, se há de passar tantos trabalhos; antes vá para os anjos no tabuleiro com rosas e girassóis. A cobra zangada ou morde a quem a zanga, ou morde o seu corpo dela. A mãe que tem de ficar sem o filho, que é seu sangue, é como a cobra zangada.

— Sim, sim, tia Balbina.

— Escuta ainda, criança, continuou a africana, tangendo sempre o chocalho; — a coral briga com o lagarto; a cobra faz rodilha e sacode a língua de fogo; o lagarto pára, estica a cabeça chata e espera. A cobra dá o bote, o lagarto faz roda e chicotela, e quando é mordido sabe no mato a erva contra a dentada, que mata. Zambi, que está lá em cima, foi quem lhe ensinou o remédio. Carolina foi mordida no coração, Zambi lhe ensina o remédio.

De manhã, em jejum, o caldo do limão corta, a cinza do borralho come.

— Sim, sim, tia Balbina.

— Mas é pelo mau senhor, que morre o filho de Carolina, que devia ser bonito como seu pai, com seus cabelos cacheados e pele de capixaba.

Carolina pôs-se a soluçar.

— A mãe chora porque tem bom coração, mas tem também mau senhor. Se é pelo feitor não tem que sentir. O Chico, pai da que tirou o sossego de Carolina, entrou na casa dos brancos em tempo de lua nova. A semente que se planta nesta lua, morre, a madeira que se corta, racha e apodrece. A lua aparece um bocadinho e entra logo, e tudo fica escuro.

A camaradagem de Chico com a casa grande dura pouco; veio na lua nova. As filhas do agregado gostam de gente de que o macota tem queixa, e quando ele souber, briga com o agregado.

— Já sabe, já, tia Balbina, exclamou Carolina, que tinha ouvido a conversa do moleque com o feitor.

— Melhor para Carolina e para nós todos. O mau senhor disse a Fidélis que Manuel João não puxava pela gente, e que o melhor era dar a feitoria ao Chico, de quem a gente resmunga. Mas a gente não terá tal feitor, porque eles já estão rusgando. Fidélis há de chamar seu senhor para mostrar o que o agregado faz na roça dos brancos, e o Chico não terá mais feitor, porque ele é soberbo.

Balbina viveu na casa grande de seu primeiro senhor, e sabe como são os brancos. O moleque Carlos vai contar ao senhor que vem toda a noite gente de fora pousar na casa do Chico, a mucama diz à senhora o que fazem as filhas, e tudo está acabado entre o agregado e o mau senhor.

Carolina vai primeiro do que os dois junto de seu senhor, dizer que tem um filho do feitor, e Manuel João perde a feitoria e a filha de Chico volta logo as costas para ele. Carolina conta também a Manuel João que o Chico anda pedindo a feitoria, há briga entre os dois e Manuel João não volta mais à casa do pai da moça de que ele gosta. Balbina faz o resto.

— Está direito, tia Balbina; eu faço tudo.

Houve uma pausa, a feiticeira levantou-se e foi queimar outro galho de arruda. Depois revolveu a cesta e tirou de dentro dela uns búzios e uma bolsa de pano toda cosida e pendente de um cordão preso nas extremidades da bolsa, e colocou-a no pescoço de Carolina.

Acocorando-se de novo, sacudiu na mão por três vezes os búzios, atirou-os sobre a baeta, e agitou o chocalho ainda uma vez. Ergueu-se então, e pegando de um dos rolos de enxofre chegou-o à chama do candeeiro, enchendo desta forma o recinto de um cheiro nauseabundo.

Depois lançou novamente os búzios, e enrolou a baeta com os instrumentos cabalísticos, e desatou a venda dos olhos de Carolina, dizendo-lhe solenemente:

— A cobra, quando vai lavar-se e beber água no rio, lança o veneno na folha da erva que está mais perto. Pode morder agora que não tem veneno para matar. Carolina ouviu o segredo do chocalho, está nas mãos da criança perder tia Balbina. Como o carreiro bota a canga no pescoço da junta de boi, o mau senhor mandará pôr o tronco pesado nos pés da feiticeira. De madrugada na revista, o chicote tirará sangue das costas da má escrava, e Carolina ficará querida.

Mas a cobra, que perdeu o veneno, faz a rodilha junto do brejo; o sapo vem pulando e gritando e ela olhando o bicho puxa-o, puxa-o para a boca e dele tira novo veneno. Carolina não pode dizer nada do que ouviu ao chocalho; será seu o mal da tia Balbina.

Depois de afirmar muitas vezes à feiticeira que guardaria o maior segredo, a crioula saltou de novo a janela e retirou-se para a sua senzala, onde, refocilada na perspectiva da vingança, adormeceu facilmente.

O candeeiro continuou aceso na senzala de Balbina, e quem espiasse pela fresta da janela, e aplicasse atentamente o ouvido, vê-la-ia sentada, com o cachimbo negro à boca. De vez em quando, porém, ela tirava o cachimbo e pronunciava estas palavras agoureiras.

— Hum, hum, os brancos? A negra criou o menino; era a mãe preta, e eles não deram nem um canto da casa grande para ela morar. Tomaram o menino das mãos da negra e meteram nelas a enxada. Depois o chicote fez feridas nas costas da feiticeira, e o menino nem olha mais para ela. A ririo machucada morde, a escrava desprezada mata.

O canto do galo tão apregoado por Balbina fez-se ouvir afinal, e a preta que estremeceu ao ouvi-lo, deitando-se presto, apagou o candeeiro.

Ao passo que nas senzalas das duas pretas e na casa do feitor o despeito, o ciúme e o ódio coligavam-se em ameaças medonhas e planos temíveis; na casa grande desfizera-se já a passageira contrariedade motivada pela consulta do velho agregado.

Motta Coqueiro substituiu o mau humor pela piedade, e ao voltar à sala de jantar para o meio da família, conversando a respeito dos esponsais, refletia à sua senhora:

— Quem sabe se eu não teria evitado os casamentos se houvesse dado ao compadre a feitoria do sítio?

— Qual o quê, Sr. Motta, respondeu-lhe a senhora, o compadre está tão namorado como as filhas pelas cantigas de Sebastião, e além disso é necessário não esquecer o vício da bebida.

— Foi o que impediu-me e hoje se eu lhe desse tal lugar, os genros mudavam-me até o sitio com as casas e tudo.

— Agora é que é aturar o compadre; se ele sem motivo nenhum andava sempre em grande gala, quanto mais agora que tem razão para estar alegre.

— É verdade; há de ficar insuportável; o que vale é que eu já lhe disse que tratasse de fazer a sua casa.

— E será bom falar-lhe sempre; não deixá-lo dormir.

A conversa desviou-se deste ponto sendo substituída pelo das trivialidades domésticas, e algumas medidas urgentes, no entender da senhora.

Uma delas sustentada com mais calor e aferro era a de apressar-se o corte da madeira. A razão oculta do entusiasmo da senhora na sustentação desta urgência era a sua antipatia pela residência no sitio, obrigatória agora pelos interesses pecuniários da casa, muito respeitados pela senhora.

— Descanse, afirmou-lhe Motta Coqueiro, dentro em quinze dias hei de começar a carrear a madeira, e com certeza dentro em um mês poderemos mudar-nos para a cidade.

— Deus o permita; não pode haver lugar mais triste no mundo do que este sítio; parece um lugar amaldiçoado. Por minha vontade, Motta, você desfazia-se destas terras.

— E o resultado era não encontrar facilmente outras com tão boas madeiras.

— É o que não falta por ai.

Sempre que a conversa sobre tal assunto chegava a este ponto, os esposos por uma inspiração do bom senso passavam a ocupar-se de outras matérias, quando não a interrompiam de todo.

Na noite em que nos achamos a conversação teve o seu ponto final no da última frase da senhora, e a família, levantando-se da mesa, cada um de per si, foi para os seus aposentos.

Daí a pouco o sono fez silenciar toda a casa, exceto uma saleta onde o moleque Carlos, deitado de costas sobre uma esteira, posto um dos braços sob a cabeça, com a boca escancarada roncava forte e continuadamente.

Cinco dias decorreram sem que nenhum sucesso importante viesse articular-se aos que deixamos narrados. A feiticeira e a crioula pareciam ter esquecido o plano de combate traçado em palavras cabalísticas. No eito e à noite ao voltar â casa não se trocavam senão as saudações usuais, e isto mesmo friamente.

A astuta africana prevenia assim quaisquer suspeitas, que porventura pudessem gerar-se no pensamento do feitor, que todo absorvido nos seus projetos de surpreender os imaginados amores de Coqueiro e uma das filhas de Francisco Benedito, talvez a Mariquinhas, nem sequer reparara que a zelosa Carolina já não o visitava mais.

Durante todos esses dias Manuel João não se tinha encontrado com os seus companheiros e nem podia atinar com a empresa a que tinha ido o violeiro.

Também a sua preocupação especial era vigiar estreitamente os passos do amo e os das filhas de Francisco Benedito.

Como o jacaré, no tempo do choco, vai colocar-se a alguma distância, e de lá, olhos atentamente fixos, ouvidos solicitamente prestados, todos os sentidos, enfim, aguçadamente aplicados, vigia o ninho de onde há de nascer-lhe a prole, e ao menor estremecimento, ao menor ruído acode pronto como um ralo, feroz como uma pantera, decidido a atacar, e a morrer ou a matar; Manuel João, entregue à conflagração dos zelos e à guarda da sua amante, seguia os menores e mais insignificantes movimentos do seu amo e resolvido a puni-lo desapiedadamente.

Às vezes, pelas estreitas picadas da mata virgem passava tranqüilamente o fazendeiro, cortando com o facão de mato os galhos inclinados sobre o trilho. Dirigia-se ao lugar onde os seus escravos e jornaleiros trabalhavam no falquejar da madeira e na derrubada das árvores seculares.

Os seus gestos maquinais, comuns a todo o homem do sertão quando caminha, provavam que ele estava bem longe de desconfiar de uma emboscada e prevenir-se contra ela.

Entretanto, diversas vezes à beira da estrada, oculto por detrás dos trançados de cipós e das enrediças de unhas-de-gato, alguém, escondido, espreitava-o. Era o feitor; que, de espingarda engatilhada, vacilava em disparar-lhe a arma.

O transeunte desapercebido era defendido apenas por um resto de consciência, que ainda sobrevivia límpida na alma rebolcada do feitor, e que lhe aconselhava verificar primeiro a existência de causa justa para tamanha vingança.

A fria premeditação do feitor espojava-se então na hediondez dos instintos sanguinários, como o porco farto no lamaçal do chiqueiro. e como no focinho alongado e negro do animal ficam a branquear as duas longas presas curvas, no rosto do assassino intencional ficavam sempre à mostra o despeito e o ódio.

Automaticamente o emboscado deixava cair cautelosamente o cão sobre o ouvido da espingarda e afastava-se por entre o mato.

Não era porém um arrependimento o que o decidia; a reincidência provava que esta resolução era um simples adiamento da sua fixa decisão.

No sábado da semana a que nos reportamos, uma triste contrariedade veio pôr em movimento toda a família de Motta Coqueiro.

Pelas nove horas da manhã apareceu em casa, arquejando de cansaço e lavado em suor, o preto Fidélis, pedindo a toda pressa um lençol para improvisar com ele uma rede, e assim conduzir Carolina que estava caída no aceiro a estrebuchar com um ataque Dava gritos como o uivar dos cães à noite e o seu desejo era principalmente esganar se e despedaçar a roupa Esforçava se para levantar-se e em seguida cairia em cheio no chão, se dificilmente não a contivessem os parceiros, que tinham deixado o serviço para socorrê-la. Depois de uma série de movimentos bruscos, a doente ficou imóvel, inteiriçada como um defunto, mas logo crispando-lhe o rosto ininterruptas contrações, começou a prantear como se fora uma criança, e renovou os fenômenos assustadores.

A narração dos sintomas, feita pela geringonça do preto, encheu de espanto a família de Coqueiro, e este ordenou ao escravo que montasse a cavalo para que o socorro chegasse mais pronto à enferma.

Passada cerca de uma hora de ansiedade, entravam na casa grande três pretos e o feitor, dois dos quais traziam aos ombros a rede; os outros tinham vindo revezando.

Tirou-se de dentro da rede Carolina desfigurada, sem sentidos, inerte, um quase cadáver. O seu rosto tinha perdido o reluzente brunido da saúde e substituíra-o a feia cor dos panos pretos mofados. O suor borbulhava-lhe inestancável por entre a pele da testa e das grossas narinas.

A dona da casa principiou logo a ministrar os mais sérios cuidados, e os mais eficazes remédios caseiros que tinha à mão.

Andava para lá e para cá; aqui estendia um sinapismo, ali pisava no almofariz umas sementes. Gritava por uma escrava para que trouxesse a água quente para o escalda-pés, e a outra que fechasse a janela para não entrar o ar. Era uma dobadoura.

No meio da inopinada tarefa, a boa da senhora não perdera o tino administrativo de que era dotada; harmonizou logo os cuidados à enferma com os cuidados diários da casa.

Disse a Manuel João que não voltasse para o serviço antes de almoçar, porque assim poupava-se o trabalho de arrumar o seu almoço entre o dos pretos.

A um dos escravos que vieram, o preto Domingos, ordenou que esperasse um pouco para levar o cesto do almoço da gente e despachou os outros para a roça.

Graças a tanta habilidade e sangue frio, os trabalhos domésticos retomaram todos a sua marcha habitual, e logo foi aviado o preto Domingos.

Ágil e expedito, e ainda mais acossado pelo apetite, o africano chegou prontamente à roça e chamou os seus companheiros para a refeição.

Era um caráter nobre o do preto Domingos. A resignação tomava-lhe simpático o rosto chato e feio. Amadureceram-lhe os anos e até certo ponto a própria severidade do seu senhor o instinto da obediência. Tinha a fidelidade do cão, e a passividade da besta de sela. Investia contra os que atacavam a casa grande e os brancos, e resfolegava e recuava diante do abismo de perversidade dos seus parceiros, que muitas vezes tinha-se-lhe aberto diante, atraindo-o com sugestões iníquas.

Depois de tirado o eito, os escravos com as enxadas ao ombro dirigiram-se para o aceiro, onde sentaram-se, depondo os instrumentos de trabalho.

Domingos distribuiu por eles as diversas cuias, onde uns pequenos quinhões de carne-seca assada sobressaíam da alvura do pirão de farinha de mandioca.

Feito isto, o preto, honesto e discreto, afastou-se do grupo e foi sentar-se distante sobre um largo toco à sombra de uma laranjeira.

O acaso fez com que no centro do grupo ficasse a tia Balbina, que modificara os trajes em que vimo-la na sua senzala apenas em trazer hoje uma saia de zuarte.

Acompanhando com os olhos o preto que se retirava, a feiticeira provocou a hilaridade dos parceiros dizendo:

— Bem faz Domingos, foge dos maus escravos para não perder a carta de forraria.

— O nome dele está sempre na boca da senhora; exclamou Fidélis, chasqueando.

Todos começaram a comer com o sadio apetite de homens de trabalho. Alguns juntavam à refeição da casa as iguarias que prepararam de véspera, e as ofereciam fraternalmente aos outros.

— Quer um pedaço deste gambá ensopado, tia Balbina?

Peregrino, o parceiro que fez a pergunta, acompanhou com os olhos a interrogação, e exclamou em seguimento a esta:

— Ué, o que é que tia Balbina tem, gente?

Todos olharam para a feiticeira. Balbina, pousado o queixo na mão e apoiado o cotovelo no joelho, olhava distraída para o céu. A sua ração estava intacta diante de si.

Sabiam todos que semelhante posição correspondia sempre às grandes dores ou preocupações da cabinda, e por isso perguntaram em coro:

— O que é que tem, tia Balbina?

— Não é nada, crianças. Estou imaginando na minha vida.

— Qual; vosmecê tem alguma cousa.

— Para não falar mentira, estava imaginando outra cousa. Carolina está muito doente ...

— É verdade, parece cousa posta; que moléstia tão ruim! disse Fidélis.

— É verdade, respondeu o coro.

— Carolina está para morrer porque está com um filho de Manuel João, que anda agora às voltas com a filha do agregado. A crioula tem sangue de cobra, ficou tinindo quando soube. Depois lembrou que o filho há de ser escravo; nasce para o chicote e para o eito. Não quer mais que o filho abra os olhos, coitada! Ela pode ir-se embora também, se Balbina não for salvar a crioula de seu senhor.

— Antes morra, se há de ficar boa para sofrer.

— Que tem que ela sofra? Nós vamos sofrer, e ela é nossa parceira. O agregado vai ser feitor; senhor disse, Fidélis ouviu. Homem mau, seu Chico, homem mau aquele! Enche a boca de negro cativo; hoje ele não é ainda feitor, mas diz: — vou falar com o meu compadre para mandar meter o chicote no negro. A feitoria vai para seu Chico, ou Manuel João fica mais bravo para nós. De hoje em diante nenhum me passa daqui (a preta assinalava com o dedo o pescoço); tão bom como tão bom. Fidélis podia bem livrar a gente; senhor fala com ele. Era dizer: Manuel João não está mais na roça uma hora inteira; Chico Benedito furta as roças de senhor. O macota bufava, e a gente estava livre.

— Isto é que é falar certo, exclamou Peregrino, um dos pretos do grupo.

— É verdade.

— Eu sei lá; vocês depois dizem a senhor que Fidélis é que não gosta dos dois.

— Nós? ...

— Quem é que vai dizer aí? interveio tia Balbina; céu está vendo nós; onde vai quem disser? O gaio quando canta é vida para o que faz bem e morte para o que faz mal; tia Balbina entende o canto do galo. Onde vai Fidélis? Vai salvar os escravos do macota; é bem para todos. Onde vai quem falar contra Fidélis? Vai perder seus parceiros; é mal para todos.

Balbina adivinha; o céu vê; Zambi castiga. E está muito direito.

— Pois, diabos me levem! no primeiro jeito eu arrumo a cama para os dois.

Teve toda a razão a dissimulada Balbina quando considerou gravíssima a enfermidade de Carolina.

Atentando contra a vida do filho, conforme o expediente aconselhado pela feiticeira, pôs em risco a própria vida.

Dir-se-ia a revolta da natureza indignada contra a degeneração dos sentimentos da mulher, que deu de mão aos sonhos maternais, mundos róseos e brilhantes, onde branqueiam asas de arcanjos através de irradiações de amor.

A inocência condenada parecia pedir à dor as mais aguçadas puas para com elas broquear asselvajadamente o organismo enfraquecido da crioula.

Não havia abonançar-lhe o sofrimento: o dia inteiro passou-o ela debatendo-se em ânsias dolorosas bem semelhantes às da agonia derradeira.

Os remédios, como se fossem uma injeção cáustica, longe de acalmarem-lhe, exacerbavam-lhe as dores.

Era o cadáver da vingança galvanizado por padecimentos horríveis, ou melhor, pela eletricidade da dor. Ora quedava inerte, quase álgida, com a respiração imperceptível, inundada em suor viscoso; ora levantava-se sobre os punhos, com a cabeça pendente, o corpo descrevendo sobre o leito um ângulo obtuso, e, arquejante, prorrompia em gemidos agudos, compungentes.

Era o prenúncio do ataque assustador, medonho, com as contorções da serpente, e as unhadas do jaguar; com o ganido dos cães leprosos, e o ranger de dentes dos condenados eternos.

Qual fosse a moléstia ninguém estava habilitado a diagnosticar; inclinavam-se todos a uma idéia — o feitiço.

— Carolina amanheceu boa, diziam; alegre, como sempre andou, febres não eram, porque não teve os calafrios das sezões, andaço na localidade; não tinha nenhuma chaga; não era pleuris porque não se queixava de dor no peito; logo era feitiço.

Todos involuntariamente lembraram-se da tia Balbina, sem todavia atribuir-lhe maus intentos para com a crioula, que nunca foi por ela maltratada; mas ao contrário sempre querida.

— Talvez a Balbina conheça, dizia a dona da casa; o melhor é mandá-la vir, não é, Motta?

Depois de relutar, não só quanto às gerais manifestações sobre a moléstia, mas ainda quanto à vinda da Balbina, Motta Coqueiro cedeu afinal, e a feiticeira trancou-se sozinha no quarto com a doente.

Sentada à borda do leito, esperou tranqüilamente a ocasião oportuna para falar-lhe.

Ninguém que a visse aí poderia suspeitar que a feiticeira contemplava a sua obra sombria de vingança; estava serena, nada denunciava sequer um traço de remorso.

Quando lhe pareceu chegado o momento de falar, começou:

— Carolina vai sair daqui e vai contar a sua senhora porque é que a crioula está doente. Mas não diz que tomou remédio da tia Balbina; conta outra cousa.

A crioula fez com a cabeça um sinal afirmativo.

— Carolina está sofrendo, mas o pai do seu filho há de sofrer também. Tia Balbina há de vingar a crioula.

A feiticeira saiu e revelou à senhora a moléstia de Carolina: era um aborto.

Infelizmente este conhecimento nada aproveitou à tranqüilidade da família; malograram-se todas as esperanças de melhoras, e alta noite creram todos que a doente não amanheceria.

Resolveu-se então que se Carolina não morresse nessa noite, logo pela manhã a senhora acompanhá-la-ia para a cidade a fim de serem prestados os socorros médicos à crioula.

Esta inopinada mudança do sítio seria entretanto definitiva. O corte da madeira estava quase concluído e brevemente Motta Coqueiro podia deixar de residir aí. A senhora, portanto, não precisava mais de voltar para contrariar-se em residir em um lugar, com o qual antipatizava.

No dia seguinte efetuou-se a mudança, e uma canoa, vigorosamente remada por braços robustos, voava em direção a Campos.

A casa grande caiu na mais sombria tristeza; dir-se-ia que a torturavam saudades amargas ao recordar-se dos dias em que repercutiam sonoras as alegrias da família.

Alguém no entanto contrastava com esta tristeza; era Manuel João, que aplaudia-se por ter agora ocasião de vigiar de perto os passos do seu amo.

Ficando só, Motta Coqueiro passava as poucas horas de lazer na casa do compadre, mas, com grande espanto de Manuel João, nunca penetrava no interior do casarão. Assentava-se à porta ou conservava-se a cavalo enquanto entretinha-se a narrar cousas banais e ao paladar dos ouvintes.

Um dia, porém, o feitor teve ocasião de recordar-se do que lhe dissera Carolina no dia em que cortaram as relações.

— Compadre, disse Motta Coqueiro; eu vou começar amanhã o carreamento da madeira e precisava que você e seu filho ajudassem-me.

— Eu sei, compadre; mas, eu já estou velho e o Juca para que diabo serve?

— Então vocês não prestam nem para amarrar uma balsa? Saiba, comadre, a qualidade dos homens que tem.

A família riu-se muito e Motta Coqueiro continuou:

— E eu que tive tenções de chamar este meu amigo para feitor; estava bem arranjado!

— Mas isto era outra coisa e se o compadre quiser...

— Veremos; por agora quero somente que vocês se ocupem de embalsar a madeira.

A larga faca de Manuel João luziu fora da bainha; o despeito esbraseava-lhe as faculdades revoltas; não pensava, não discernia; o cérebro exalava-lhe espessas labaredas de ódio e de cólera.

Surgindo dentre uma espessa moita de pexiriqueiras, colocada perto da parede do casarão e que lhe servia de escondrijo, o feitor seguiu pé ante pé, e teria realizado os seus fins se não se desse uma circunstância feliz.

Motta Coqueiro que se conservara a cavalo, enquanto conversava com o compadre, ao dizer-lhe as últimas palavras, tinha-se feito ao largo.

O feitor, para atacá-lo, devia investir de frente; mas era bastante cobarde para não tentar semelhante cometimento.

Indignado contra si próprio e contra a falsidade que sempre defendia o seu rival imaginário, o feitor tomou o caminho da venda do Viana.

Ao chegar, o vendeiro que descobrira nas feições descompostas o tumultuar dos sentimentos do amigo, perguntou-lhe sobressaltado o que tinha havido no sitio.

— O diabo, um inferno, mil raios me partam; maldita a hora em que eu entrei para semelhante casa!

— Mas o que foi, homem, desembuche!

— Quer saber, seu Viana, eu estou aqui e estou na cadeia; não aturo desaforos; por onde anda o diabo do Sebastião?

— Espera um pouco; oh! com os diabos, você parece maluco; o Sebastião não há de tardar por aí; acomode-se

O vendeiro, hipócrita como todo um mosteiro e astuto como cinqüenta raposas; percebeu logo que a situação do triunvirato era perigosa.

Desde o domingo em que pela última vez esteve na casa de Francisco Benedito, refletindo com madureza, resolveu impedir com todas as forças o violeiro e o feitor e conservar-se em uma distância, que o preservasse de ser tido como cúmplice em algum ato reprovado dos dois.

Sabia ele já a que fora o violeiro quando os deixou no casarão; sabia mais que Sebastião ia todos os dias ao sítio e aí encontrava-se com Chiquinha, ora no porto, ora na baixada.

Conhecendo de perto o caráter de Motta Coqueiro nas suas asperezas e nas suas delicadezas, evitava o seu desagrado; era a isto levado por uma questão moral mas principalmente por uma questão econômica.

Supina imprudência seria irritá-lo e indispô-lo contra si, quando por outro lado o Chico Benedito nada valia, nem apresentava dificuldades sérias.

O vendeiro pensando em Antonica via simplesmente um breve afastamento; as circunstâncias aplainariam as dificuldades, e o borrador e as prateleiras da vendola dariam a última demão ao problema.

As palavras de Manuel João impressionaram entretanto a alma do calculista, fria como o chumbo oxidado dos pesos da sua balança enferrujada.

Tomando um copo e enchendo-o de vinho, Viana caminhou para Manuel João, e pondo-lhe um braço sobre o ombro, enquanto com o outro apresentava-lhe o copo, resmungou:

— Então com que você quer nos deitar a perder, seu homem; isto não é por força que vai, é preciso jeito. Vá lá o codório e depois vamos à fala.

— Beba você primeiro, seu Viana.

— Não senhor; venha de lá.

Manuel João bebeu, e a convite do vendeiro sentou-se com ele no balcão.

— Então com que o cabrinha está com o diabo na pele? quer pôr o mundo abaixo? interrogou Viana, que tirava de sobre o pavilhão da orelha um cigarro e levava a ele o isqueiro.

— Você está com caçoada, seu Viana, e eu hoje não estou para graça. Falemos sério, o Sebastião vem aqui, ou não vem? Se ele não vem, eu vou à casa dele.

— É verdade que o demo está tardando, respondeu Viana já impressionado; o melhor é irmos à casa do bicho. Espera, eu vou buscar os remos.

— Vamos mesmo, porque eu sou capaz de fazer uma asneira.

Passados alguns minutos, Viana fechava a porta da vendola e os dois com os remos ao ombro caminhavam em direção ao porto.

Era a hora serena do crepúsculo, hora em que as sombras invadem o céu e as consciências, em que surgem as estrelas e os salteadores dos seus escondrijos; em que o firmamento começa a inundar-se de luar; e os viajantes a mergulharem-se no temor das emboscadas; em que a poesia desdobra-se em quimeras e o crime espraia-se em torpezas.

Manuel João entrara pela pequena canoa que estava no porto, e Viana já a havia desamarrado de uma estaca, quando ouviram o prolongado oh! com que os canoeiros anunciam a sua aproximação de alguma casa conhecida.

— Ouve; é ele, disseram os dois ao mesmo tempo.

Passado algum tempo, toda a confusão que porventura pudesse haver desapareceu. A voz sonora e agradável do violeiro, repassada da suave melancolia das músicas sertanejas, ergueu estas estrofes prediletas:

Quando chega a primavera
Abre-se a árvore em flores;
Quando chega a mocidade
Veste-se o peito de amores.

Pois que amar é sorte nossa
Quero pagar meu quinhão;
Não dou ouro à minha bela
Mas lhe entrego um coração.

A proa da canoa, bordada pelas ondas espumantes que abria e levantava no rio, apareceu na curva da corrente, e ouviu-se o estalo forte da pá do remo batendo em cheio na superfície das águas.

— Olé, bradou o violeiro; o frade saiu hoje do seu convento, vem dar notícia do batizado.

— Qual, respondeu o vendeiro; está bravo como um cão danado.

Manuel João nada disse.

O canoeiro desembarcou, assoviando, e foi reunir-se aos dois.

— Então que novidades há no beco, seu Manuel João; melhor cara tenha o dia de amanhã.

— Sabe que mais, Sebastião; você veja o que faz, respondeu o feitor; eu já não posso mais; eu estouro; certo?

— Credo, isto agora é que não é do trato. Ó seu Viana; este bicho está certo?

— Não é graça, não; aqui anda cousa; vamos ao caso, Manuel João.

O vendeiro via talvez pelos ares a sua vendola e queria o mais brevemente possível saber o que devia fazer.

Foi prontamente satisfeito, porque o feitor começou a narrar a conversa que ouvira aos dois compadres, e concluiu dizendo:

— Olhe, seu Sebastião, eu saio dali, mas vou para a cadeia, porque eu tiro a vida ao patife do capitão.

Os dois guardaram silêncio durante a narração; quando o feitor concluiu, Sebastião tomou a palavra.

— Você não me faça tolice, seu Manuel João; que tem você com o Coqueiro? se ele faz roda à pequena; seja você fino. Eu cá não serei logrado; faça o que eu fiz.

— Mas o que é que você fez? deixe-se de rodeios...

O violeiro chegou-se para mais perto do feitor e segredou-lhe algumas palavras; depois, levantando a voz, disse sorrindo:

— Olha, o Viana não se amofina também; mais dia, menos dia... Você anda por aí como um palerma. Veja que não vá morrer de fome se sair da casa do Coqueiro.

Manuel João tinha os olhos em fogo, e as narinas infladas; parecia alucinado.

— Seu Viana, interrogou ele com esforço depois de uma grande pausa, é verdade o que disse Sebastião? você é capaz?

— Ora, tire o cavalo da chuva, respondeu o vendeiro, você ou é um tolo ou é um brejeiro de conta. Olhem que santinho!

O desgraçado feitor nada respondeu; talvez tivesse vergonha das palavras que devia proferir.

Até então nada podia provar que ele aderisse ao segredo soprado aos seus ouvidos pelo violeiro, tinha até nos olhos uma onda de lágrimas, as derradeiras lágrimas puras que ele choraria em sua vida, se após elas não viessem as do arrependimento.

Mas ao retirar-se compreendia-se que a sua cólera tinha asserenado e que se ele não levava uma resolução, afagava ao menos uma esperança.

Quando Manuel João distanciou-se, o vendeiro disse para o violeiro:

— Aquele demônio é bem capaz de perder-nos.

— Não pense nisto, respondeu Sebastião, aquilo é um covarde.