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Motta Coqueiro/IX

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O respeito que, pela modéstia, sobriedade de palavras, e madureza de ânimo, o fazendeiro conseguiu sempre inspirar à sua esposa, obviou milagrosamente as sérias dificuldades da situação embaraçosa.

O coração da mulher é, como pensava o poeta inglês, um belo defeito da natureza. Divide-o em duas partes distintas e contraditórias uma separação fragílima, feita de apreensões e suscetibilidades: em cima azula-se um firmamento, embaixo enegrece-se um abismo.

Um abalo é bastante para ocasionar uma explosão de trevas ou um transbordamento de luz; as temeridades do ciúme ou os sacrifícios do amor.

Há uma só exceção; é a que encerra os coraç5es apáticos e indiferentes, verdadeiras monstruosidades.

A Sra. D. Maria não era excepcional; amava com a boa vontade de um espírito que encontrou no mundo um outro para completá-lo nas alegrias, assim como nas dores, e por isso mesmo deixava-se facilmente avassalar pelo pânico de perdê-lo.

A presença de Antonica revivera-lhe as angústias que lhe tinha causado a carta anônima forgicada pelo violeiro, graças à perícia de Licério, o rábula venal.

Demonstrava-se claramente o amor da filha do agregado para Motta Coqueiro, e embora estivesse absolutamente convencida da nobreza de caráter deste, todavia arreceou-se de que de futuro não se alevantassem mais alto do que a reflexão os vôos da sensibilidade e da compaixão.

Nem sempre o amor é filho da exaltação dos sentidos, multas vezes nasce da piedade, e em todo o caso por mais platônico, por mais alheio aos anelos sensuais, o afeto votado pelo fazendeiro à Antonica era uma espoliação ao consórcio.

Convinha, portanto, desarraigá-lo, destrui-lo como se faz com as ervas e os animais daninhos.

A resposta de Motta Coqueiro proferida com um acento simples, mas solene de decisão, impedia à Sra. D. Maria tomar qualquer expediente, que não fosse o da indiferença ou o da gratidão.

Escolheu o primeiro caminho, e a amante retirou-se acompanhada por Carlos, enquanto que por sua vez o fazendeiro e a sua esposa, acompanhados pelos escravos, seguiram para o sítio.

O ferimento capital não apresentava gravidade, e o sangue pôde ser facilmente estancado, à vista do que Motta Coqueiro manteve-se na resolução de tomar por única desforra a retirada de Francisco Benedito de suas terras.

Sua mulher, porém, não se resignava, nem podia satisfazer-se com tão pouco; incandeciam-se-lhe à proporção que passavam as horas os seus brios de fazendeira respeitada, e senhora de alta sociedade.

Só por uma lição estrondosa, entendia ela, o seu marido poderia de novo entrar nas salas de seus amigos com a cabeça erguida.

— O que tenciona o senhor fazer a esse ingrato e ao seu cúmplice?

— Entregá-lo ao desprezo, respondeu fleumaticamente o fazendeiro; são tão miseráveis que nem vale a pena persegui-los.

— E o que havemos de dizer aos nossos amigos, quando se espalhar o boato de que o senhor foi espancado por um agregado, que assim vingou a sedução de uma filha?

— Direi que é uma calúnia tão mal engenhada que basta uma simples consideração para confundi-la: o homem que foi companheiro do suposto pai ofendido na desafronta imaginária de sua honra raptou-lhe uma das filhas.

— A calúnia será de preferência acreditada porque a agressão realizou-se, e não tardará que todos venham a saber que é real o amor de uma das filhas do agregado pelo senhor.

— Paciência; eu não posso retribuir a violência com a violência.

— Há um meio, é punir o crime; para isso é que existe a lei.

O diálogo terminou pelo silêncio de Motta Coqueiro.

As considerações da esposa tinham uma base irrefutável e não podiam ser abandonadas; por outro lado o pedido de Antonica, no momento em que expunha a sua reputação de mulher honesta e a própria vida, — porque a brutalidade de seu pai não poupá-la-ia caso surpreendesse-a em meio do ato meritório, — fazia-o vacilar.

Um expediente apresentou-se; mover o processo contra o agregado e deixá-lo mais tarde, quando a primeira impressão desaparecesse, correr à revelia.

Harmonizados desta sorte o coração e o dever, resolveu notificar o acontecimento ao Sr. Oliveira, subdelegado do lugar, e pediu a sua presença para ser cumprida a lei.

Estava, pois, satisfeita a vontade da esposa.

Tranqüilizada por esta resolução de seu marido, a Sra. D. Maria teve um verdadeiro desafogo ao saber de uma outra nova.

Ao chegar em casa, a indignada consorte despachara imediatamente os escravos Fidélis, Peregrino e Alexandre, ordenando-lhes que percorressem as matas vizinhas a fim de descobrir o esconderijo dos criminosos e prendê-los.

— A gente podia fazer isto, minha senhora, se eles não se alevantassem contra nós; como há de acontecer, observou Fidélis.

— E vocês não têm mãos? Se eles resistirem tragam-nos à força, tragam-nos seja quando for, estejam aonde estiverem.

Fidélis saiu satisfeito; a feitoria estava-lhe definitivamente entregue; não havia mais possibilidade de passar às mãos de Francisco Benedito.

Além disso facilitava-se-lhe uma oportunidade para vingar-se dos insultos do agregado, mas, apesar da boa vontade e zeloso esforço para capturar os fugitivos, o feitor não regozijou-se com a realização dos seus desejos.

Os criminosos tinham-se prevenido contra esta conseqüência necessária do seu ato; a essa hora descansavam tranqüilamente a grande distância, e completamente fora do alcance de qualquer vingança.

Quase ao anoitecer os escravos vieram participar à senhora o malogro das suas pesquisas, mau grado a solícita diligência que tinham feito para o êxito da empresa.

— Está bom, respondeu-lhes a Sra. D. Maria; eles hão de aparecer em qualquer tempo.

Fidélis retirou-se duplamente contrariado pelo sangue frio de sua senhora e pela sua falta de perícia no desempenho da comissão.

Uma outra pessoa da casa mostrava-se profundamente sentida pelo acontecimento; era a tia Balbina.

Os seus soluços e imprecações conseguiram captar novamente a simpatia da Sra. D. Maria e desde aquela hora abriram-se-lhe as portas da casa grande.

Fatal imprevidência!

A dor de Balbina encontrou-se com a decepção de Fidélis, sinceramente empenhado em desafrontar Motta Coqueiro da agressão recebida!

— Ah! tia Balbina, disse Fidélis, eu antes queria ser surrado do que não achar o diabo do agregado; queria quebrar-lhe os ossos daquele desalmado.

— O feitor deve estar sempre do lado dos brancos, respondeu a feiticeira. O grito vai sempre para o lado que segue o vento. Fidélis já não é como seus parceiros. Os sinais do castigo estão nas costas destes, não importa; o sol queima a sambambaia e mata as pucaçus, o eito sobe sempre; o escravo sua a tirar fora a camisa, não importa; o feitor manda seguir sempre para diante porque é o lucro do seu senhor. Fidélís já não é um parceiro, é um senhor-moço: quem ofende-lhe ofende ao senhor.

— Por que vosmecê diz isto, tia Balbina; eu tenho sido mau para os escravos do sítio?!...

— Não saiu isto da boca de Balbina, nem da de seus parceiros: todos querem bem ao feitor, mas nem por isso esqueceram o rigor do cativeiro. Fídélis sente a dor de seu senhor; Balbina lembrou-se de uma dor sua. Um dia, ainda caía neblina e o céu tinha a estrela grande da madrugada, e Balbina foi amarrada no cabeçalho do carro. O frio feria como espinhos de jurubeba o corpo da escrava, e o senhor de pé na porta, embrulhado no seu capote, disse com má voz: surrem-me esta negra. Os parceiros de Balbina foram dizer que era ela a que gerava a doença nos escravos e nos animais do sítio. Na senzala da feiticeira estavam o Deus que Balbina conheceu na sua terra, e as ervas com que a escrava tinha amizade quando era criança e livre. Bastou para se ver aí a feitiçaria que mata.

Os chicotes bateram sem dó nas costas da feiticeira, como as varas fortes sobre as vagens maduras do feijoal. O sangue já corria, mas o castigo não parava. O filho dos brancos, criado por Balbina, o filho dos brancos querido por Balbina como seu, estava amarelo e magro; o doutor cansou de tratar, não sabia a moléstia. É feitiço da escrava, diziam todos. O pai queria vingar o seu filho e não teve dó de Balbina, que não chorava porque tinha ódio só, e não sentia que a iam matando.

Quando o castigo acabou a negra ainda ferida foi para o eito, e lá não houve ninguém que tivesse pena dela; todos fugiam da feiticeira, como se foge de cobra.

— Hoje o senhor de Balbina apanhou das mãos do agregado, e mulher e filhos e escravos, todos choram e Fidélis antes queria ser surrado, do que voltar para a casa de seu senhor sem o ter vingado.

— Para que há de guardar este ódio, tia Balbina? Nós não encontraremos melhor senhor.

— Balbina não tem ódio, chorou também a desgraça, mas lembra que ninguém chorou por ela. Hoje ninguém diz que é o castigo de Deus pela maldade com a inocente; paciência.

— Ah! se o senhor soubesse disto, tia Balbina; o que vosmecê não sofreria.

O feitor afastou-se lentamente, mas quando ia a alguma distância, foi detido pela voz da feiticeira:

— O parceiro de Balbina vai levar aos brancos o que ouviu; mas Deus está vendo que Balbina não quer o mal deles.

— Não é meu costume, tia Balbina, respondeu nobremente Fidélis; eu também sou escravo.

— Jura pela morte de tua mãe, que sempre foi escrava, que sofreu como Balbina, e não teve quem a chorasse quando sofria.

— Para que me lembra minha mãe, tia Balbina; o escravo não tem mãe. Juro, juro sim.

— Balbina quer que se faça o castigo do agregado, inimigo dos escravos; mas não quer que Fidélis se esqueça de que é escravo. Quem mandou ao feitor prender o agregado?

— A senhora mandou que o trouxéssemos â força, e eu havia de trazê-lo ainda que fosse morto.

— Sim, sim, meu parceiro; acudiu prontamente a feiticeira. A senhora disse; cumpre, hoje, amanhã, sempre. Será menos um branco; acrescentou num murmúrio, e a perdição dos outros.

O açodamento com que a tia Balbina recebeu a revelação do feitor sobressaltou-o profundamente; o que haveria descoberto a escrava nessa ordem tão simples e tão natural?

Depois de separarem-se, ainda Fidélis pensava no tom especial com que a tia Balbina lhe falara por último, e, desconfiado, fez tenção de comunicar a sua senhora o que se passara entre eles.

— Quebro o juramento, mas não importa; descubro a malvadeza que essa feiticeira esconde.

Uma hábil manobra da tia Balbina inutilizou o plano de Fidélis.

Ao sair da revista, a feiticeira acercou-se do feitor e segundando as palavras com as lágrimas, disse-lhe dolosamente:

— Balbina já se arrependeu de ter falado do senhor, porque ele é bom. Carlos contou que o branco vai perdoar o outro que o esperou para matar. Balbina perdeu o ódio, porque tem coração, e pede perdão ao seu parceiro.

— Foi Deus quem lhe falou, tia Balbina, foi Deus; respondeu Fidélis; era muita maldade.

No dia seguinte duas pessoas entraram na casa grande extraordinariamente comovidas. Uma era a tia Balbina a quem foi pela Sra. D. Maria confiada a lavagem da roupa dos escravos do sítio, e dado um quarto na casa grande, honra que só recebiam as boas escravas.

A outra era o subdelegado Oliveira, que a todo o galope atravessou o campo do sítio e, apeando-se precipitadamente â porta da casa grande, apertou com ambas as mãos as da Sra. D. Maria, exclamando todo comovido:

— E incrível, minha senhora; é incrível que possa haver sobre a terra tanta ingratidão.

As melhores e mais tocantes exclamações guardou-as prudente e artisticamente o Sr. Oliveira para o efeito cênico, e deslumbrante quadro final do primeiro ato da tragédia da intriga.

Introduzido na sala de visitas, acedeu sem resistência ao convite para passar aos aposentos do fazendeiro.

Uma palidez a propósito atenuava o colorido sadio do rosto do subdelegado, e um cerrar de mios, assim como um medido acento interjetivo mascaravam-lhe as intenções, â semelhança de um rótulo esmerado à mercadoria falsificada.

— Ninguém poderia pensar ao menos em que tal acontecimento fosse a paga de tantos favores, exclamou ele. Esse miserável que em parte alguma obteria sequer passagem pelos terrenos de um homem sério e contudo conseguiu terras, casa, e a amizade de V. S. Que alma, que torpe caráter o do tal Francisco Benedito! Faça-me o favor.

— Eu lastimo-o, não condeno-o absolutamente, respondeu Motta Coqueiro; é extremamente ignorante e além disso embriaga-se. não é perdê-lo que tenho em vista mas simplesmente intimidá-lo.

— Como?! Perdoe-me V. S. há de cumprir-se a lei. Vá lá que se tenha piedade para com o velho desmiolado, mas com o seu cúmplice, é impossível. Qualquer brandura com ele é nada mais, nada menos do que soltar uma fera em todo esse Macabu. Se ele sem proteção faz destas, o que não fará se tiver a justiça por si.

— E o que eu penso, Sr. Oliveira, interveio a Sra. D. Maria. Parece fábula o que esses homens têm praticado conosco. V. S., que é autoridade, parece-me que deve fazer cumprir a lei, apesar da bondade do Sr. Motta.

— Conte comigo, minha senhora; apesar de separado do senhor seu marido em política, tributo respeito ao seu honrado caráter.

A conversa, desviada para assunto diverso do que dava motivo a familiar e expansiva visita do subdelegado, voltou por direção deste ao ponto primitivo.

— V. S. fará o favor de convidar as suas testemunhas para a audiência na minha casa. Logo que se pronunciem os réus, eu fá-los-ei prender; não me escapara-o, eu lho juro.

— Eis uma dificuldade que não posso remover, ponderou fleumaticamente o fazendeiro; a emboscada foi feita em lugar ermo; não houve testemunhas.

— Ora, meu amigo, acudiu o Sr. Oliveira, V. S. não tem razão para desanimar por tão pouco. A cousa mais simples deste mundo é arranjar testemunhas. Deus defenda aquele a quem se queira perder; com trabalho diminuto conseguem-se testemunhas de vista para acusar um paralítico pela autoria de um assassinato a vinte ou trinta léguas de distância.

— Mas há para mim um embaraço grandíssimo; ainda que o fato seja verdadeiro, as testemunhas serão falsas, e desse meio creio que nenhum homem de bem se serviria.

— E um modo de pensar que teria como conseqüência a morte de todos os homens de bem às mãos da canalha. V. S. parece-me exagerar muito a noção da moralidade da justiça.

— Pode ser, mas não creio que V. S. tenha razão. Por este sistema de distribuir a justiça, poderemos chegar ao lado oposto: obter testemunhas venais e por meio delas condenar inocentes.

— Não contesto absolutamente; nada é perfeito neste mundo, mas declaro-lhe francamente que estou convencido de que sobre cem indivíduos acusados um, quando muito, é inocente.

— Será, mas não penso que a sociedade tenha o direito de punir a quem não cometeu delito, pelo irrazoável pretexto em idênticas circunstâncias. Assim nenhum de nós estaria seguro em sua casa. Por minha parte afianço-lhe desde já que se não houver testemunhas contra o compadre, eu desistirei do processo.

— Pois olhe; eu não sou suspeito, dou-me com o Chico Benedito e Sebastião, mas não vacilaria jurar que foram eles. E quer V. S. um conselho? Entregue a causa ao Licério. não se há de arrepender.

— Eu concordo e aceito o conselho, disse a Sra. D. Maria.

Depois de refletir por algum tempo, o fazendeiro decidiu-se também a constituir Licério seu advogado, mas a verdade é que ao comunicar a sua resolução pairava-lhe nos lábios o vago sorriso da desconfiança.

Retirando-se o Sr. Oliveira, Motta Coqueiro perguntou distraidamente a sua mulher:

— Crê na sinceridade do subdelegado?

— E por que não; eu não sou desconfiada como o senhor, e demais quer ele queira quer não eu saberei desafrontar-me.

— Pode ser que você tenha razão, mas eu tenho até repugnância do tal homem. O meu parecer era buscar com todas as forças obter a mudança do compadre.

— Isto, quer ele queira, quer não, há de fazer-se, mas pagará também o insulto.

Alguns dias depois a causa era confiada a Licério com plenos poderes, e Motta Coqueiro e sua família ausentavam-se do sítio com um protesto da Sra. D. Maria.

— Eu não voltarei aqui antes que o agregado e sua família se mudem.

Em vão esperou-se durante o primeiro mês, o segundo e os que se lhe seguiram, uma solução legal para os graves fatos ocorridos no sítio; nada se resolvera e para cúmulo de males as notícias que de lá ecoavam na chácara de Campos denunciavam novas e perigosíssimas provocações do agregado.

Entre Fidélis e Juca Benedito dera-se outra cena de violência, e tal foi a exaltação de ânimo e veemência de parte a parte que o feitor correu ao encalce do filho do agregado até próximo da casa nova.

Tais fatos eram meras conseqüências da animosidade do Sr. Oliveira para com o fazendeiro. Apadrinhava-os o pensamento político de provar praticamente a nulidade do chefe oposicionista, e assim arredar-lhe a popularidade.

A trama para chegar a tais fins foi de simplíssima urdidura; uns pequenos abusos de autoridade. Depois de ressalvar a sua imparcialidade, pondo um simulacro de sincero interesse ao baixo serviço de mesquinha vingança às derrotas políticas, o subdelegado, saindo da casa de Motta Coqueiro, dirigiu-se a Licério e pô-lo ao corrente dos acontecimentos.

— A alma do rábula pensando no lucro líquido que lhe viria do pleito esqueceu-se das conveniências políticas, bradou num excesso de entusiasmo.

— E eu que antipatizava com o Coqueiro! Oh! ele pode descansar, havemos de esmagá-lo; há de pagar caro.

— Não há melhor ocasião para reduzi-lo a nada, observou o subdelegado; os votantes verão que nós sabemos vencer.

— Está claro; perder dois votos não é coisa de grande monta. Dois valdevinos, dois biltres, o peseta do filho, grande coisa, mando recrutar o malandro, que tem boas costas para a farda, e meto o bêbado do pai e o tal Sebastião na cadeia.

— Escuso de estar com estas cousas, porque estamos sós, e não precisamos de enganar-nos.

— Sim, não precisamos.

— Arranje os cobres do Coqueiro, que é o principal, e deixe-o dar os paus.

— Mas...

— Eu me responsabilizo pelo que sobrevier; tenho certeza de que ele não atinará com a cousa.

— Porém... eu fui incumbido de castigar os criminosos e tenho meios.

— E eu lhe digo que não tem, que não deve ter.

— Ah! isto é outro falar, mas assim à primeira vista.

— Você parece que está treslendo; proteger e fazer justiça a um adversário?!

— Então V. S. entende que...

— Que se lhe deve negar água e fogo, eis aí. É o que se faz em política.

— Está bem, está bem; eu fico às ordens de V. S.

— Adeus, eu vou mandar asserenar o coitado do Chico; se eu estivesse no seu lugar fazia o mesmo. Os negócios de família são muito sérios.

Família! Esta palavra por si só impelia o ardiloso Licério aos maiores comprometimentos, e por si só bastava para dissipar-lhe os escrúpulos.

O rábula era uma ótima estofa para a famigerada comunidade religiosa de execranda memória por um lado, de sublime e civilizadora recordação por outro, e que elevou como dogma o celebérrimo princípio: o fim justifica os meios.

Em falta de mais largos horizontes, de uma corte para intrigar, de uma herança pingue a reverter pelo bem da companhia em bem da humanidade, de uma conspiração de magno alcance a dirigir, o bom e prazenteiro Licério atinha-se aos enganos nas somas das dívidas dos fregueses e aos bandeamentos largamente remunerados nas causas que lhe eram confiadas.

Resignado sabiamente ao seu destino entregava-se com a melhor vontade e humor à procriação do vinho e ao delongar dos pleitos. Tudo por amor da família.

Ora, justamente este amor foi invocado pelo Sr. Oliveira em defesa de Francisco Benedito, restava, portanto, ao amoroso rábula verificar até onde era levado pelo agregado o mais nobre, o mais santo dos sentimentos humanos.

Uma vez recebida a procuração plenária do fazendeiro, Licério foi entender-se com Francisco Benedito.

Munira-se da suas mais francas e prolongadas risadas e igualmente da mais aturada atenção, para bem observar as provas práticas da afeição paternal do velho.

Descobriu em breve uma prova. Um belo mandiocal estendia-se viçoso e atraente por uma grande extensão. Fazendo a redução dos alqueires de farinha em unidades morais, viu claramente que Francisco Benedito possuía um ótimo coeficiente para os seus deveres no lar doméstico, tanto mais que o trabalho de Licério para com essa expressão era simplesmente reduzir termos semelhantes do mesmo sinal. Mais amor de Motta Coqueiro, mais amor do agregado.

Cônscio de que o subdelegado não o havia iludido quando converteu em questão de honra o crime de Francisco Benedito, o cauto e inteligente rábula abriu-se desassombradamente.

— Sabe a que venho aqui, seu Chico?

— Para honrar a casa do pobre, meu senhor; e dar-nos gosto.

— Sim e não. Um negócio muito sério é principalmente a razão da minha visita.

— Faz favor de dizer qual é, eu já adivinho que vem falar das eleições.

— Não, venho falar das cacetadas no seu compadre.

— Mas não fui eu; e já o subdelegado resolveu o negócio.

— Não senhor; ele não pode resolver, há processo e está provado com testemunhas como você e o Sebastião disseram que iam fazer espera ao capitão.

— Ninguém pode dizer isto.

— Ouça o Manuel João...

— Aquilo é um mentiroso, que nem me põe os pés aqui.

— O Lúcio Ribeiro...

— Ora, este jura por dinheiro.

— O Faustino, todos ouviram.

— É uma mentira: só quem podia dizer era o Sebastião, mas por este juro.

— Mas então o Sebastião sabe como você acaba de dizer e portanto eu sou mais uma testemunha. Deixemos de partes: ou você entra numa conciliação ou eu faço andar o processo. Escolha.

— Diabos leve a hora em que entrei neste lugar; bradou furioso o agregado; o que é que eu hei de fazer para conciliar?

— Por exemplo dar-me este mandiocal ou uns cinqüenta mil réis; como lhe for mais acomodado; eu não lhe quero fazer mal.

— Mas isto é roubar o meu suor; não quero.

— Então vai para cadeia; passa lá uns cinco anos e come de lá a farinha. Passe muito bem; talvez quando se arrepender seja tarde.

Licério dirigiu-se imediatamente para a porta, mas ao transpor o limiar, parou. Queria vibrar o derradeiro golpe.

— Ouça, disse ele, cesteiro que faz um cesto faz um cento; veja se vem dar-me pauladas também.

Depois de coçar desesperadamente a cabeça, o agregado chamou Licério para dentro e disse-lhe:

— Enfim, com seiscentos diabos, vão-se os anéis e fiquem-se os dedos. Eu quero mostrar àquele traste que não se machuca os outros assim sem mais nem menos. Perco dinheiro mas dou uma lição. Está fechado o negócio com o mandiocal. Serve?

— Ora até que afinal, exclamou Licério esfregando as mios; estava a parecer que tinha perdido o juízo. Está feito, está feito, só para conciliá-los eu não ganho nada com isso, o que faço é perder o meu tempo enquanto ocupo-me com esse negócio. Posso então mandar arrancar o mandiocal por minha conta?

— Quando vosmecê quiser.

— Ora muito bem.

Desde que o amor paternal de Francisco Benedito ficou tão eloqüentemente assentado na convicção de Licério, o processo estagnou o seu curso natural.

Sobre ele só pairavam, como lindas mães d'água, as recordações dos lucros havidos pelo rábula à boa fé das partes.

Dir-se-ia que a justiça já proferira a sua última palavra a respeito da emboscada; tão grande era a quietação.

Só uma pessoa impacientava-se seriamente com esta indiferença; era a Sra. D. Maria.

A boa esposa não podia conformar-se com a desusada solução de uma questão que envolvia a reputação do seu esposo, e por meados do ano de 1852, sete meses depois do acontecimento, entendeu ela tomar a peito a punição do compadre.

Uma oportunidade apresentou-se para que a Sra. D. Maria pudesse interrogar peremptoriamente o fazendeiro, e fê-lo com a seriedade que lhe era própria.

Uma canoa chegada de Macabu a Campos trouxe a seu bordo além dos empregados e escravos da casa, um homem das circunvizinhanças.

Florentino Silva, era o seu nome, vinha pedir a Motta Coqueiro para que o recebesse como seu empregado, e ao mesmo tempo comprasse-lhe a posse de um sítio na serra dos Olhos d'Água.

Quanto ao primeiro pedido foi de pronto atendido pelo fazendeiro, que adiou a resposta ao segundo, visto que não conhecia o terreno que o seu empregado oferecia-lhe.

Os escravos afearam os desacatos e tropelias do agregado e concluíram por declarar ao fazendeiro, em nome do feitor Fidélis, ser um perigo a vida no sítio.

Ainda na noite de Santo Antônio tinham estado na casa de Francisco Benedito o inspetor André, o subdelegado, Joaquim Licério, Lúcio Ribeiro e vários indivíduos. Resolveram fazer uma grande fogueira em louvor do santo e, para servir de combustível, escolheram um cafezal.

Soprava esperto o vento e em breve as labaredas, enroscando-se pelas aléias e trepando crepitantes e fumívomas avassalavam grande parte do plantio que ficou completamente destruído.

Alvoroçada, a gente do sítio correu para apagar o incêndio, mas foi detida em meio caminho pelas ameaças dos folgazões, no número dos quais contavam-se as autoridades do lugar.

— Deus incumbiu-se de evitar a desgraça que parecia inevitável. O fogo extinguiu-se por si mesmo.

Ouvindo esta narração, que foi confirmada por Florentino Silva e Faustino, a Sra. D. Maria observou a seu marido que era urgente cortar pela raiz o mal.

— Pelo que acabamos de ouvir, disse ela, o subdelegado, longe de punir, protege Francisco Benedito.

— Eu tinha certeza de que isto viria a acontecer, o que quer a senhora? a autoridade cai sempre em mãos de semelhantes homens.

— Assim pois o mal é sem remédio?

— Parece que pela justiça é, mas resta-nos um meio, obrigar o compadre a mudar-se.

— O que eu noto é que o senhor não se agasta muito com isto, e não há explicação razoável para o seu procedimento.

— Se eu perdesse a cabeça e fizesse alguma asneira ser-lhe-ia agradável? Pelo amor de Deus, sejamos prudentes.

— A maior prudência era vender o sítio.

— Se aparecesse comprador.

— Nunca aparecerá, porque o senhor ainda quer adquirir mais terras naquele maldito lugar.

— Mas em que nos prejudica termos ou não termos terrenos em Macabu, não me dirá?

Apesar do tom de azedume do seu marido, a Sra. D. Maria insistiu longamente sobre os negócios do sítio. O seu fim era obter uma resposta decisiva, que lhe pautaria de futuro o seu procedimento.

— Eu lhe repito: não posso admitir que esse estado de cousas continue. O senhor diga com franqueza: aquele agregado é ou não castigado.

— Já lho disse, senhora: o compadre há de sair das minhas terras.

— Não basta, é preciso que pague a emboscada.

— O meio de que poderia dispor era processá-lo, o subdelegado é meu inimigo e protege o criminoso, é impossível fazer seguir o processo. não tenho outro.

— Era o que eu queria saber.

A conversação foi cortada bruscamente por uma última frase da Sra. D. Maria, frase que felizmente não foi toda ouvida por Motta Coqueiro.

— Eu hei de mostrar quem pode mais, Sra. Antonica.

Antonica foi a única palavra ouvida por Motta Coqueiro, e bem fácil é aquilatar qual seria o movimento íntimo que lhe correspondeu.

Seria saudade ou seria piedade? O certo é que, voltando a conversar com os seus empregados, Motta Coqueiro ponderou-lhes:

— É muito feliz o tal meu compadre; tem por si a proteção, a saúde própria e a dos seus.

— Quanto à saúde dos dele não é lá muita, principalmente de sá Antonica.

— Ah! ela está doente.

— Anda com umas queixas do peito, e uma tosse que vai metendo medo.

A Sra. D. Maria, que se conservava à distância de poder ouvir o que se dizia, amargou em silêncio a decepção que causou a simples exclamação do fazendeiro.

— Hei de acabar com isto, repetiu a si mesma.

Quando a canoa fez-se de volta a Macabu, a esposa do fazendeiro ordenou a Peregrino que transmitisse a Fidélis algumas ordens.

Queria que o feitor fizesse respeitar a propriedade do seu senhor pelo agregado e sua família. Caso não fosse atendido, ficava-lhe o direito de valer-se da força.

Fidélis esperava semelhante autorização para operar, e para exprimir a energia com que trataria de obter a mudança de Francisco Benedito, disse sem reserva:

— Aquele branquinho tem agora de tratar comigo: há de mudar-se ainda que eu lhe faça como aos maribondos; ainda que lhe queime a casa.

Os expedientes tomados pelo feitor conseguiram intimidar por algum tempo o agregado, que se acovardou principalmente desde o dia em que, perseguindo-lhe o atrevido filho, Fidélis não duvidou chegar até às portas da sua casa.

Então Francisco Benedito julgou mesmo ser prudente ceder à proposta do fazendeiro para a venda das benfeitorias, e incumbiu desse negócio um amigo comum.

As hostilidades arrefeceram e entabulou-se a negociação procrastinada pelas exigências irrazoáveis do agregado, que entendia receber o dobro do justo valor na venda.

— Ele há de ceder por fim, observava o intermediário a Motta Coqueiro; deixe passar mais algum tempo, não é muito para quem tem tido tanta paciência.

Irritado, porém, pela resistência que as suas pretensões encontravam no ânimo inabalável do fazendeiro, e além disso instigado pelas autoridades que visavam a retirada do competidor daqueles lugares, Francisco Benedito recomeçou desabridamente os seus desmandos.

Um dia em que em uma das vendolas, quase totalmente ébrio, o agregado vociferava diante de Faustino e Florentino contra Motta Coqueiro, disse Florentino:

— Você é um malvado, seu Chico; é um homem que devia morrer.

— Se me pagassem bem, eu arranjava isto, resmungou Faustino; queira o capitão e eu ponho um ponto à pendência.

Uma troca de insultos de parte a parte seguiu-se desastradamente e terminou por uma intimação formal de Faustino a Francisco Benedito:

— Cala a boca daí, velho cachaça, ou faço-te calar à força. Quanto ao teu genro torto, podes dizer-lhe que se ele continuar com os desaforos, eu visto-lhe uma camisa de pau com vento fresco. É o que falta a vocês dois, bêbados!

A altercação na vendola surgiu daí a alguns dias corporada em uma calúnia assaz comprometedora.

Dizia-se por toda a parte que Motta Coqueiro tinha encarregado Faustino e Florentino de assassinarem a Sebastião Pereira!

O mais grave, o mais incrível era que Bento Silva, irmão de Faustino, era um dos que se encarregavam de propalar semelhante versão, e dizendo que ouvira ao próprio Faustino.

Para cúmulo de infelicidade sobreveio uma desordem entre o agregado e os escravos.

Corriam os primeiros dias de setembro. Uns madeireiros de Macaé, entre os quais vinha o Sr. Conceição, chegaram ao sítio de Macabu para comprar o resto das madeiras ao fazendeiro, que se achava em Campos.

Uma canoa foi despachada para avisar Motta Coqueiro, e Fidélis com os seus parceiros começaram desde logo a embalsar as madeiras, por isso que o Sr. Conceição declarava que era negócio decidido e tinha pressa de conduzir as balsas.

No dia 9 de setembro pela manha, chegando Fidélis ao porto, encontrou cortadas as amarras das balsas e grande parte da madeira no fundo do rio. Evidenciava-se que a maldade fora a conselheira do fato, e esta não podia ser atribuída senão a Francisco Benedito, que já outras vezes tinha praticado atos mais graves.

O feitor calou-se e durante o dia não deixou sequer transparecer a raiva que necessariamente sentia.

Apenas comunicou o ocorrido aos hóspedes de seu senhor, pedindo-lhes que desculpassem a demora involuntária.

Á noite, depois da revista, Fidélis empunhando uma espingarda chamou os seus parceiros Alexandre, Peregrino e Carlos, que tinha sido mandado para o sítio por castigo de algumas peraltadas, e ordenou-lhes que o seguissem.

Alumiados por um facho, os três seguiram pelos aceiros da roça e dentro em pouco achavam-se diante da casa do agregado.

As portas e janelas estavam fechadas, porém partiam vozes do interior.

— Estão acordados, disse Fidélis; tanto melhor porque demora menos.

Quando o feitor ia bater à porta, perguntou-lhe Carlos, a quem o acento da voz do parceiro impressionara profundamente:

— O que é que você vem fazer na casa dessas feras?. Isto dá em desgraça, Fidélis.

— Dê no que der; eu tenho ordem dos brancos, respondeu o feitor, e bateu brutal e prolongadamente à porta.

— Más horas de visita é esta, disse de dentro Francisco Benedito; enfim vá lá.

Apenas a porta abriu-se, Francisco Benedito, atemorizado pela qualidade dos visitantes, recuou até o meio da sala, gritando compungentemente:

— Estamos perdidos, estamos perdidos.

— Não tenha susto, não, seu Chico; vosmecê é tão valentão que até a gente não acredita que fique logo tremendo. Isto é só um aviso.

À proporção que falava, Fidélis, acompanhado por Peregrino e Carlos, entrava pela sala do agregado, e apoderava-se de uma espingarda que estava encostada em um canto.

— Nós não somos assassinos; não fazemos emboscada, não, meu branco; mas eu sou feitor, e quero dizer-lhe que isto de andar vosmecê, seu filho e seus amigos destroçando o sítio, não me vai cheirando bem. Canalhada, canalhada e meia; hoje amanheceram as balsas cortadas; todos os dias é um desaforo: morte nos gados, fogo nos cafezais, o diabo a quatro. Eu venho saber se vosmecê quer ir por bem ou por mal. Se quer ir por mal não me custa nada a pôr fogo neste rancho, como se faz na casa dos maribondos, que não são tão maus como vosmecê. É decidir.

Fora zuniu o desfechar de uma paulada e em seguida ouviu-se um brado colérico:

— Tu me pagas, desgraçado; tu me pagas já.

Os três saltaram precipitadamente fora da sala, porque reconheceram a voz do parceiro, que tendo deixado o facho próximo à casa, corria pelo terreiro após um vulto, que ele depois disse ser Juca Benedito.

— Ah! vocês fazem-se pimpões; pois esperem; hão de sair amanhã mesmo daqui. Esperem.

Suspendendo o facho, Fidélis chegou-o até à beira do teto de sapê. Bastava uma pequena demora para que a casa fosse irremediavelmente perdida.

— Não faça, não faça, tio Fidélis! gritou Carlos.

E abaixando mais a voz:

— Foi sá Antonica que foi socorrer senhor, e ela não tem culpa do que o pai faz.

— Ali! velho cachaceiro dos diabos, é o que te vale; senão hoje mesmo de dormir no mato Mas se não mudas de pensar eu não atenção a mais nada... Deixa esse desgraçado! bradou em seguida; isso é um fedelho.

Os escravos afastaram-se comentando o caso, mas quem atentasse para o grupo de bananeiras que ficavam a pouca distância da casa, poderia descobrir um vulto que seguia atentamente todos os movimentos.

Quando a luz do facho extinguiu-se completamente, e o terreiro silencioso recaiu na obscuridade, o vulto saiu dentre as árvores, parou e estendeu um dos braços, que agitou no espaço.

Uma voz rouca e abafada articulou estas misteriosas palavras:

— Bom! muito bem! Agora começo eu!