Motta Coqueiro/XI
Sob o temporal de feito, singrava rio acima uma canoa, cujo impulso represando e fazendo espumar ruidosamente a corrente abria duas grandes asas níveas na escuridão das águas e da noite.
Gradativamente os remadores foram aliviando os remos, e afinal a canoa parou.
— Nas horas de Deus! exclamaram eles; estamos em casa.
Estavam de feito no porto do sitio de Macabu, propriedade do capitão Motta Coqueiro, que, vindo a bordo, tratou de desembarcar logo que ouviu anúncio dos canoeiros.
— Rapazes, tratem de cobrir as cargas, disse ele, e os Srs. venham comigo. Que viagem terrível!
Pouco depois via-se luz na sala de visitas da casa grande, e ouviam-se falas entrecortadas por francas risadas.
Recostado num canapé, junto do qual estavam assentados alguns homens de fisionomias distintas, Motta Coqueiro presidia uma conversa de amigos.
O mais jovial e que mostrava mais privança com o fazendeiro era o Sr. Conceição, negociante residente em Macaé.
O seu rosto cheio e vulgar era entretanto atraente porque iluminava-o um olhar cheio de insinuante sinceridade.
No mais era um homem de estatura mediana, sem reservas aristocráticas, sem posições estudadas; o antigo tipo do homem do comércio, que se perdeu no dilúvio fervido do aperaltamento moderno, que olhando, para a fidalguia, fica sempre no ridículo.
— Se você não tivesse chegado hoje, dizia o Sr. Conceição, amanhã só encontraria aqui muitas lembranças nossas. Batíamos asas sem mais demora.
— O que custa é o mais desejado, respondia o capitão; e além disso as minhas madeiras são como o vinho, quanto mais velhas mais caras. Está aí por que me demorei.
— E lá ficaria se o vento não o fosse buscar. Pelo que eu vejo você não chega aqui sem tempestade.
— Nem sempre; aconteceu hoje para que vocês paguem-me não só as madeiras mas ainda o incômodo da viagem. Eu levo só dez por cento. Antes isso do que ir para a estrada.
— Homem! por falar em estrada, é verdade; que se deu aqui um desaguisado entre você e um agregado?
— É verdade; mas eu nem penso mais nisso, porque o tal agregado, que é meu compadre, gosta demais do copo.
— Mas neste caso cozinhe as carraspanas em casa, e não se engane com os cacos alheios. Se fosse comigo o negócio não ficaria assim.
— Eu também quis processá-lo; mas não só tive de lutar com a animosidade do Oliveira e trampolinice do Licério, mas também de compadecer-me do tal meu compadre, atendendo a que tem uma família numerosa. Ele há de achar quem o ensine, porque ninguém as faz que não as pague. Há cousas que dito-me muito mais que pensar...
— Ah! tem também seus segredos; deixe estar que eu hei de pô-lo em bons lençóis com a D. Maria. Vejam o sonsinho.
— Qual, por este lado não há que temer; já tenho os meus cinqüenta sobre as costas. O que me impressiona mais hoje é a eleição de deputados gerais, para cuja vitória o governo mandou para Campos um juiz de direito, escolhido a dedo.
— Ora deixe-se disso; você bem sabe que, trabalhando, taboqueia o bicho.
— Não é tão fácil; os diabos dos caudilhos do governo têm-me intrigado à grande. Pois o que é a convivência do Oliveira com o meu agregado, senão um meio de desmoralizar-me? Agora a verdade é que o finório perde de todo o seu tempo.
A conversação estendeu-se por mais de uma hora sempre salpicada pelos epigramas e malignidades joviais do Sr. Conceição, que assim confirmava uma regra geral; os caracteres sadios e vigorosos são intimamente alegres.
Já pela madrugada os amigos separaram-se e tomaram os seus aposentos.
O sol, apesar de alto, iluminava furtivamente o céu, quando de novo o fazendeiro avistou-se com os seus hóspedes.
Estes, que tinham pressa de voltar para Macaé, não deixaram esperdiçar um minuto e ocuparam-se durante todo o dia em discutir o preço das madeiras e as condições do seu transporte.
A mais perfeita tranqüilidade de espírito expandia os modos e as palavras dessa reunião de amigos, à exceção do fazendeiro que parecia estar preocupado.
Quem, à tardinha, afastando-se da casa grande, se dirigisse à casa nova, assistiria aí a uma cena de requintado cinismo.
O assassino da indefesa família andara durante todo o dia rodeando as suas vítimas como um corvo em torno da carniça.
Quase ao pôr do sol o companheiro, que na véspera fora por ele despedido, veio também farejar as cercanias da casa do inimigo comum.
O silêncio profundo que reinava ali fê-lo aproximar-se mais e mais até que finalmente colocou-se entre as bananeiras.
O aspecto da casa fê-lo pensar na previsão do seu companheiro e para certificar-se chegou até mais perto.
O bafio do sangue apodrecido e o som do intenso e perene zumbir do mosqueiro certificaram-no de que lá dentro jaziam cadáveres.
Olhou em torno de si; depois espreitou pela fresta da porta, e como se o espicaçasse o remorso, recuou espavorido, e, arrancando violentamente o lenço que lhe encobria parte do rosto, exclamou dolorosamente.
— Mariquinhas, minha Mariquinhas! eu havia de saber poupar-te.
Ao dizer a última palavra os cabelos eriçaram-se-lhe, e agachou-se transido de terror.
É que a pesada mio do companheiro tinha-se-lhe colocado sobre o ombro, apertando-o fortemente.
— Traíste a tua cobardia, ou mentes como um cão. Ou assassinaste a esta raça danada, ou querias enganar-me.
Manuel João que era o companheiro do assassino, tremia miseravelmente e não ousava responder.
— Como tu és cobarde, bradou o selvagem; como virias comprometer-me, se Deus não confiasse a outras mãos a nossa vingança. Felizmente ainda há homens de coragem. O capitão chegou ontem e eis aqui os destroços. Bem to dizia eu!
Depois de uma breve pausa, continuou:
— É preciso que nos afastemos daqui; se nos vissem estaríamos perdidos. Vai, não tornes nunca mais a este lugar amaldiçoado. Eu também seguirei o meu destino.
O silêncio e o abandono invadiram de todo o triste lugar, onde o ódio havia executado uma tremenda sentença...
Talvez no mesmo instante em que o monstro imputava ao fazendeiro o seu nefando crime, os amigos deste reunidos na casa grande reparavam no seu mal-estar.
Já não era possível escondê-lo, porque à proporção que a noite se avizinhava, Motta Coqueiro entristecia cada vez mais, e chegou a tal estado de melancolia que, durante o jantar, foi amigavelmente interpelado pelo Sr. Conceição.
— Homem, você está com a cara da noite de ontem. Quer até parecer-me que o nosso amigo deu agora em forreta e está arrependido, de não nos ter carregado mais dez por cento no preço das madeiras. Mas não vale zangar por isso; nós ainda estamos aqui, esfole-nos a seu gosto.
— É mesmo verdade que eu estou triste, respondeu o capitão, e o mais singular é ser por uma asneira.
— Perdão, interveio o Sr. Conceição, é o mais natural.
— Ontem, ou melhor esta madrugada, quando deitei-me, continuou o fazendeiro, tive uma espécie de pesadelo. Figurou-se-me estar em um lugar deserto e como que ouvi gemidos dolorosíssimos. Procurei por toda a parte e não vi viva alma. Porém, daí a pouco descobri perto de mim grandes línguas de fogo, e depois um montão de cadáveres.
O mais esquisito é que durante todo o dia eu tenho pensado neste sonho.
— Há de ser lembrança daquele clarão que o Sr. disse-nos ter visto na viagem, pouco antes de cair o temporal, interrompeu um dos amigos.
— Ora sonhos! exclamou o Sr. Conceição.
— Há de ser mesmo, prosseguiu Motta Coqueiro, porque fiquei bastante impressionado. Parecia o clarão de um incêndio mas de repente extinguiu-se.
— Pois você queria que houvesse um incêndio que resistisse à chuva de ontem.
O Sr. Conceição, que foi quem proferiu essas palavras, pôs-se a rir da melhor vontade, buscando desfazer a impressão profunda do fazendeiro.
Inútil esforço; depois do jantar Motta Coqueiro, pedindo licença aos seus hóspedes para ir saber do feitor o que se tinha passado durante a sua ausência, confirmou plenamente que fora baldada a tentativa de Conceição.
Apertando a mão deste, disse-lhe perturbado:
— Desculpe-me esta fraqueza, mas há cousa de um ano que este maldito sítio só serve para dar-me trabalhos. Em chegando aqui, fico logo desatinado.
O Sr. Conceição não galhofou desta vez; e, ao contrário, depois da saída do fazendeiro, disse aos outros que também ficara impressionado com a tristeza do amigo.
Na mesma hora em que na sala de jantar entrechava-se a conversação, que deixamos exarada, perto da casa grande a tia Balbina dava toda a atenção a um interlocutor.
A feiticeira, que desde o dia da emboscada contra Motta Coqueiro fora passada para os serviços da casa grande, gozava de certas regalias e delas usava sem o mínimo prejuízo.
Durante a noite, quando acabava a lavagem da roupa, não era mais ocupada para nenhum trabalho, e ficava-lhe completamente o tempo e o seu emprego, sem quebra da ordem estabelecida para todos os escravos.
Balbina, que saíra a disfarçar o cativeiro, segundo a sua frase, encontrou-se, junto do casario, com um homem que lhe era totalmente desconhecido.
Este começou por perguntar-lhe se, de fato, havia chegado o capitão, e obtendo da feiticeira resposta afirmativa, prosseguiu:
— Ele já sabe da sorte do agregado?
— Veio vender madeira, respondeu Balbina; nem pensou ainda no compadre.
— Pois aconteceu uma cousa horrível, minha velha, e é preciso que ele saiba.
— A casa grande está aberta; pode ir falar com o senhor, ou se quiser fale com o Fidélis, que é o feitor.
— Não, não quero falar ao teu senhor, minha velha; sou pobre, mas sou homem de bem; não poderia encarar com ele. Escuta e dá ao teu senhor este recado.
Dize-lhe que há quatro noites um homem de bem estava por acaso junto da casa de Francisco Benedito, quando viu chegarem quatro escravos deste sitio, alumiados por um facho. Bateram à porta e um deles, que parecia mandar sobre os outros, a quem chamavam Fidélis, entrou como um cavalo disparado dentro da casa do agregado do capitão.
Falou muito lá dentro. De repente aparece junto do escravo, que tinha ficado fora com o facho, o filho de Francisco Benedito e arruma-lhe uma paulada mortal. Mas errou o alvo. Todos os outros escravos saíram em socorro do companheiro, mas não puderam agarrar o rapaz.
Então Fidélis quis pôr fogo â casa, e se conteve-se foi devido a um segredo que lhe disse um molecote, que estava no grupo.
Passaram dois dias sem que nada mais acontecesse ao agregado, porque ainda ontem eu o vi.
Hoje, porém, tive diante de meus olhos uma vista horrível. Desde a estrada eu reparei que todas as portas e janelas estavam fechadas, e estremeci.
Mais perto dobrou-se-me o temor; a frente da casa tinha sinais de fumaça e a coberta de sapé estava quase toda queimada. Pensei logo que se tinha realizado a ameaça de Fidélis e corri. Não era só isto o que eu devia ver. Quando empurrei a porta, não pude conter o choro; a casa de Francisco Benedito é hoje um cemitério; mataram todos, todos.
— Jesus! exclamou Balbina, nem pouparam a moça que o senhor estimava tanto. Antes os brancos não tivessem dado ordem!
— Vai, vai, minha velha; conta a teu senhor esta desgraça.
Balbina, temporariamente comovida, apressou o passo em direção à casa grande, e o desconhecido, sorrindo então desdenhosamente, disse com uma inflexão de voz que faria estremecer ao mais fleumático dos homens.
— Teve pena a desgraçada, e eu lastimo que fique sobre a terra uma filha daquela raça. Os malditos tinham pouco sangue.
Depois de uma breve pausa, disse ainda:
— Tenho pena do capitão; talvez venha a sofrer pela morte daquelas víboras. Deus o defenda.
Ditas estas palavras o desconhecido afastou-se com passo lesto e firme.
Quando Balbina chegou ao terreiro encontrou aí o fazendeiro, diante do qual, com o chapéu na mio, Fidélis falava humildemente.
O feitor depois de contar as diversas tropelias feitas pelo agregado, juntou-lhes a narração do estrago feito nas balsas e o expediente que tomara, como feitor.
— Eu fui falar com seu Chico, disse ele, mas não fui atendido, e ainda o filho deu uma cacetada em Alexandre. Zangado, eu quis pôr fogo à casa, mas não cheguei...
— E quem deu-lhe ordem para fazer semelhante cousa? interrogou o fazendeiro.
— Senhora mandou que pusesse fora o agregado de qualquer sorte.
— E o que fez depois o compadre?
— Parece que foi dar parte ao inspetor.
— Pode ir, pode ir embora, exclamou Motta Coqueiro dirigindo-se ao escravo, mas saiba que não pode de hoje em diante fazer nada sem minha ordem.
O fazendeiro, que durante algum tempo conservara-se no mesmo lugar com a cabeça sumida entre as mãos, levantou-se por fim e entrou na sala de jantar completamente desfigurado.
Balbina que observava todos os movimentos, ao vê-lo assim perturbado, resmungou através do ódio encanecido:
— A Estrela do céu já não defende a porta dos brancos e Deus não olha mais para a banda em que ela está. A escrava pode rir, vai ser vingada.
A noite foi uma longa tortura para o fazendeiro, que estava ainda muito longe da realidade horrorosa da sua situação.
Via no ato dos escravos, autorizado pela senhora, o descrédito de seu nome e, o que lhe doía igualmente, uma arma segura com a qual os seus adversários combatessem-lhe a popularidade.
Com que prestígio, ele que mandava incendiar a casa de um pobre e seu hóspede poderia pedir ao povo da localidade apoio e dedicação, se depois, esquecendo tudo, viria talvez a persegui-los cruelmente?
Tarde da noite Motta Coqueiro, cuja insônia afeava cada vez mais o acontecimento, foi ter com o seu amigo Conceição e comunicou-lhe o ocorrido.
O honrado negociante mostrou-se também profundamente abalado e só depois de longo silêncio disse para o fazendeiro:
— O único remédio é pagar pelo preço que Francisco Benedito pedir as benfeitorias do sítio.
— Isto é o menos, meu amigo, o que eu queria era que você visse como se me preparam desgraças.
Antes do nascer do sol, Motta Coqueiro, que passara a noite em atroz vigília, saiu para o terreiro, e, depois de ordenar que lhe trouxessem o cavalo, porque desejava sair logo depois do almoço, pôs-se a passear de um para outro lado.
Os escravos vieram alinhar-se e com eles apareceram também no terreiro Faustino Silva e Florentino.
O primeiro vinha pedir ao fazendeiro que lhe cedesse algum açúcar, e o segundo tratar acerca da venda da posse na serra dos Olhos d'Água.
Despachado Faustino; Motta Coqueiro dirigiu-se a Florentino para desculpar-se com ele por não poder cumprir já a sua palavra.
— São terras, Sr. Flor, e não é possível comprá-las sem ver. Ora eu estou doente e além disso não posso demorar-me; tenha paciência, trataremos do negócio mais tarde.
Efetuando o movimento habitual dos sertanejos, quando alguma cousa não se efetua conforme os seus desejos, Florentino levantou os olhos para o céu.
Em seguida erguendo o braço e apontando para o ocidente, disse com extraordinário espanto.
— Olhe, seu capitão, que grande nuvem de urubus está a fazer verão acolá.
— É verdade, confirmou o fazendeiro, e em seguida perguntou a Fidélis: por que diabo não manda você enterrar os animais mortos?
— Não faltou nenhum cá no sítio, meu senhor.
— Isto pelo que eu vejo, anda desgamelado, seu mestre; disse Motta Coqueiro para o feitor; havemos de ver se falta ou não. Vá já, com alguns dos seus parceiros, fazer enterrar o animal, que encontrar morto.
Fidélis, acompanhado dos seus parceiros Carlos, Alexandre, Sabino, Guilherme, Peregrino e Domingos, seguiu em direção à negra revoada.
Todos os outros escravos e os dois homens livres retiraram-se, ficando apenas no terreiro o desventurado fazendeiro e Balbina que ao longe resmungava sarcasticamente:
— Fingimento de branco, só Deus pode ver no coração dele; o rosto não muda. Manda matar os malungos e fica tão fresco como se mandasse surrar o escravo. O forro atinou logo com os urubus, e o outro tratou logo de se pôr na picada.
Só os negros foram depressa para fazer o enterro dos defuntos que o fogo não queimou. Enterrem: Balbina irá mostrar o lugar. A Estrela do céu fugiu da porta dos brancos para que a escrava pudesse vingar-se do senhor sem coração, que a mandou surrar, e dos parceiros que não tiveram dó dela. Balbina não terá pena. O caçula ficará sem o pai, e o pai sem os escravos, Balbina estima o caçula mas não terá dó de seu pai.
Os hóspedes do fazendeiro vieram encontrá-lo em agitação febril, dir-se-ia que era cruciado por invencíveis remorsos.
O mau humor traía-se-lhe pelos monossílabos que resumiam as suas respostas, e a instabilidade das posições, que tomava, denunciava a sua impaciência, de tal forma que o Sr. Conceição viu-se forçado a dizer-lhe à puridade:
— Oh! meu amigo, não é preciso que todos saibam do que se passou.
Estavam sentados à mesa, almoçando, os hóspedes, que deviam seguir viagem neste mesmo dia, quando Fidélis entrando, arquejante de cansaço, disse para o seu senhor que lhe precisava falar em particular.
O semblante do negro, onde estava gravado o espanto, fez com que o fazendeiro se levantasse precipitadamente,
Foram ambos até o corredor que comunicava a sala de jantar com uma saleta interior, na qual achavam-se Balbina e outras pretas.
Chegados aí, Fidélis, com a voz quase embargada pelos arquejos contínuos, disse com uma inflexão dolorosa:
— São eles, meu senhor; estão todos mortos.
— Quem? mas quem é que está morto? interrogou assustado o fazendeiro.
— Já estão mortos, sim senhor, seu Chico, a mulher e os filhos todos.
— Oh! meu Deus, meu Deus, que desgraça, bradou em lancinante desespero o malfadado Coqueiro; que mal fiz eu para que cala sobre mim tamanha punição.
— O que é, gritaram os hóspedes, que vieram prestes cercar o fazendeiro, que apertava com ambas as mãos a cabeça, e desfazia-se em lágrimas.
— Deixem-me, deixem-me, pelo amor de Deus! Eu sou um desgraçado. O que será de minha mulher, de meus filhos. Malditos negros!
Cambaleando como um ébrio, Motta Coqueiro foi cair sobre uma cadeira na sala de jantar, enquanto os hóspedes estupefatos olhavam sem coragem de interrogá-lo.
Depois de um silêncio longamente soluçado pelo desventurado; erguendo-se com os punhos cerrados e a cabeça voltada para o céu, exclamou ele com uma entoação, que provocou as lágrimas dos hóspedes.
— Mas não é possível, meu Deus, tu bem sabes que não é possível que se acredite que eu fosse capaz de semelhante barbaridade. Não, eu não creio que os meus inimigos sejam tão maus que atirem sobre mim esta mancha.
Como que um momento lúcido foi então concedido à razão do infeliz fazendeiro. Atentou nos seus amigos que o cercavam comovidos, e, redobrando de soluços, disse-lhes resolutamente:
— Os senhores precisam de partir, não se demorem por minha causa. Demais seria talvez comprometê-los. Deixem-me só; eu agradecerei sempre tanta bondade e espero muito da vossa lealdade. Adeus, rezem a Deus por mim.
Perplexos, os hóspedes relutaram em obedecer a peremptória intimação, mas a insistência do fazendeiro, solenizada pelo desespero e as lágrimas, resolveu-os por fim.
Tocante despedida esta; como que todos os corações temeram que a palavra lhes atraiçoasse a sinceridade do sentimento, extemando-os em inflexão menos própria. Mudos, apertaram-se as mãos, mudos saíram e por muito tempo caminharam.
O Sr. Conceição, rompendo afinal o silêncio, disse ao embarcar-se na canoa que os esperava:
— Não sei por que, mas tremo pelo futuro de Coqueiro.
— Grande desgraça o feriu, responderam os outros.
Depois de ficar só, o fazendeiro, mais feroz que uma pantera esfaimada, atirou-se contra Fidélis, esbofeteando-o e bradando:
— Dize-me, negro do diabo; onde aprendeste a ser tão malvado. Crianças, velhos, todos, miserável.
— Senhor, meu senhor, respondia humildemente o feitor, não fomos nós.
A negativa enfureceu ainda mais o fazendeiro, que deixou o escravo para de uma cadeira que, manejada, espedaçou-se de encontro a um portal, não tendo apanhado Fidélis, que se defendeu da agressão e correu.
— Tu me pagarás, desalmado, tu me pagarás, gritou o fazendeiro, depois desenganar-se de que não podia agarrar o feitor, que fugia seguido dos outros escravos com que saíra de manhã.
Ficaram, porém, no terreiro Carlos e Domingos.
A cólera do fazendeiro descarregou-se toda sobre o molecote, que em vão pranteava, afirmando a sua inocência.
Compreendendo que a fúria de seu senhor chegaria ao maior excesso, Domingos interveio submisso ponderando-lhe judiciosamente:
— Perdão, meu senhor, vosmecê vai se perder; este moleque morre.
De feito Carlos já estava estendido por terra, com a cabeça quebrada e o corpo todo ralado pelos tombos repetidos.
Ainda assim talvez fosse inútil a ponderação do escravo, se não chegassem na mesma ocasião Faustino e Flor, que ambos assustadíssimos disseram ao fazendeiro que tinha-se ido chamar as autoridades para verem o que havia na casa de Francisco Benedito, que estava fechada e sobre a qual pairavam os urubus.
— E o que tenho eu com isso; respondeu Motta Coqueiro.
— Antes nada tivesse, seu capitão; mas estão a dizer que a gente de Francisco Benedito foi morta por ordem de vosmecê; soluçou Florentino Silva. E qual foi o miserável que lembrou-se de acusar-me, diga-me o seu nome, quero fazê-lo engolir a calúnia!
— Todos os que estavam na venda.
— Todos!
A mais dilacerante angústia foi resumida nesta única palavra. Encarnava a. revolta da dignidade de homem de bem e a dor agudíssima a sangrar um caráter sério. Concretização do desespero de um coração, lapidado pela severidade para agalanar-se com as irradiações da bondade e da justiça, nessa única palavra gemia todo um passado de honestidade e nobreza de sentimentos agora desapiedadamente trucidado pela calúnia.
O fazendeiro sentiu-se no vácuo, mas esse vácuo horrível do pesadelo, onde coloridos como fogos-fátuos sucedem-se e aprofundam-se infinitos círculos luminosos, aos quais nos queremos segurar quando se nos afigura que rolamos e sentimo-los ao nosso contacto desfazerem-se em fumaça.
O que no pesadelo é uma sucessão de círculos luminosos era no espírito do angustiado um tumultuar de sentimentos, que não tinham consistência para obstar-lhe a queda na condenação social.
— Todos, repetiu o desventurado; mas que mal fiz eu a toda essa gente para que assim me julgue?!
— O que quer vosmecê, seu capitão; acontece quase sempre assim, disse Florentino. Eu no seu caso e na sua posição ia para Campos já; os seus amigos lá hão de defendê-lo.
— Sim, sim, exclamou o fazendeiro, hei de fazer confundir os caluniadores e a desforra será tremenda.
Dentro em pouco tempo uma canoa, remada com extraordinária boa vontade, voava pelo rio Macabu. Levava em si o fazendeiro, que ia buscar no seio da família consolo para a sua aflição.
Durante todo o dia ninguém atreveu-se a aproximar-se da casa em que apodreciam os cadáveres da família de Francisco Benedito. Só a nuvem de corvos, grasnando de espaço a espaço atraída pela carniça, fazia sentinela à mortualha, ora concentrando-se em imensa esfera negra, ora desdobrando-se e abatendo-se repentinamente sobre o teto meio queimado.
À noite, porém, um vulto chegou cautelosamente até à frente da casa, empurrou a porta e entrou sem hesitar, fechando-a de novo sobre si.
Lá dentro ouviu-se apenas o ruído das moscas espantadas pela visita inesperada.
Passado algum tempo, o vulto saiu com a mesma precaução, e, entrando pelas roças, seguiu pelos aceiros, depois pelo campo, e afinal dirigiu-se para as senzalas do sítio.
Abriu uma delas e entrou, acendendo logo depois um candeeiro. A luz deixou então conhecer a pessoa que, zombando de temores supersticiosos, não trepidou aventurar-se na escuridão e no isolamento àquele domínio da morte.
Era a tia Balbina, que trazia sobraçada uma enorme trouxa de roupa ensangüentada.
A feiticeira começou então a estender demoradamente no chão os vestuários impregnados pelas exalações dos cadáveres.
Depois reuniu-os de novo, e foi colocá-los em uma velha caixa, ao canto do quarto.
Feito isto, sentou-se por algum tempo na beirada da cama e tomou a posição de quem medita.
Não se prolongou por muito tempo a sua inação, porque para logo levantou-se e foi acocorar-se no meio do quarto em exercícios de nigromancia.
Por vezes os búzios foram lançados, e o cheiro de enxofre renovado no aposento. Depois como se houvesse conseguido o que desejava, Balbina guardou os seus instrumentos cabalísticos, e pôs-se a cantarolar, sentada sobre o leito.
Uma voz, repassada de tristeza, veio destoar da alegria da feiticeira.
— Oh! tia Balbina como está tudo isso em debando, que desgraça.
— Se Carolina tem muita pena dos brancos é pior para ela. Deus quis eles pagassem a maldade para com os escravos, e por isso deixou que mandassem matar por Fidélis e os outros a família do agregado.
— Mas, sempre faz pena, tia Balbina.
— É verdade, respondeu friamente a feiticeira, que repetiu à crioula os horrores da matança, tais como os ouvira ao desconhecido.
Por fim disse ela, bocejando:
— Vamos dormir, criança, hoje vou ressonar como um branco rico um sono descansado. Deus te abençoe.
No dia seguinte, 15 de setembro de 1852, as autoridades de Macabu entravam em nome da lei na casa em que, irônico, frio e desapiedado, o desconhecido efetuara o vandâlico morticínio.
A justiça incumbiu-se então de arrancar ao bico adunco dos corvos os cadáveres já putrefatos, e o povo que acompanhou as autoridades sentiu duplicar-se-lhe a indignação porque presenciou um espetáculo verdadeiramente repugnante.
O assassino não contentara-se em imolar oito vítimas; pelo que se via na posição e nudez dos cadáveres havia levado a sanha até a violação do pudor das donzelas e ao desrespeito do recato de esposa.
O inspetor André revelou então ao subdelegado a denúncia que lhe fora dada pelo chefe da família assassinada contra os escravos de Motta Coqueiro, e alguns dos circunstantes juntaram a esta revelação a da malquerença de Faustino e Flor com o finado Francisco Benedito.
Acrescia que o fazendeiro tinha chegado na noite dos assassinatos e que um dos homens livres, Flor, tinha vindo com ele na mesma canoa. Faustino matava por dinheiro e dissera que se Motta Coqueiro lhe pagasse bem não trepidaria extinguir a raça de Francisco Benedito.
Assim, pois, o inspetor redigiu a parte do crime, imputando-o a Motta Coqueiro, na qualidade de mandante, aos seus escravos, e Faustino Pereira da Silva e Florentino Silva como autores.
Prestadas as honras funerárias à família do agregado, a polícia tratou imediatamente de pôr cerco ao sítio.
Provou-se até à evidência o fundamento da suspeita pública sobre a autoria do crime execrando.
Não foram encontrados no sítio nem Motta Coqueiro nem muitos dos seus escravos, e pelo depoimento da preta Balbina, a quem conseguiram verificou-se ainda que os escravos ausentes eram justamente os denunciados por ela como instrumentos do mandante, Fidélis, Alexandre, Carlos, Sabino, Peregrino e Domingos.
O clamor público intumesceu-se como um vulcão sobre a cabeça do fazendeiro, e como o vulcão se desfaz em raios e aguaceiros, prorrompeu em calúnias e maldições.
— Foi ele; aquele sangüinário capitão; já não é a primeira; tem morto muitos escravos em surras! Mas, pode fazer, porque é rico, tem dinheiro.
A oficiosidade popular para a difamação do próximo dava-se asas e voava desimpedidamente.
Os escravos do fazendeiro ficaram desde logo à disposição das autoridades, mas, o Sr. Oliveira, não obstante desenvolver máxima atividade para a captura dos indigitados criminosos, disse todavia ao inspetor:
— Era capaz de jurar a favor do capitão; não me parece capaz de semelhante crime.
— Mas as provas, que são todas contra ele, dizem justamente o contrário, com perdão de V. S.
— Não vou fora disso, mas... Em todo o caso as eleições se aproximam e enquanto o capitão deslinda o negócio podemos descansar.
Na mesma hora foi expedido um próprio para Campos a fim de comunicar à polícia o acontecimento e pedir o seu auxílio para a captura do principal criminoso que lá devia estar.
O Sr. Oliveira não se enganava quer quando negava a sua consciência a sancionar o clamor do povo, quer quando previa que Motta Coqueiro estava em Campos.
No dia da diligência no sítio, o fazendeiro tinha chegado à sua chácara na cidade, acompanhado pelo preto Domingos, sobre quem não pairava no espírito de Coqueiro a menor dúvida a respeito da sua isenção no assassinato da família de Francisco Benedito.
Sentados sob um caramanchão estavam a Sra. D. Maria e seus filhos tanto os do primeiro consórcio, como os do segundo, com o fazendeiro.
Um dos filhos do primeiro consórcio era já uma influência campista; desempenhava as funções de coletor, e gozava de consideração geral.
O fazendeiro que atravessava cabisbaixo a aléia que do portão da chácara dirigia-se em linha reta até à entrada da casa, foi despertado da abstração com que andava, pelos psius do grupo e logo conduzido para ele pelos meninos que lhe saíram ao encontro.
Os seus afagos para os filhos e enteados foram misturados de lágrimas, e os abraços eram tão estreitos, os beijos tão sôfregos que a esposa e o enteado exclamaram ao mesmo tempo:
— Olhe que desta maneira faz-nos pensar que perdemos o nosso quinhão.
A jovialidade de ambos foi, porém, bruscamente mudada em recolhimento tristonho, porque em vez de sorrisos o fazendeiro só teve lágrimas ao abraçá-los.
— Faça com que as crianças se retirem, porque é necessário que fiquemos sós.
Depois que a família retirou-se, os menores cantarolando e gargalhando sem constrangimento, o coletor perguntou ao seu padrasto qual era a nova desgraça sucedida no maldito sítio de Macabu.
— A maior que se podia imaginar, respondeu Motta Coqueiro; Francisco Benedito foi assassinado com toda a sua família!
— E quem foi o autor de tão tremendo crime, interrogou o coletor que pusera de pé, trémulo e perturbado?
— Não sei ainda ao certo, mas diz-se que foram os nossos escravos.
— Meu Deus, meu filho, meu marido, exclamou a Sra. D. Maria, eu sou causadora desta desgraça, eu sou a assas...
Um violento abalo nervoso, convulsionado prolongadamente, cortou em meio a acusação perigosíssima que a Sra. D. Maria pronunciava contra si própria.
Socorrida a esposa, que foi desde então presa de uma febre devastadora, o fazendeiro e o coletor reataram a conversação dolorosa.
— E onde ficaram os escravos?
— Fugiram os principais autores e ficou apenas o Carlos, que deixei ficar na barra de Macabu para tratar-se. Quase matei-o na primeira explosão.
Passado um breve silêncio, durante o qual o coletor, com os olhos rasos de lágrimas, foi pouco a pouco desenrugando a fronte; exclamou:
— Não há o que temer; não desanimemos.
— É o que lhe parece, meu amigo; há tudo a temer.
— Por quê, haverá alguém que acredite que minha mãe fosse capaz de mandar assassinar uma família? Explicaremos tudo e a verdade triunfará.
— É engano seu. Há um mistério para você nos acontecimentos do sítio, e este é o ponto mais sério. Escute-me.
A voz do fazendeiro abaixou-se de modo a ser ouvida somente pelo seu Interlocutor, e a gravidade da confidência pôde apenas ser suspeitada pela comoção do coletor, que por fim sem se poder conter disse bem alto:
— Estamos perdidos!
— Já vê que pronunciar o nome de sua mãe neste negócio é desonrar toda a nossa família.
— Ninguém acreditará na sua inocência; e condená-la-ão. Minha desventurada mãe!
— Esperemos e confiemos em Deus!
Concebe-se facilmente os horrorosos padecimentos do fazendeiro, seu enteado e sua mulher durante esse dia; todavia não eram senão o prólogo da história do infortúnio dessa família.
No dia seguinte, o coletor, que tinha saído para indagar se já em Campos havia notícia do fatal acontecimento, encontrou-se com o Dr. B., que abraçou-o chorando e disse-lhe tristemente:
— Fala-se já com insistência em uma tristíssima história, em que anda envolvido o nome de sua família; previnam-se enquanto é possível. Temam, porque é quase inquebrantável a força da calúnia.
— Mas, objetou o coletor, esforçando-se por dissimular o pânico de que foi logo assenhoreado, é cousa assim tão grave?
— Se é, meu infeliz amigo, diz-se que seu padrasto mandou assassinar uma família inteira.
— Ah! miseráveis, bradou o coletor; havemos de ver quem vence.
— Saiba mais, meu amigo, o incômodo já não é possível evitar, porque há uma parte do subdelegado de Macabu.
— E basta isto para aviltar-se desta sorte um homem de bem?
— Infelizmente não é preciso mais. Há entretanto tempo para que o nosso amigo se ausente, porque o juiz de direito atualmente em exercício reluta em expedir o mandado de prisão.
— Estamos, pois, salvos porque teremos tempo de confundir a calúnia.
— Não se iluda com esta esperança; o proprietário da vara chamá-la-ia a si talvez amanhã.
— E...
— Bem sabe quanto sou mal visto pelo juiz de direito e quanto devo ao seu padrasto. Demais a influência deste é temida pelo juiz, que se quer fazer deputado e tem uma chapa a impor. O melhor caminho é aconselhar o Coqueiro que se ausente até se aclarar a questão.
Quando o coletor seguia o caminho das Covas d'Areia, onde era a habitação de Coqueiro, foi atraído pela conversação de um grupo.
Dizia um dos reunidos:
— Não se pode dar maior escândalo; o delegado de polícia sabe do fato e não se move; o juiz de direito interino não expede o mandado, e o criminoso está muito a seu gosto em sua casa. Não há como ser chefe de partido nesta terra.
— Ora que queres tu? interveio outro; o delegado tem no Coqueiro o seu braço direito; seria muito engraçado partir dele o golpe. É capaz de demitir-se. Verão.
— Nada se perderá, o Coqueiro há de ser filado talvez hoje mesmo, porque o Saião Lobato assume a vara. Isto afiançou-me pessoa muita séria.
— Santo Deus, santo Deus, murmurou o coletor; estamos irremediavelmente perdidos.
Caminhando como um alucinado, o enteado do fazendeiro chegou quase louco à chácara das Covas d'Areia.
— Fuja imediatamente; um minuto mais aqui e será indignamente enxovalhado. Fuja! exclamou ele abraçando-se com o padrasto.
— Fogem os criminosos; os que não têm culpa esperam até justificar-se.
— — Mas lembre-se de que tem inimigos, e estes não hesitarão em perdê-lo. Evite à nossa família o golpe de vê-lo sair daqui preso e com um infamante labéu.
— Não quero fugir; seria talvez expor outrem à calúnia.
O coletor não desanimou apesar da resposta formal de Motta Coqueiro; prosseguiu na sua insistência, ponderando que desta sorte ser-lhes-iam mais fáceis os recursos, porém Motta Coqueiro resistia sempre, e só cedeu quando um pajem entregou-lhe uma carta que trazia no sobrescrito — urgentíssima; — abra-a logo qualquer pessoa da família.
Embora anônima a letra da carta era assaz conhecida por ambos os que discutiam.
— Leia o que o nosso amigo manda-nos dizer, disse Motta Coqueiro, passando o papel ao enteado; farei o que ele ordenar.
A trêmula voz do coletor fez ouvir o seguinte:
- "São quase seis horas, prepara-se a força policial para cercar a sua casa. Logo que chegue o delegado, que saiu para uma diligência, mas que voltará até as seis horas, porque deseja ir pessoalmente capturá-lo, será cumprido o que manda a lei. Todas as saídas foram tomadas e amanhã será publicada uma circular a todas as autoridades da província para que o prendam onde o encontrarem. Ausente-se, se ainda está aí, é o único meio de evitar um grande desgosto aos seus amigos. Escuso-me de demorar-me em dar-lhe as razoes por que assim procedo: não creio que por sua ordem fosse cometido tão execrando crime.
- — P. S. — Leve consigo esta carta e outra em que tenha a minha assinatura; mostre-a e peça pouso aos fazendeiros do município."
— Então, perguntou o coletor; insistirá ainda em querer ficar?
— Obedeço, eu saio já. Abraça por mim os meus filhos e, quando sua mãe melhorar, diga-lhe que tudo foi remediado e que eu parti para Itabapoana a negócios. Adeus, podes abraçar-me sem escrúpulo; eu não intervim de forma alguma neste crime. Se eu não me puder justificar repete sempre estas palavras a meus filhos: teu pai era inocente.
A resignação, que acentuava estas palavras, fez estremecer o ouvinte, que tentou avivar a fortaleza do fazendeiro, visivelmente depauperada, afiançando-lhe que não havia muito que temer.
— Ah! exclamou Motta Coqueiro, que já havia dado alguns passos.
Parou e pediu ao coletor que lhe desse papel. A lápis escreveu o fazendeiro estas linhas:
- "Uma palavra sua acerca do que ordenou aos escravos é a minha sentença de morte, lavrada por meu próprio punho. Se alguém da nossa família deve aparecer e sofrer, eu tenho forças. Peço à mãe de meus filhos que em nome deles poupe-se de ser mal julgada. Adeus."
— Entregue este bilhete a sua mãe, quando for oportuno; diga-lhe que o queime apenas lê-lo. Agora um último pedido: posso esperar que os meus filhos não ficam ao desamparo?
As lágrimas e um abraço estreitado pelo coletor ao fazendeiro incumbiram-se da resposta, e Motta Coqueiro saiu sem ter procurado encontrar-se com a família.
Infelizmente não lhe foi dado eximir-se deste tremendo golpe. Uma das suas filhas, para quem ainda não tinham desabrochado todas as flores da meninice, saiu ao seu encontro, pedindo que lhe trouxesse uma lembrança do passeio.
— Não posso, minha filha, soluçou ele, misturando os beijos e as lágrimas nas faces da criança: os homens são tão maus para o teu papai que nem querem que ele possa trazer na volta brinquedos para vocês. Deus abençoe, e pergunte aos meus inimigos, se quem tem filhos da tua idade, teria coragem para mandar matar crianças!
A menina pôs-se a chorar o pranto espontâneo da criança, ao passo que seu pai afastava-se quase correndo.
Um quarto de hora depois a chácara era estreitamente cercada, mas as portas não foram abertas, porque já era noite, e além disso o delegado não tinha exigido.
O relógio da igreja da Misericórdia batia onze horas da noite, quando um homem, vestido de preto, com a cabeça coberta com um largo chapéu-do-chile e um lenço negro atado ao rosto, chegou à rua Beira-Rio.
Campos, a bela cidade fluminense, dormia silenciosa espelhando nas águas sem ruído do Paraíba as suas casas caiadas e a luz avermelhada dos seus lampiões.
O homem, que vinha acompanhado por um preto, desceu à margem do rio, embarcou-se em uma canoa, que foi logo impelida pelas remadas do preto e em breve tempo ganhou a margem oposta.
Aí disse o homem ao preto:
— Não hei de esquecer-me de ti; vai, Domingos, e não digas a ninguém para que lado segui. Diz ao meu enteado que alugue-te em qualquer casa.
Por essas palavras e o tom de voz vê-se que o homem que atravessou o rio era Motta Coqueiro.
No outro dia pela manhã, a casa das Covas d'Areia foi franqueada à polícia; mas esta não encontrou aí o criminoso procurado.
Quando esta nova divulgou-se, o povo, que se aglomerara para assistir à diligência, prorrompeu em acusações contra Coqueiro.
Dizia-se geralmente:
— Foi ele, e tanto assim que tratou logo de fugir. Que monstro; deve ser enforcado.