Mulheres e creanças/Capítulo III

Wikisource, a biblioteca livre

CAPITULO III

A velhice das mulheres

 

 

Nas nossas continuadas predicas ácerca da transformação que é necessario operar-se em tudo que respeita á educação feminina, levamos em mira principal, duas cousas muito dignas de attender-se.

Primeiro: que a mulher torne quanto possa, independente de circumstancias exteriores, a marcha do seu destino, quer dizer, que ella não seja forçada fatalmente a seguir um caminho para o qual haja no seu espirito instinctiva repugnancia, que ella dispense na sua vida influencias estranhas e muitas vezes incompativeis com a sua indole.

Segundo: que ella se vá lentamente preparando na infancia e na sua tão curta e ephemera mocidade, para a quadra mais longa, mais difficil e podemos hoje dizer, mais dolorosa da sua existencia: a velhice.

Exemplifiquemos, para que melhor seja comprehendido o nosso raciocinio.

No que toca ao primeiro ponto, lancemos em roda os olhos e vejamos. Por toda a parte encontraremos argumentos victoriosos.

No estado presente da educação a mulher está sujeita a uma funesta dependencia, a qual mesmo sem tendencia para exagerações declamatorias, se póde chamar escravidão.

Assim como descuram dar ao seu corpo por meio da gymnastica a força, a elasticidade, a ligeireza, o vigor, assim descuram dar á sua alma a energia, que a torne superior aos preconceitos, e ao seu espirito a forte e larga educação, que a habilite para ganhar honestamente a sua modesta subsistencia.

Sente-se fraca, e pusillanime diante do trabalho, diante das luctas, diante da desgraça.

Confessa a cada instante o medo pueril que a avassalla; medo de não resistir ás tentações que a covardia dos homens arma á insensatez da mulher; medo do riso alvar com que os tolos lhe castigariam a viril energia; medo de se sujeitar ao trabalho incansavel e tenaz que ha de dar-lhe a independencia, a dignidade, a livre posse do seu destino.

Além do medo a impossibilidade absoluta.

Se nada sabe, o que ha de ella fazer? Podia dirigir a contabilidade de uma casa de commercio importante.

As mulheres com o seu instincto de ordem, mais desenvolvido do que os homens, são proprias para este genero de trabalho.

Podia, sendo medianamente illustrada, ser caixeira de um estabelecimento de modas, de uma loja de papel, de um mercador de fazendas, etc., etc. Tudo isto está em harmonia com a delicadeza dos seus orgãos.

Podia ensinar linguas, ensinar musica, ensinar e explicar as sciencias que houvesse aprendido, a historia, a arithmetica, a litteratura, a geographia.

Podia, tendo alguns fundos que houvesse herdado de seus paes, estabelecer qualquer pequena industria, emfim, ter uma acção propria, independente e não subordinada aos caprichos alheios, ou ás circumstancias eventuaes.

Mas como não sabe fazer nada d’isto, como a sua educação a pôz e a conserva n’um estado de absoluta e desoladora humildade, não tem senão tres caminhos a seguir.

Ou casar mesmo que não tenha pelo seu noivo nenhum sentimento de respeito; mesmo que o ache ridiculo ou estupido ou máu; mesmo que elle lhe seja imposto unicamente pelas conveniencias egoisticas do seu futuro; mesmo que nenhum laço de sympathia a elle a prenda, e d’esta funesta causa escusado será dizer quantos males terriveis não resultam para a sociedade e para a familia!

Ou ficar a cargo dos parentes mais ricos, que por commiseração a acolham, a alimentem, a vistam, a protejam, e n’este caso soffre e decahe a sua dignidade propria, a alma curva-se-lhe n’uma postura humilhante, deixa de ter responsabilidade, de ter opinião, de ter individualidade emfim; constitue-se um ser mutilado cujo aspecto enfermiço faz tristeza e dó, quando se não torna um temperamento azedo, atrabiliario, perverso, folgando no espectaculo de todas as desgraças alheias.

A terceira hypothese já todos a adivinharam infelizmente.

A mulher repellida da familia, porque a não quizeram inutil e pobre, não achando em si nem a coragem, nem a sciencia do trabalho, lucta contra o mal que lhe revela as suas traidoras miragens, mas se mão estranha a não soccorre e a não prende, succumbe, precipita-se e perde-se.

D’estas tres hypotheses exceptuamos, já se entende, todas as mulheres que tiverem a suprema felicidade de encontrar no homem a quem entregaram absolutamente o seu destino, além do noivo escolhido e preferido entre todos, o protector mais util e mais dedicado.

Exceptuamos tambem as ricas, porque essas que não tinham em si proprias a independencia, adquiriram-na indirectamente por meio da sua fortuna.

Mas a divisão infinita dos bens vae diminuindo mais e mais o numero das ultimas, e a felicidade negativa que ha na maior parte dos ménages tornando as meninas de pouca edade impacientes de sahirem da casa paterna, imprudentes e precipitadas na escolha, vae diminuindo em não menor proporção o numero das primeiras.

Como quer que seja, abandonemos essas duas cathegorias de excepções e achamo-nos em frente de uma numerosissima maioria.

 

 

Os resultados que encontramos são, portanto, os seguintes:

A incapacidade absoluta da mulher dominar o seu destino, incapacidade cujas causas já apontámos, produz estes tres generos de victimas.

A mulher que casou, porque não podia deixar de o fazer, que casou para ter pão, para ter casa, para ter luxo, para ter protector, um editor responsavel da sua vida, e que tendo sómente este objectivo, se não occupou nem um instante em estudar e conhecer o homem a quem ia para sempre entregar-se.

A creatura humilhada, dependente, parasita, vivendo das migalhas do luxo que a rodeia.

A desgraçada que a sua fraqueza inteiramente desprotegida perdeu e abysmou.

Nenhuma d’estas mulheres condemnadas ao descontentamento intimo, á dolorosa inquietação da consciencia, em resultado de uma causa identica, póde estar satisfeita comsigo mesma.

O que fazem, pois, para fugirem de si? Procuram quanto sabem e como podem, os outros.

As festas de uma folia burlesca, ou as festas de uma pompa deslumbrante, o mundo, emfim, a convivencia, o barulho, tudo que aturde, tudo que faz esquecer.

Ainda aqui os nossos calculos nos não illudiram.

A mulher procura o mundo, porque as alegrias que póde encontrar em si mesma, não só lhe não bastam para illuminar com ellas o lar onde vive com os seus, como lhe não chegam para si propria se distrahir e se contentar.

 

 

Entremos agora no segundo ponto que ha pouco tocámos.

A mocidade da mulher é forçosamente curta. Aquella que se compenetrar sensatamente d’esta idéa, o que deve fazer para attenuar a amargura?

Preparar-se com dignidade, com resignação, diremos mesmo com alegria para esse longo supplicio da mundana, que se chama velhice.

O homem, desenvolvendo em muito mais larga escala e de um modo muito mais variado a sua actividade complexa, póde gosar até á mais avançada edade dos prazeres que por assim dizer mais apreciou.

A ambição, as luctas da politica, as lucubrações da sciencia, as argucias da diplomacia, as investigações da historia e da critica, e mesmo os gosos ardentes da arte.

Vejam-se Gœthe, Miguel Angelo, Hugo, Beethoven, Talleyrand, Thiers e tantos e tantos mais.

A mulher de hoje, a mulher educada por este acanhado ideal que a domina, funda o seu fragil poder nas graças fugitivas da sua formosura, no encanto juvenil da sua vivacidade, na sua elegancia, no seu riso frivolo e pueril, no esplendor radiante do seu luxo, na sua convivencia inutil e perfumada como a das flôres!

Um dia alveja-lhe na massa fulva, cendrada, ou negra dos seus cabellos, um fio de prata, o primeiro, invisivel para todos os olhos, mas que o espelho revelou aos seus.

Esse fio traz preso a si a desventura!

Oh! ella reinou, dominou, teve subjugadas aos seus pés todas as forças e todas as vontades!

A casa, mesmo sendo a casa um ninho fôfo e perfumado, parecia-lhe bem pequena e bem mesquinha para theatro dos seus triumphos.

Era das salas que ella gostava!

Do murmurio surdo, abafado, voluptuoso de admiração, que ella excitava ao entrar nos salões pelo braço do seu pobre marido, muito enfastiado e soberanamente ridiculo!

Como todos gabavam o sabio decote do seu corpete, revelando com uma indiscrição que accendia invejas e desejos em torno d’ella — invejas e desejos que a enroscavam como serpentes de fogo — a brancura do seu collo e dos seus hombros, aquella brancura setinosa de camelia, que o orvalho da madrugada humedeceu.

Como era magestosa a cauda do seu vestido! como as flôres e as perolas se ennastravam bem nas suas tranças opulentas! como os braceletes de brilhantes mordiam de raios iriados a carnação explendida dos seus braços! Como a adoravam, como a detestavam ferozmente aquelles homens e aquellas mulheres!

Cada olhar tinha a agudeza de uma lamina de aço!

Traspassavam-n’a, feriam-n’a, beijavam-n’a aquellas mudas caricias insolentes, e aquelles odios violentos e felinos!

E a consciencia da sua formosura, da sua soberania omnipotente, do seu prestigio invencivel, fazia-a vibrar toda como ao contacto de uma pilha.

Sentia-se rainha. Tinha ditos graciosos, tinha repentes felizes, tinha epigrammas implacaveis, coquettismos crueis; era espirituosa, era bella, era triumphante!

A casa, os filhos pequeninos, o marido, os livros, que são tão bons companheiros da honestidade e da modestia, onde ficara tudo isso? Nas brumas indecisas de um passado que ella não queria ver.

Oh! que intensidade de vida n’estas horas!

Era só pensando n’ellas que vivera. Para que havia de lêr, para que havia de instruir-se, para que havia de ir perguntar á natureza muda, o segredo de todas as suas riquezas, para ella inuteis e desdenhadas?

Era feliz porque era admirada.

 

 

Como desce o panno sobre o tablado cheio dos deslumbramentos de uma magica, assim para ella descera agora o panno, sobre os prestigiosos esplendores da sua vida de garridice e de vaidade, de luxo e de loucura.

Aquelle cabello branco avisou-a sinistramente de que tudo acabara.

Se continúa a luctar com a velhice que nunca se deixa vencer, achará só escarneos onde antigamente achára cultos, só baldões onde a tinham acclamado em triumpho.

Se vae procurar as alegrias e as distracções proprias d’essa nova phase da sua vida, o que é que encontra em torno de si?

Não ficára ninguem no lar, que primeiro do que os outros, ella havia desertado.

O marido andava lá fóra no trabalho absorvente, ou na dissipação criminosa. Como ella nada lhe dera nos dias florentes da mocidade, elle tambem nada lhe queria dar agora nas tardes glaciaes da velhice. Creára outros interesses ou outras affeições, seguira outro rumo, outra ordem de idéas. Já agora não era possivel tornarem-se a encontrar na terra.

Os filhos esquecidos, indifferentes, quasi estranhos, estavam no collegio ou nas escolas, se o pae tinha tido piedade; estavam na vergonhosa ociosidade,