Motta Coqueiro/XII

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O malogro da diligência, atribuído pela população a firme propósito da autoridade policial em deixar impune o criminoso, entrou logo em fatal contribuição contra Motta Coqueiro.

O Cruzeiro e o Monitor Campista, folhas que dominavam a opinião de Campos, o primeiro no intuito de triunfar na oposição pessoal ao delegado, o segundo emalhado na rede da animosidade pública, acirraram desde logo o seu estilo em desabono do réu.

No Cruzeiro, sob a rubrica de alto efeito: Caso horroroso; no Monitor, sob a três vezes mais comprometedora: A fera de Macabu, o submisso dicionário foi explorado pelos publicistas, impelidos pela sede vesana de adjetivos, ora sentimentais como um livro de Lamartine e que eram consagrados em s aos assassinados, ora infamantes como um baraço e estes oferecidos, dedicados e consagrados a Motta Coqueiro.

Hurras congratulatórios respondiam às notícias recebidas pelo correio de quando sabia-se da prisão de algum escravo, ou de algum cúmplice da e em altos brados exigia-se a expedição de tropas para todos os pontos, a de que fosse prontamente capturado o bárbaro mandante, cujo procedimento atroz merecia punição tremenda, para ser desafrontada a civilização Campos, Macaé e Macabu!

Não demorou muito que fossem presos Florentino Silva, Faustino Silva, e Domingos, mas o principal criminoso parecia zombar de todas as pesquisas. A polícia, cuidadosa em seguir-lhe ao encalço, chegava sempre depois que ele estava distanciado.

À medida que se decorriam os dias formava-se uma lenda tristíssima. Já não era só dizer-se que os cadáveres foram encontrados, segundo o Cruzeiro, já lacerados pelos cães e aves carnívoras; acrescentava-se que, tendo podido escapar à matança, apareceu uma infeliz filha de Francisco Benedito, rota e faminta, ainda mais, digna de compaixão pelos seus poucos anos.

Pobre menina! dizia-se, estremece ao ouvir o nome do fazendeiro, e perguntada por que tinha tanto medo desse nome, respondeu:

"— Estávamos eu e minha irmã escondidas em uma árvore; eu que era mais velha subi até as grimpas e minha irmã ficou oculta no oco da árvore. Em casa choravam e gritavam meus pais e meus irmãos, mas a pouco e pouco todos calaram-se.
Apareceu então cá fora o Motta Coqueiro, alumiado por um escravo seu que trazia um facho. Procurou em roda da casa e depois chegou-se à árvore, onde viu os cabelos de minha irmã, pelos quais tirou-a do escondrijo.
— Mata este demoninho, disse ele ao preto.
— Senhor, é muito pequena, tenha pena dela.
— Covarde, tu me pagarás; exclamou o fazendeiro, e segurando com a mão esquerda a perna de minha irmã, com a direita armada de um facão, partiu-a pelo meio e depois fê-la em postas.
— Falta-me ainda uma, disse depois.
Eu tremia, continuava a criança, mas felizmente ele não lembrou-se de subir à árvore."

E a crédula população bradava indignada:

— É a um malvado destes que querem livrar. Miséria da nossa terra; muito pode o dinheiro! Mas se o júri absolver, o povo far-se-á carrasco.

Enquanto assim era julgado, extenuado pelas continuadas jornadas, Motta Coqueiro arrastava-se pelas matas, para fugir à injusta posição.

Sedento, meditava primeiro e espreitava minuciosamente para chegar-se a algum ribeiro, que murmurando descia pelas grotas, brotando em sons tristes como um soluço.

Um mês depois da sua saída da cidade sentiu que as forças abandonavam-no e lembrando-se da família, dos filhos inocentes que ficariam ao desamparo e infamados, caminhou para uma casa que alvejava ao longe, e aí pediu agasalho.

Receberam-no com a delicadeza hospitaleira inata no sertanejo brasileiro, mas gradativamente foi diminuindo a prazenteria da família.

É que havia chegado o dono da casa, e antes só ali estavam mulheres.

Francisco José Dinis, chefe da família, que hospedara o foragido, era inspetor de quarteirão, e embora o seu tino policial não tivesse finura especial, a sua perspicácia estimulava-se com a lembrança dos prêmios no valor de dois contos de réis, oferecidos pelo chefe de polícia da província e a delegacia de Campos.

Ao ver aquele homem vestido de preto, com um lenço atado ao queixo, e uma fisionomia em que a desventura sulcara rugas indeléveis, o Sr. Dinis lembrou-se do criminoso, cuja captura era esperada com ansiedade geral.

Deixando só o hóspede, foi procurar um ofício que lhe tinha sido dirigido pela delegacia, e chamando a sua mulher, leu-o para que ela ouvisse:

— "Faça prender Manoel da Motta Coqueiro, alto, magro, corado, de sobrancelhas salientes e espessas, com uma grande mancha no rosto, casado, de 50 anos, e assim os escravos, que o acompanharem."

— E que tem este pobre homem de comum com o malvado, que querem prender? Pois não se está vendo que um homem como este. era incapaz de matar uma mosca! exclamou a esposa.

— Eles disfarçam muito, os celerados!

— E mesmo que fosse, aqui dentro é nosso hóspede.

— E eu sou sempre inspetor, aqui dentro, ou fora daqui. Vou confrontar.

O inspetor postou-se diante de Motta Coqueiro, que sentado à mesa da sala de jantar ceava tranqüilamente.

— Não me parece; mas é ele mesmo, está se vendo; vamos conversá-lo.

Depois da ceia, Motta Coqueiro conservou-se sentado, e segundo os estilos perguntou pelo número de membros da família de seu agasalhador e seus negócios.

Entabulada a conversação, o inspetor, afetando a mais sincera familiaridade perguntou ao hóspede:

— O Sr. vem de Campos?

— Estive lá, mas venho do sertão de Santa Rita.

— E quando passou por Campos não ouviu falar do Motta Coqueiro.

0 fazendeiro, sem pestanejos sequer, respondeu com firmeza.

— Ouvi.

— Que malvado, hem? Uma família inteira, velhos e crianças, e até a própria casa, tudo destruiu. Nem enforcado oito vezes paga o crime que cometeu.

— Talvez se o senhor o conhecesse não dissesse o mesmo. Eu não acredito que Motta Coqueiro tivesse alma para semelhante horror. É um homem sério o Motta Coqueiro, que eu conheço.

— Quanto à certeza do crime, já não há dúvida: os próprios escravos e os dois homens que ele pagou para o mesmo fim confessaram o crime.

— Os dois homens que ele pagou, acudiu Motta Coqueiro comovido; mas quem é que espalha isto, santo Deus?

— Oh! o senhor conhece bem o assassino; mostra-se tão penalizado!

— Sim, fomos amigos. Tenho até bem gravado na memória um sinal pelo qual é fácil conhecê-lo.

— Eu também sei: uma grande mancha no rosto.

— Exatamente, e deste lado.

O incauto fazendeiro afastou o lenço e deixou ver o maldito sinal, que o dava conhecer.

— Está preso! gritou o inspetor.

— Por quê? perpetrei algum crime? perguntou o hóspede perturbado.

— Os tribunais dirão. Está preso por que o senhor é o Motta Coqueiro; não pode negá-lo, e foi o senhor mesmo quem acabou de mostrar a mancha que Deus pôs-lhe no rosto para que seja conhecido em toda a parte. Está preso.

— Senhor, disse humildemente o fazendeiro; não tento resistir, e entretanto, se eu fosse um malvado, bem sabe que à primeira voz de prisão, tê-lo-ia feito cair varado por uma bala. Deixe-me seguir; o senhor é pai, é marido, pode vir a ser perseguido sem culpa, como eu hoje sou; compadeça-se de minha desgraça.

A mulher e os filhos de Dinis tinham todos corrido para a sala de jantar, e olhavam espantados para o hóspede, cujas barbas orvalhavam-se de lágrimas.

O fazendeiro precipitou-se sobre as crianças e ajoelhando-se, e cingindo-as em seus braços, continuou:

— Olhem bem para mim, meus filhos, olhem. Digam; eu tenho cara de um malvado, digam, digam a seu pai? Peçam-lhe que não desgrace uma família inteira, perseguida injustamente.

As crianças pálidas tremiam abraçadas pelo angustiado fazendeiro; a esposa de Dinis chorava, mas este desapiedado e inexorável, vendo o hóspede com os seus filhos entre os braços, após instantes de hesitação, atirou-se furioso sobre ele e agarrou-o pelas costas, gritando:

— Rapazes, tragam-me cordas.

Dois pretos aproximaram-se imediatamente e o fazendeiro foi amarrado, apesar dos seus rogos e protestos de que mesmo sem esta medida não tentaria fugir.

Às seis horas e meia da tarde, do dia vinte e três de outubro, desde a rua Beira-Rio até a Praça de S. Salvador, onde está situada a cadeia de Campos, a população curiosa aglomerava-se para assistir a um triste espetáculo.

Descalço, com as mãos algemadas, os olhos baixos, as faces emagrecidas e lívidas, Motta Coqueiro desembarcou da Barca de Passagens acompanhado por grande número de soldados.

O delegado de polícia, Dr. Almeida Barbosa, que esperava o preso a saída da barca, era alvo das mais entusiásticas manifestações, mas em vez da natural expansão do seu semblante conservava-se frio e até mesmo comovido.

Ao ver o modo por que o preso era conduzido, o nobre doutor estremeceu, mas a sua comoção não pôde ser percebida; porque uma nuvem de assovios e alguns projéteis atirados contra Motta Coqueiro, causando indignação em vários grupos, desviou a atenção geral.

Contida pela polícia a baixa manifestação do ódio popular, o desventurado fazendeiro foi conduzido à prisão, cuja guarda foi dobrada.

Declarado incomunicável pela crueldade da lei, desfizera-se-lhe a única esperança que o alentara durante a vergonhosa e fatigante viagem: a esperança de haurir nos beijos de seus filhos e nas lágrimas de sua esposa e enteado a triste consolação da amizade.

A grade da prisão trancou-lhe, porém, não só a consideração social, mas também a entrada à afeição da família.

Felizmente superior à lei está a nobreza de alguns caracteres, e o gelo dos artigos legais não basta para petrificar algumas almas eleitas. Sob a toga dos magistrados batem muitas vezes corações de homens!

Alta noite uma das filhas do fazendeiro era introduzida pelo carcereiro até diante das grades da célula em que ele jazia, destroço de um grande nome, solene no seu infortúnio.

A baça luz de um grande lampião alumiava o corredor e projetava a claridade crepuscular no interior da célula.

— Papai, papai, exclamou a menina, pondo os braços por entre as grades; venha comigo para ver se mamãe deixa de chorar. Ela está muito doente. Um punhal vibrado, pela mão do verdadeiro assassino de Francisco Benedito, não teria ferido mais fundo no coração do desventurado réu.

De um salto veio colocar-se junto da grade e seus lábios procuraram sôfregos as faces da menina.

O carcereiro, com os braços cruzados e encostado à parede em frente à grade, assistia imóvel à triste cena de expansão do amor paterno e da inocência filial.

A menina, aproveitando a ocasião em que seu pai deixara-a um instante para enxugar as lágrimas, dirigiu-se ao carcereiro.

— Para que é que tem fechado a porta do quarto de papai? Ele precisa de ir ver mamãe; abra-lhe a porta.

— Ele está preso, minha menina, disse o carcereiro, que se abaixara e beijou a menina; não se pode abrir o quarto dele.

— Deixe o senhor, minha filha; ele não pode fazer o que você lhe pede. Venha conversar com seu pai.

Um leve ruído, vindo do lado da porta principal da cadeia, despertou a atenção do carcereiro, que deixou a menina e, pé ante pé, dirigiu-se à escada.

Três homens embuçados chegavam neste instante ao patamar. Disfarçadas as fisionomias por meias-máscaras de pano negro que caíam-lhes das sobrancelhas até a altura dos lábios.

Antes que o carcereiro tivesse tido tempo de proferir uma só palavra, um dos embuçados, arrancando do rosto o pano negro, deu-se-lhe a conhecer.

— Ah! exclamou o carcereiro; perdoe-me V.S., mas eu não podia desconfiar sequer.

Quando o carcereiro concluiu a desculpa, já o embuçado tinha-se de novo mascarado e perguntou:

— Não tinha o senhor recebido ordem para não consentir que ninguém falasse a Motta Coqueiro?

— Sim, senhor, tartamudeou o carcereiro, mas...

— Mas entendeu que não devia cumpri-la. Tenha bondade de ir ouvir o que diz aquela menina ao seu protegido.

Como se estivesse obedecendo a um superior, o carcereiro afastou-se sem fazer a mínima observação.

Ficando sós, disse aos outros o embuçado, que se deu a conhecer ao carcereiro:

— O sinal está já demorando; quem sabe se não resolveram o contrário?

— Não é possível, respondeu um outro; dentro em meia hora, eu tenho certeza de que ele poderá estar em minha casa.

— E dentro em duas completamente fora do alcance dos seus caluniadores, respondeu o terceiro.

Passados alguns minutos, ouviu-se um assovio prolongado e agudíssimo, e um grito de alerta da sentinela.

Os três embuçados disseram ao mesmo tempo:

— Ei-los.

Caminharam então para a célula de Motta Coqueiro.

— Eu não quero comprometê-lo, senhor, dizia o preso para o carcereiro; deixe-me abraçá-la, somente; bem sabe que eu não tomarei a vê-la tão cedo. O senhor foi generoso consentindo que ela visse-me, complete a obra de caridade, deixando que a possa abraçar.

— Abra, disse o embuçado que influía no ânimo do carcereiro; eu me responsabilizo.

A grade rodou sobre os gonzos, e a menina foi colhida pelos braços do fazendeiro, que murmurou:

— Obrigado, obrigado, meu amigo, eu bem vi que me não havia abandonado.

— Prudência, prudência; é preciso que não nos ouçam, ponderaram os embuçados.

— Vós?! oh já não sou tão desgraçado.

— Crê que eu seja um homem honrado, perguntou o embuçado ao carcereiro.

— Sr. doutor! ...

— Agradecido. Vou pedir-lhe que me preste um grande serviço. O senhor irá para a sua sala e consentirá que tranque-o por fora. Ainda mais; guardará silêncio sobre o que se passa agora aqui, segredo absoluto.

— Estou pronto, respondeu o carcereiro; tenho apenas a lembrar-lhe o comprometimento que daí resultará para V.S. e também para mim.

O embuçado, sem responder à objeção dirigiu-se imediatamente ao fazendeiro.

— Não há tempo a esperdiçar, meu amigo; siga-nos.

Motta Coqueiro saiu levando nos braços a filha e todos dirigiram-se para a escada.

Os embuçados desceram alguns degraus, mas foram obrigados a parar interrogados pelo fazendeiro acerca do que iam fazer.

— Fugir, e já; responderam eles.

— Não; não quero fugir, afirmou ele nobremente; era comprometê-los talvez e certamente deixar ainda mais enegrecido o meu nome. Quero justificar-me.

— Mas lembre-se de que só tem em torno de si ódio e calúnias; lembra-se de que pode ser condenado, porque todas as provas são contra si.

— Não importa; Deus defender-me-á. Adeus: entrego-lhes minha filha.

E voltou resolutamente para a célula, onde não era já encarcerado pela vigilância dos agentes policiais mas pela sua própria dignidade.

Às cinco horas da manhã do dia vinte e quatro de outubro de 1852 desceu algemado a escada da cadeia de Campos a amaldiçoada vítima da leviandade pública.

À porta agrupava-se a multidão e alinhava-se uma companhia da força policial, que devia acompanhar o famoso réu até a cadeia de Macaé, termo em que foi perpetrado o crime.

A atitude humilde do fazendeiro tinha o sainete da dignidade inalterável das consciências limpas, e o seu passo, embora tardo, cobrava firmeza à esperança de pronta justificação. Vá esperança que nem ao menos demorou seus enganos lisonjeiros!

Alguns dias depois da sua chegada a Macaé, cuja população recebeu-o com as mais hostis e ruidosas manifestações, aumentadas de odiosidade dia por dia, graças aos libelos dos homens de influência, e muito particularmente do Dr. Velho da Silva, por esse tempo delegado de polícia e juiz municipal, Motta Coqueiro foi mandado para Macabu a fim de ser interrogado.

O seu eloqüente advogado, o Dr. Fonseca, tomou-se de tanto receio pela sorte do fazendeiro que exigiu sérias providências para que fosse respeitada a vida do infeliz.

É que as trevas do futuro escondiam o lôbrego aspecto do patíbulo; ao contrário talvez aquele honrado caráter cerrasse os ouvidos e os olhos aos sinistros planos, que suspeitava tramados.

A desilusão de Motta Coqueiro foi atroz ao chegar ao lugar, onde outrora tinha sido, senão respeitado, pelo menos temido.

Os inquéritos tinham sido começados e a mais baixa gente, a escória popular, fora chamada de preferência.

Vinham depor testemunhas dos lugares mais afastados de Macabu e homens que eram notoriamente conhecidos como inimigos dos réus.

Os nomes das testemunhas sós bastaram para despersuadi-lo da possibilidade de justificação.

Os depoimentos deviam ser tomados a Balbina, Sebastião Corrêa Batista. mais conhecido por Sebastião Pereira, o Viana da venda, Lúcio Francisco José Ribeiro, Manuel João de Souza Moço, Joaquim José Licério, Amaro Antônio Batista, José Pinto Neto, José Antônio do Rosário, Joaquim José da Costa, Carolina, Fernando, Tereza e José de Souza Marins, alcunhado o Botão, único que não se quis prestar a depor sobre o que não sabia.

Compareciam também às audiências os réus presos Faustino Pereira da Silva, Florentino Silva, Domingos e Bento Pereira da Silva, que trocou depois o banco de acusado pela cadeira de testemunha!

Comentando este fato diziam os amigos de Coqueiro, não sem razão:

— Parece que a autoridade policial colocou os seus policiados nesta posição diante de Coqueiro: condenai ou sereis condenados.

Balbina jurou que sabia que o seu senhor tinha mandado matar a família de Francisco Benedito pelos seus parceiros Fidélis, Alexandre, Carlos e Domingos, e sabia porque tinha ouvido ao fazendeiro perguntar no corredor aos escravos se tinham morto a todos. A morte foi feita em um domingo, e o senhor chegara ao sítio na véspera. Com os escravos não tinha ido pessoa forra, e a senhora achava-se na cidade.

Chamada, porém, a segundo depoimento, jurou que ouvira no corredor perguntar o seu senhor:

— Então o que eu mandei fazer já está pronto?

— Tudozinho, responderam Fidélis e Alexandre, a família toda.

— Pois quero a casa queimada; tornou-lhes o senhor.



Carolina disse que Motta Coqueiro na sexta-feira tinha mandado quatro escravos matar a família e atacar fogo na casa, morte que eles só fizeram no domingo, e na segunda-feira atacaram fogo. Isto contaram-lhe as mucamas Justina, Catarina e Isabel. No dia da matança achava-se em casa o Flor.

No segundo depoimento declara que ouviu, na segunda-feira, a pergunta do senhor aos escravos sobre a execução do crime.

Tereza declarou que só sabia do fato por tê-lo ouvido aos parceiros, que também, quando ela observou que Carlos tinha um lenço â cabeça, disseram-lhe que no fazer as mortes o homem lhe quebrara a cabeça.

Fernando declarou que tinha ouvido falar no crime às escravas Balbina e Carolina.

Parte das outras testemunhas juram também por ouvir dizer; outra parte, porém, baseava-se em razões d e grande valia para as autoridades de então.

Sebastião depôs que o fazendeiro mandou matar a Francisco Benedito para apoderar-se das benfeitorias d o sítio. Antes, querendo pôr fora o agregado, mandara-lhe roçar ao redor da casa para impedi-lo de trabalhar, e a senhora de Motta Coqueiro prometera não voltar ao sítio sem ver morta a família de Francisco Benedito e principalmente uma das filhas.

Florentino tinha amizade com o Motta Coqueiro, havia seis meses, e este mandara por aquele e Faustino, que já tinha feito mortes, assassiná-lo por intrigas nascidas de esponsais tratados entre ele testemunha e uma filha de Francisco Benedito.

Manuel João de Souza Moço declarou que tinha também sido convidado por Motta Coqueiro para matar, quer Sebastião, quer a família do agregado, pedido a que ele testemunha não acedeu. Antes, mandou-o Motta Coqueiro cobrar cem mil réis a Anacleto Vieira e entregá-los a Faustino, mas não se havendo efetuado a cobrança, este revelou-lhe que devia receber essa quantia pelas mortes de Sebastião e dos outros.

Soube do assassinato da família e as particularidades dele porque, por uma noite chuvosa, indo ao sítio conversar com uma das pretas, ouviu a narração aos escravos.

A causa do crime era ter querido Motta Coqueiro seduzir uma das moças assassinadas, e, não conseguindo, expulsar o pai das suas terras.

Joaquim José Licério soube por ver os corpos assassinados e porque, no dia dezesseis, ouviu Peregrino contar que Motta Coqueiro encarregara dos assassinatos os seus parceiros, os dois homens livres, e um outro homem de bem, cujo nome não dizia. Faustino sufocou o velho; Flor a sua mulher e depois mataram as filhas, e o filho que correra para o mato.

Também Faustino contou-lhe que foram os escravos Alexandre, Carlos, Fidélis e Domingos, em presença de Motta Coqueiro, que assim vingava-se de não ter conseguido seduzir uma das filhas de Francisco Benedito.

Sabia mais que Faustino e Flor faziam mortes por dinheiro.

Lúcio Ribeiro depôs que encontrou-se com Faustino e que este lhe contara que andavam culpando-o pela morte da família de Francisco Benedito, mas em seguida o próprio Faustino lhe dissera que os réus acusados eram os verdadeiros autores.

Entrando nas particularidades do crime, disse-lhe Faustino que, antes de perpetrarem o bárbaro crime, as moças foram desacatadas e violadas pelos dois homens livres, em seguida pelos escravos e só depois as mataram e com elas as crianças.

Foi uma boa patuscada, disse-lhe Faustino, e sobretudo não havíamos de perder assim duzentos mil réis que nos dava Motta Coqueiro.

Tinha outras provas; a ele próprio o fazendeiro ofereceu uma égua para ser do número dos assassinos, oferecimento que ele recusou.

Dizia-se que Faustino tinha espetado um pé, correndo após o filho de Francisco Benedito, e com efeito ele testemunha viu Faustino manco. Os escravos confirmaram-lhe a narração de Faustino, que era useiro e vezeiro em tais crimes.

Para provar que Faustino era criminoso bastava dizer que ele tratou logo de esconder-se nas matas.

Do que ele testemunha se admira é de ver Florentino no número dos assassinos!

Passando-se à inquirição dos cúmplices, disse Bento Pereira da Silva que não sabia por que estava preso e quanto às mortes tinham sido feitas pelos outros, porque o seu irmão Faustino lho disse, convidando a ele réu para ir ressuscitar Francisco Benedito de quem era amigo.

Não se admirara deste procedimento de seu irmão que havia antes assassinado a João de Carvalho, pelo que foi sentenciado, e não concluiu o cumprimento da pena por se ter evadido da prisão.

Faustino Silva, respondendo ao inquérito, confirma a segunda parte do depoimento, porém nega a primeira, afirmando que ouviu dizer que as mortes tinham sido feitas por um preto desconhecido, o Botão, e escravos de Coqueiro, mandados por este.

Tratando de contrariar as testemunhas. apresenta-as como seus inimigos. e pondera que os que dizem que sabiam que ele réu queria matar Francisco Benedito são também criminosos, porque não avisaram a autoridade.

Florentino Silva, depois de expor a simplicidade de suas relações com o fazendeiro, concluiu por imputar o crime a Faustino, Manuel João e os escravos.

Domingos limitou-se a narrar o que se tinha passado â sua vista; confessa não ter visto Carlos ferido, e clama pela sua inocência.

Seguiu-se o interrogatório do fazendeiro.

Sem acusar ninguém, porque não desejava fazer juízos temerários, Motta Coqueiro buscou apenas, na simplicidade das suas respostas, deixar clara a sua inocência.

Os fatos ocorridos no sítio foram expostos minuciosamente, e invocados sérios testemunhos para explicar a coincidência da sua última chegada ao sitio com o assassinato da família.

A temerosa acusação da cobrança do vale foi desfeita com a singela narração de uma pequena transação comercial.

Confrontado este com os contraditórios depoimentos das testemunhas, ficava por demais provada a inocência do réu, mas a exaltação dos espíritos, o clamor popular impediam a boa marcha dos espíritos.

O subdelegado Oliveira apressou-se em pronunciar os réus, como autores do crime de homicídio previsto no art. 192 do código criminal, aduzindo as circunstâncias agravantes de paga ou esperança de recompensa, entrada em casa do ofendido com intento de cometer o crime; resultar, além do crime, outro mal ao ofendido ou pessoa de sua família, aumento da dor física por circunstância extraordinária; aumento do crime por circunstância extraordinária de ignomínia, pela natureza irreparável do dano; e, finalmente, aumento da aflição ao aflito.

Conclusos os autos ao juiz municipal substituto de Macaé, foram enviados ao promotor que, depois da apreciação das provas, pediu que se fizesse a devida justiça.

Motta Coqueiro, declarado incomunicável desde a sua prisão até a véspera de seu julgamento, continuou a sua peregrinação de infortúnio.

Apregoavam por toda a parte os seus detratores que sempre fora um homem perdido no conceito público, e entretanto não o julgaram seguro na cadeia de Macaé, pelo que foi mandado para a capital do império.

Cousa extraordinária! Desde que o mandante do nefando morticínio foi encarcerado, as autoridades, que tão solicitas se mostravam na captura de todos os réus, esqueceram os demais escravos de Motta Coqueiro, que tinham sido acusados e ninguém mais ouviu falar em diligências à casa do fazendeiro a fim de prendê-los!

É que a população pedia sangue para desafrontar-se e já havia quatro vítimas para satisfazer-lhe a secura das fauces justiceiras.

Fossem elas justa ou injustamente imoladas, pouco importava; o que era mister, o que não podia ser dispensado, era o espetáculo da morte para reparar a morte.

O verdadeiro criminoso devia alegrar-se na sua barbaridade ao ver como a sociedade demonstrava compreender a justiça.

Enquanto na paz insensata da vingança ele passava desembaraçado, talvez por diante dos mesmos magistrados, que se jactavam de ler na fisionomia do fazendeiro os atestados do crime; uma família esmagada pela execração pública fraqueando diante de tão dolorosa sentença, buscava retratar-se de um delito que não tinha cometido, e riscava do nome o apelido herdado a seus pais!

E Motta Coqueiro, o cavalheiro que repelia evadir-se para justificar-se; o homem poderoso que contemporizava com o agregado para não parecer que abusava da força de que então podia dispor, era apontado, injuriado pelo anônimo popular e pela imprensa como um tipo de maldade e de cinismo.

Longe, porém, da sociedade polida e amiga da justiça houve um coração a quem a sorte do fazendeiro compungiu até a loucura.

Sabendo no interior das matas de Macabu, por onde errava foragido qual a acusação que pesava sobre seu senhor, Carlos, que involuntariamente contribuíra para ela, sentiu revoltarem-se-lhe os instintos generosos.

Quisera poder fazer acreditar a todos a inocência do seu senhor; quisera pela verdade confundir a calúnia que já ameaçava a vida, depois de haver tisnado a reputação e a honra de um homem de bem. Mas era impossível que lhe dessem crédito, a ele, um escravo e demais acusado também como autor do crime.

Impelido pelo impotente desespero, que o assenhoreara, o nobre escravo resolveu protestar de maneira solene contra a injustiça que se fazia, quer a si, quer ao seu senhor.

— Basta que matem aos que lhes caíram às mãos; — disse ele uma tarde em que sentado à margem parecia fascinado pela correnteza do rio.

Ditas estas palavras, Carlos atou aos pés com cuidado extremo duas enormes pedras e ajoelhando-se então bradou como se quisesse que a sua voz ecoasse bem longe:

— Perdão, meu senhor; nós fomos os culpados da desgraça, mas somos também inocentes.

As águas do rio abriram-se espumando e fecharam-se logo sobre o corpo de um suicida, que prestava com o seu sacrifício homenagem à inocência do fazendeiro.

Infelizmente para este, o nobre suicida não fazia parte da sociedade, que o devia julgar e que amaldiçoava-o antes de ouvi-lo.

Não obstante a coragem brônzea de Motta Coqueiro não se quebrava; e foi com a maior serenidade, senão com a mais santa esperança que em um dos dias de janeiro de mil oitocentos cinqüenta e três, entrou pela sala do júri, na cidade de Macaé.

Pelas dez horas da manhã imenso concurso de povo afluía para o edifício, que servia de templo â justiça humana, vendada desde o seu nascimento por um sonho de imparcialidade doentia, e agora ainda mais cega pela sobre-excitação sentimental que a solicitude da calúnia tinha sabido despertar.

Os pais de família honestos e de consciência transparente disputavam-se lugar nas bancadas incômodas do tribunal, cheios de uma ansiedade indizível.

Todos queriam ver o réu principal, decididos a apascentar as manadas de apóstrofes de promotoria e ódio insaciável, que baliam-lhes esfaimadas, conchegando-se agora e para logo estramalhando-se do aprisco moral, construído por uma certa boa fé de convenção, que levava os homens, ainda os mais sisudos, a trapilharem maldições nos esterquilínios formados pela intriga em roda dos caracteres limpos.

Uma balaustrada dividia a sala em dois planos. No mais elevado em que via-se uma comprida mesa coberta por um pano verde orlado de galão amarelo, e cujos lados e cabeceira do fundo estavam cercados de altas cadeiras negras de encosto de pau. A cabeceira, que ficava próxima à balaustrada, era flanqueada por quatro bancos de assento de madeira. Junto destes bancos uma pequena mesa fazia as vezes de tribuna da defesa.

Ao longo das paredes encostava-se grande quantidade de cadeiras de assento de palhinha.

Fora da balaustrada a sala, que dava entrada a uma estreita escada, era ocupada por muitas linhas de compridos bancos.

Este lado destinava-se aos espectadores; o outro aos juizes, que deviam ou pautar-se pela opinião pública, ou arcar com a responsabilidade tremenda que lhes sobreviria de qualquer decisão que a desgostasse.

Também enquanto os espectadores davam largas às suas expansões, um recolhimento religioso solenizava a atitude dos juizes.

O presidente do tribunal fez soar a campainha presidencial, para acalmar um prolongado sussurro que se derramou no recinto.

Apareceu então no topo da escada, todo vestido de preto, Manuel da Motta Coqueiro acompanhado por Domingos, Florentino Silva e Faustino Pereira da Silva, rodeados pela força pública.

Os desgostos tinham descorado as faces do fazendeiro e branqueado de todo as barbas, que caíam-lhe como um disco de arminho sobre a gola da sobrecasaca preta.

Entrecerravam-lhe as pálpebras o constrangimento e o vexame, mas o andar era firme, e o corpo conservava o aprumo da confiança.

Os outros réus careciam da serenidade aparente, que envolvia a figura principal do quadro.

Florentino Silva denunciava mais do que todos o pânico pelo qual estava subjugado; tremia como se fosse presa de um violento calafrio.

Faustino, embora aparentando mais sangue frio, traía entretanto a sua perturbação.

É que sabia ao certo que, fosse qual fosse o resultado do processo, seria conduzido de novo à prisão para nela viver sepultado durante os anos que lhe faltavam da pena, que se lhe tinha cominada como assassino, além da que devia sofrer pela evasão.

O ignorante Domingos, ainda que não pudesse demonstrar pelo rosto negro e sem mobilidade o que lhe ia no íntimo, deixava não obstante bem claro que um pressentimento sinistro fazia-o desanimar.

— Qual júri, nem meio júri para esses malvados, fosse eu autoridade e lhes diria onde paravam eles agora, exclamou um espectador vendo entrar os réus.

— Não, senhor; cumpra-se a lei, ela quer assim, seja assim. Pode ser que ele traga documentos que provem que é inocente. Quem sabe lá?

— Ora vá bugiar, meu amigo; mandou-se intimar a mulher e um amigo dele e nenhum dos dois apareceu. Se ele fosse inocente cá estariam todos os seus parentes e não me consta que esteja aqui nenhum.

— Quanto a isto não; você lembra-se do dia em que ele chegou aqui pela primeira vez; lembra-se também da hora do desembarque da corte? Se vissem algum parente enxovalhavam-no por força, e embora um homem seja muito criminoso não quer que se desatenda a sua família. Eu dou-lhes razão.

— Pobre homem, exclamou em outro banco um espectador; Deus o proteja e o defenda.

— Ora essa, homem! responderam a esta manifestação de piedade; pois o senhor tem pena daquele demônio? E preciso ou ser um santo ou ser tão bom como ele. Matar uma família inteira, velhos e crianças, e ainda haver quem se condoa de semelhante assassino? ...

— O senhor só poderá falar assim depois da decisão do júri; por ora não.

— Pois tranque-me a boca, se não quiser que eu fale e além disso os incomodados são os que se mudam.

— No vapor em que ele veio, narrava um homem que parecia merecer consideração aos ouvintes, teve ocasião de escapar-se. Durante toda a noite, as praças, que enjoaram desmesuradamente, ficaram desacordadas, e ele se quisesse podia ter-se atirado ao mar. Já bem perto de terra, ele, que estava completamente. livre, teve quem o aconselhasse a fugir, e apenas sacudiu negativamente a cabeça. Portanto é fora de dúvida que o infeliz espera justificar-se.

— A mim também parece que isto é um sonho; porque sempre ouvi dizer que Motta Coqueiro não tinha ânimo de fazer mal a ninguém.

— Ora até que afinal o encontro; já fui à sua casa e a todos os pontos da cidade em que o Sr. costuma parar. Recorda-se que ontem à noite o senhor sustentava que todos os parentes e inclusive a mulher de Motta Coqueiro tinham-no abandonado? Eu dizia-lhe que estava completamente enganado, e, como não gosto de dizer as cousas sem provas, queira ouvir a leitura desta carta, cuja cópia foi tirada pelo advogado. Escute:

"Meu caro enteado. — Brevemente devo ouvir do tribunal do júri ou a confirmação da calúnia com que nos perseguem, ou a satisfação que a sociedade deve à minha inocência.
A princípio quase desanimei da minha sorte, lembrando o modo por que fui tratado pelo Oliveira e a iniqüidade da pronúncia com que conseguiram prolongar a minha difamação, mas hoje escrevo-te com a maior esperança, apesar de saber qual o juízo que em geral se faz de mim.
Consta-me que minha pobre mulher, e tua infeliz mãe vai ser intimada como informante. Eu entendo que é desnecessário o comparecimento dela, não só porque em cousa alguma adianta, como também porque, se a minha desgraça levar-me até a ser condenado, ela não teria resignação para lembrar-se da recomendação que lhe fiz, quando começou a fase negra da minha vida.
Peço-te, pois, que a convenças de que não deve comparecer. Seria agravar os seus incômodos, e talvez aventurar-se a um desrespeito da população.
Bem sabes, meu caro enteado, que a fé é o melhor consolo dos infelizes; quero, portanto, pedir-te que durante o mês de janeiro, todos os dias reúnas os meus inocentes filhos e todos rezeis por mim.
Deus há de ouvir os seus rogos.
Adeus, beija os meus filhos, adeus; a esperança faz-me escrever-te: até breve.

Manuel da Motta Coqueiro."

— Então, insistirá ainda em dizer que as relações da família Coqueiro estão cortadas?

Mas quer estejam, quer não, esta carta não serve para provar que ele não é um refinado malvado.

— Não tratei disto; quis só mostrar-lhe que estava em erro.

Pela maneira por que o leitor da carta mostrou-se tão empenhado na defesa do fazendeiro é fácil reconhecer o Sr. Martins, o gratuito sustentador da inocência do principal dos réus, apesar de tudo e de todos.

— Veremos ainda quem vence, exclamou ele; só se não há mais do que cegos nesta terra.

A sessão tinha sido aberta, e fazia-se o sorteio dos jurados, acompanhado pelos comentários dos espectadores.

Havia nomes que eram aplaudidos e outros que provocavam sussurro e reprovação nas galerias.

— Ora é boa; este é conhecido como apaniguado do assassino; se escolhem jurados iguais, a fera está absolvida por força.

— Ainda ontem secou a goela em vociferar contra o juiz municipal, por ter pronunciado Coqueiro, e hoje entra no conselho. Esta terra vai pela água abaixo.

Felizmente para esses zelosos amigos da justiça, o desgosto que os afetava era passageiro, porque a voz do promotor, com um acento severo, bradava logo: — recuso!

Houve um momento de verdadeira confusão na assembléia. Afetos e desafetos do réu não pronunciaram a princípio uma única palavra, mas de parte a parte descobria-se profundo e sincero receio.

A sorte ordenou que fosse lido um nome, em torno do qual agremiavam-se justamente as simpatias gerais: — João Seberg.

Um homem vestido de preto, alto, de compleição robusta, fronte descalvada e olhar inteligente, ergueu-se de uma das cadeiras laterais, e fez ouvir com voz firme: — presente.

Caminhou direito à mesa e tomou o lugar que lhe foi designado.

Finda a espécie de estupor, que dominou a assembléia, principiaram os comentários:

— É notório que se davam muito, e quando a fera vinha aqui a negócios, passavam horas e horas conversando e muitas vezes ao sol.

— Isto não me incomoda, se ele entender que o homem é criminoso, condena-o. Tivesse ele de julgar o próprio pai e se acreditasse que era criminoso, tenho certeza de que o condenava.

— Bem, acredito; mas o que é verdade é que um amigo olha sempre os atos dos outros com o desejo de descobrir o melhor lado.

Organizado o conselho, a sessão começou a marchar no meio do maior silêncio.

Foi lido o processo e em seguida feita a inquirição das testemunhas e dos réus.

Seguiu-se a acusação cuidadosa de causar movimentos de indignação contra os réus, graças aos serviços conseguidos à benevolência da retórica enferma dos juristas.

Quando já os adjetivos tropeçavam e retardavam-se de tão estafados, o promotor pintando o quadro de um pai aflito, uma velha mãe desesperada, duas pobres moças ameaçadas duplamente na sua virginidade e vida, e finalmente três criancinhas acordadas de súbito, e abraçadas umas com as outras, trêmulas de receio, enquanto lá fora, um moço, desarmado e atacado de todos os lados, cala inundado em sangue, precedendo aos seus na longa viagem da morte desenhado assim com manifesto zelo e discriminação de planos e exuberância de tons este quadro comovente, o promotor em nome da humanidade, da civilização e da lei, pediu para os réus a pena de morte.

A assembléia teria prorrompido em palmas e bravos se a campainha, tangida pelo magistrado, não tivesse a tempo sustado manifestação.

Motta Coqueiro tinha enlividecido e duas grossas lágrimas orvalharam-lhe preguiçosamente as faces.

Coube então a palavra ao advogado da defesa.

As suas primeiras palavras dominaram absolutamente o murmúrio das galerias, que foram a pouco e pouco abonançando até a comoção.

Era a força mágica da verdade e da justiça que vencia na luta as tríplices forças da animadversão popular.

Entretanto o respeitável advogado não tinha atacado o assunto se não pela face jurídica; limitava-se apenas a analisar o depoimento contraditório das testemunhas e a cegueira dos magistrados na instrução do processo.

Ciciava pelos espectadores o pânico da derrota; como que acordavam de um longo pesadelo, cheios de despeito porque viam fugir-lhes dentre as mãos as presas, que tinham deliberado imolar em holocausto à justiça.

Mas ao mesmo tempo a malignidade descobriu meios para justificar as testemunhas, em sério perigo de serem declaradas perjuras.

Um anônimo achou e fez circular por toda a assembléia uma evasiva, que foi sancionada como sensata:

— Ora, segredavam-se os espectadores; não há nada a admirar na confusão das testemunhas; são pobres homens e mulheres que ignoram o sentido das palavras e que não atinam com a finura e atilamento do advogado, que os quer perder.

Quase certo da vitória, pela esplêndida derrota que tinha obtido dos inimigos do seu cliente, o advogado desistiu da palavra, para retomá-la após a réplica da promotoria. A resposta seria a coroação do triunfo que a e1oquência a serviço de uma nobre causa acabava de obter.

O promotor público, porém, desistiu do direito de replicar; ou melhor a justiça, que havia conservado os réus incomunicáveis, que deu azo a que circulassem boatos de uma execução ilegal, negava ainda aos réus o direito de ampla defesa quando a opinião começava a abalar-se e a voltar-se a favor deles!

Digamos em uma única frase: a justiça prostituiu-se por não ter a coragem de suicidar-se.

O conselho retirou-se para a sala secreta a fim de responder os quesitos formulados pelo magistrado.

A ansiedade dos espectadores chegava já até a irritação; questionava-se, agredia-se com frases injuriosas; apostava-se pró e contra os réus.

Quando abriu-se a porta da sala para onde se retirara o conselho, todos silenciaram repentinamente.

Foram então lidos em alta voz os quesitos e as suas respostas.

Por unanimidade de votos reconheciam-se o crime e as circunstâncias agravantes e negavam-se todas as atenuantes.

O advogado da defesa, que se fora gradativamente alevantando à proporção que ouvia as respostas do conselho, ficou finalmente de pé, lívido, com o braço inteiriçado e trêmulo, estátua da indignação, impotente para obstar um crime.

No semblante de Motta Coqueiro pairava a solenidade das grandes desgraças.

Terminou-se enfim a longa leitura dos quesitos pelo magistrado, e logo depois foi ouvida a sentença, que, pela decisão do júri, condenava à morte e ainda nas custas os malsinados réus. O juiz, porém, apelava em nome da lei.

A força pública tomou conta das vítimas que deviam expirar às mãos do carrasco, e a sala foi prontamente esvaziada pelos espectadores que foram abrir alas à porta do edifício com o propósito de insultar, ainda uma vez, o infortúnio dos seus semelhantes.

Chegado à prisão, o fazendeiro que fora tão rudemente ferido por um desengano atroz, pediu que lhe deixassem escrever à sua família.

A magnanimidade da justiça atendeu-lhe o pedido e o desventurado, molhando o papel com as lágrimas, escreveu quase ininteligivelmente:

"Meu caro enteado. Acabo de ser condenado à morte. Sirva de pai a meus desgraçados filhos."